Esboços Psiconáuticos

Um dos efeitos colaterais de uma má assimilação da solidão é desejar companhia a qualquer preço. Pois do medo do abandono, que participa e dirige a vontade de existir em conjunto, só poderá surgir um contrato de aprisionamento voluntário de si para com outrem. Por isso que o solitário reprimido, ou seja, aquele que diante de seu próprio desacompanhamento tenta suprimir, mascarar tal condição, é uma ameaça social constante a si e a todos que esbarram em seu caminho.

Estas afirmações podem parecer injustas ou mesmo perversas, se forem inseridas em casos aonde o solitário reprimido de fato já se encontra isolado, poupo aqui o desajustado eremítico, o órfão desgarrado do rebanho humano e todos aqueles que realmente sentem o peso da exclusão envolve-los numa bolha de contrição. O alvo que miro com estas palavras ao que parece nunca está só, embora o seja profundamente, pois mesmo vivendo desesperados por contato, justo por se encontrarem nessa fissura de presença, disfarçam para si o íntimo da ausência que respiram. E na indumentária dos costumes, se inserem numa aura de convívio, centro de atenções e estímulos de associação coletiva, com intuito de cessarem o sentimento de desamparo que jaz latente entre cada convite desinteressado, quando na verdade querem gritar de aflição: por favor não me deixem! É nesta identidade de carência afetiva que igualo e conecto os extremos entre a extroversão e a monofobia.

O excesso de um impressão extrema geralmente se opõe na evocação de uma impressão contrária. Não quero com isso operar um sistema homeostático das emoções ao qual certos impulsos em demasia são causa e efeito de outros em escassez, mas somente indicar processos de catarse compensatória, em que uma paixão é interdependente de uma gama muito mais variada e complexa de outras pulsões. Não acho conveniente nos vertermos numa espécie de jogo de contrários defasado de um psicologia dos estados, nem mesmo num esquema psicométrico de oposição dos afetos. Mas somente declarar uma dependência interdita dos entusiasmos conscientes, que experiencia o mundo também como contradição empática.

Dito isto, gostaria de frizar mais detalhadamente que a condição mais evidente do solitário reprimido é a de que ele sofre a solitude como se não sofresse coisa alguma, e ao invés de sublima-la em seu favor, se corta e aperta ainda mais as algemas que veste quando poderia gozar de um fetiche manietado. Enfim, a questão que prescinde e subjaz toda condição de tortura patológica da psique, não é a de que presumimos um modo puro e harmonioso de vivenciar os próprios sentimentos, muito pelo contrário, é o conflito que parece habitar o núcleo da existência humana e dele que emanaria tal energia psíquica; ou seja, o núcleo de todo e qualquer estímulo reativo para a consciência tende sempre a se apresentar como fundo conflituoso da experiência. É por meio de um conflito que escoo e me movo através das diversas formas de afetos que vão surgindo para mim, é desse desacordo incondicional que se permite transferir impulsos na dinâmica espontânea do intuitivo-reflexivo.

O que parece machucar a consciência, é o flagelo da unidade de coerência que pretendemos impor a ela, é justamente tentar apaziguar o conflito inerente que ela se faz emergir como próprio modo de ser; assim o solitário reprimido é um dos que negam o conflito de sua própria condição solitária ao lançar-se numa espécie de horizontalidade anímica, espera fazer cessar seu desconforto ao fingir trilhar uma via de mão-única para longe daquela condição, em busca de refúgio em outras. O problema principal é que este emigrante de sua própria consciência, logo que parte de um lado a outro, percebe que não há linhas retas para seguir nem fugas para realizar -pois a consciência já é uma fuga-, o nômade ortodoxo da intimidade humana esperará em vão uma seta que aponte espaços homogêneos e sequenciais na esfera dissentida dos intramundos. O resultado frequente é uma frustração intrínseca ao mascaramento de sua aflição solitária, pois empunhando um modelo simbólico de funcionamento da psique, urde por sintonia e inteireza aonde só há dissonância e fragmentos.

Ainda mais, não afirmo que o conflito inerente da consciência humana é um fim, isto é, aquilo pelo qual deve se almejar, pois nem sempre é sensato fomentar caos nesse poço tempestuoso que habitamos para nós mesmos, digo antes que assumir o dissíduo é fazer da condição conflituosa da existência uma disposição propulsora. Deste modo quando o solitário reprimido permitir se afetar daquilo mesmo que sente, solidão, quando conseguir permanecer fiel à farsa de seu descolamento emocional, é que poderá se engajar devidamente no projetar-se-além de si, ou seja, conquistará a habilidade parcial de condutor das forças que lhe acometem a todo instante, não mais como refém inerte de seu desejo, nem mesmo como autobservador inocente das pulsões, e sim como psiconauta das ondas imprevisíveis e espontâneas de seu oceano mental.