Três Poemas em Ensaio
Há uma intertextualidade que conecta “O poema e a água”, “O poema e a trégua” e “O poema e a língua”. Não apenas pela similaridade dos títulos, mas também por palavras chaves que se repetem nos três poemas em ensaio: “as vozes”, “do poema”, “convidam”, “falam”, “o livro”, “o vento” e “memória”. Ademais, as composições poéticas apresentam quatro estrofes formadas por tercetos.
O último poema de Pedra do Sono (1942), primeiro livro de poemas de João Cabral de Melo Neto, é “O poema e a água”. As vozes líquidas do poema convidam ao crime. Falam de coisas inalcançáveis mesmo em sonho. Entretanto, esses acontecimentos são de água e se repetem no ritmo da memória e criam um lugar fluido. São ondas de pensamentos que ecoam no mar e na memória em busca de palavras para o poema.
O poema e a água
As vozes líquidas do poema
convidam ao crime
ao revólver.
Falam por mim de ilhas
que mesmo os sonhos
não alcançam.
O livro aberto nos joelhos
o vento nos cabelos
olho o mar.
Os acontecimentos de água
põem-se a se repetir
na memória.
(MELO NETO, 2003, p.55)*
Ana Cristina Cesar trabalha a intertextualidade com “O poema e a trégua”, que permaneceu inédito até a publicação de Antigos e Soltos. Poemas e Prosas da Pasta Rosa (2008). Ambos os poemas também se conectam em Poética (CESAR, 2013, p. 354), que reuniu toda a sua obra poética em volume único.
O poema e a trégua
As vozes lentas do poema
convidam ao exercício
da magia.
Falam do completo
esquecimento a palavra
esquecida de si mesma
O livro escapando para
as águas o vento a inócua
transparência
Repetem de memória cantos ilhas
anti
antilira destruída
(CESAR, 2008, p. 117)
No poema de João Cabral de Melo Neto, as vozes líquidas e fluidas convidam ao crime. Elas se compõem como coro falando de ilhas inimagináveis. Essa memória se repete nos sentidos, nas palavras e nas águas. O livro aberto representa a mente aberta (pensamento interior). O vento nos cabelos, a sensação objetiva. O olho no mar, a visão racional. Se o olhar para o mar vê o horizonte e o infinito (exterior), o olhar da mente também (interior). As ondas de pensamentos se repetem no mar e na memória (na imaginação) em busca de palavras para o poema, cujas vozes convidam ao crime de fugir da objetividade e da racionalidade.
No poema de Ana Cