“Não fale com estranhos!”

“Meu filho! Olhe para mim! Isso. Agora ouça bem a sua mãe. Hoje, você vai para a escola sozinho..., isso mesmo, S-O-Z-I-N-H-O; porque já está ‘grandinho’, e tem que aprender a se virar! Então, ouça bem mocinho. Primeiro você não irá se desviar do caminho que nós sempre fazemos. Segundo, não fique nesse ‘desligamento’ seu. Fique alerta! De orelha em pé! E por último, não fale com estranhos no meio da rua! Agora vá! Mamãe vai ficar te olhando aqui do portão...”.

Acho que ao se deparar com discurso acima você deve ter sido invadido de alguma maneira pela nostalgia, e voltado por um instante aos idos tempos do colégio em que nossas mamães, depois de nos arrumarem da melhor maneira que podiam, faziam questão de repassar as mesmas sábias recomendações, dia após dia, antes de nossa partida. Porém, mesmo diante de todo este zelo, temos de confessar que nunca precisamos de muitas deixas para distorcermos tais aconselhamentos, colocando-os à mercê de nossa tenra vontade, especialmente no que se relaciona à advertência de não dar atenção a estranhos.

Entretanto, não creio que isso se deva ao fato de guardarmos em nossos seres um gosto inerente pela anarquia. Pelo contrário, acho que esse desrespeito ocorre em função de uma singela demanda social: as pessoas precisam conhecer umas às outras. Pense um segundo: se você nunca tivesse falado com estranhos, como iria se casar? Se você nunca tivesse falado com estranhos, como teria feito amigos? Se você nunca tivesse falado com estranhos, como acha que o tão sonhado primeiro beijo aconteceria? Se você nunca tivesse falado com estranhos, como teria conseguido o emprego de cuja posição você tanto se orgulha? Além disso, se alguém antes de você não tivesse falado com estranhos é bastante provável que você sequer existisse...

Nossa! Profundo não é mesmo? Mas sei que agora, talvez você tenha imaginado: “o que nós estamos esperando, então? ‘Bora’ conhecer gente”. Bem, é justamente aí que reside nossa agônica questão: por que depois que “crescemos” temos tanta dificuldade de estabelecer vínculos de diálogo com àqueles à nossa volta?

Um dos primeiros entraves que se coloca, normalmente, está ligado a segurança pública, e a partir disso chovem exemplos: a proliferação da pedofilia, os salteadores, os vigaristas, os aproveitadores, os falsos, os sabotadores, entre outros afins. Contudo será que podemos colocar toda sociedade numa mesma baia? Será que não haveria como separar o joio do trigo? Pois como vimos acima, as experiências com estranhos podem ser boas, caso se encontre alguém bacana.

De imediato, e levanto em conta apenas o vislumbre da aparência, posso dizer que é impossível. É claro que para estes casos difíceis temos à nossa disposição a sabedoria de Jesus, manifesta pela frase: “pelos frutos os conhecereis”, numa alusão do mestre a como podemos evitar o envolvimento com as pessoas ruins; mas, até mesmo um conselho tão sábio é problemático para nossa sociedade pós-moderna, pois, “conhecer os frutos” exige tempo para observar as ações daqueles que estão ao nosso redor, o que é totalmente inviável hoje em dia, mas não porque não temos tempo, mas simplesmente, porque ninguém tem paciência, disposição ou interesse algum pela vida de ninguém (aqui falando num contexto generalizado, que se liga mais uma particularidade da nossa geração do que os seres humanos propriamente ditos). Para boa parte de nós, as singelas palavras cantadas por Paula Toller, se aplicam em gênero e grau: “os outros são os outros e só”. É evidente que a letra, nesse caso, fala da auspiciosa esperança de uma paixão, mas ela também se aplica as nossas relações com aqueles que denominamos estranhos, uma vez que enquanto estamos agarrados a algum objeto de afeição, qualquer outra coisa é em si mesma insignificante, ou seja, por conta de nossa incrível paixão ninguém mais importa. Nos bastamos por nós mesmos.

A perguntar, diante disso, então passa por: qual é o objeto de afeição contemporânea? Resposta: O narciso virtual. A imagem que a tela do celular nos devolve. O espelho condicionado à nossa semelhança, ou ao contorno daquilo que gostaríamos de ser.

Sobre tal quadro Zygmunt Bauman, fala que a vida líquida – sua famosa metáfora para o comportamento dos homens pós-modernos - possuí como prerrogativa um movimento de autorreciclagem, autocrítica e insatisfação constante do “eu consigo mesmo”, cuja a finalidade é, em suma: “tornar-se aquilo que não é”, e nessa finalidade, nada conhecido “produz” resultados tão relevantes quanto o perfil eletrônico: se a foto saiu escura, muda-se. Se o príncipe virou sapo, deleta-se. Se a maquiagem é de exígua qualidade, edita-se. Se há alguma gordurinha, elimina-se. Se é magérrimo, maromba-se. Se a vida está uma droga: foto com cerveja.

Nesse Admirável Mundo Novo, como já previa Huxley, não há ninguém feio, ou mesmo fora dos padrões desejados, visto que, a autoimagem de cada indivíduo é tão “líquida”, quanto sua própria existência; e nesse contexto, aquele que me é diferente só é necessário para a antropofagia, donde eu retiro os nutrientes que faltam a minha própria força vital. Destruo e absorvo o outro somente para me fortalecer (Nossa! Agora a coisa ficou trágica, não é mesmo? Porém, não se assuste o mundo em si é bastante absurdo, de fato).

Destarte, podemos entender que fato de falar com as “refeições”, ou melhor dizendo, com as pessoas instaladas atrás da cerca do nosso narciso, é quase um milagre, nos termos apresentados acima, pois sem dúvida, é difícil imaginar o porquê alguém se interessaria pelo outro, se tal sujeito é integralmente capaz de qualquer coisa. Obviamente, uma resposta fácil seria dada pela empatia, mas, esta solução seria no mínimo subjetiva. Também se apresentaria como razoável, uma resposta que levasse em conta os dizeres da segurança e da integridade física e psicológica - como foi relatado no início - ressaltando a necessidade de ter a certeza que as pessoas com as quais você anda não lhe querem mal.

Entretanto, esta é igualmente complexa, pois sempre há a sombra da mentira, até mesmo sobre os mais íntimos. Logo, teorizar concretamente sobre tal quesito, isto é, levando em conta todos os riscos apresentados, é bastante embaraçoso. Mas, não obstante a complicações, vale salientar que nos resta, ainda, o campo onírico para especular, e nele uma hipótese importante pode ser posta: os outros são interessantes para cada um de nós por conta da aprendizagem trazida pela experiência do contraditório.

A fim de elucidar melhor este ponto permita-me fazer uso de um dos poemas de Márcio de Sá Carneiro, musicado por Adriana Calcanhotto que nos diz o seguinte:

“Eu não sou eu nem sou o outro.

Sou qualquer coisa de intermédio.

Pilar da ponte de tédio.

Que vai de mim para o outro”.

“Qualquer coisa de intermédio”, ou seja, não somos quem pensamos ser, nem sequer o que pensam sobre nós; ou ainda, somos o “pilar da ponte de tédio”, que carrega as impressões mútuas. Mas o que isto quer dizer? Quer dizer que o autoconhecimento está em nossa capacidade de raciocinar a respeito do que é avesso à nossa “programação original”. O apóstolo Paulo já nos disse uma vez: “examinai tudo. Retém o bem”. Contudo, como saber o que é o “bom” sem tomar conhecimento do “mal”? É justamente esse o cerne do argumento: temos de lidar com o contraditório, com o desconforto, com o que é esquisito, para conseguirmos discernir o que está mais atrelado as nossas capacidades e desejos inatos, e a partir disso tomar decisões autônomas assumindo as responsabilidades sobre elas, ou, em outras palavras, para descobrir quem somos.

O diálogo com o desigual é parte integrante do amadurecimento. Daí podemos concluir que essa nossa pulsão a desobedecer as tão preciosas regras de integridade de nossas mamães em relação os estranhos que a vida coloca em nosso caminho, pode ser uma boa forma de aprendermos que nós não somos o eixo do cosmos, e portanto apenas a nossa inerente beleza física, de caráter, ou moral, não é suficiente nem mesmo para suster nosso frágil existir.

Rodrigo Leme de Oliveira
Enviado por Rodrigo Leme de Oliveira em 02/09/2018
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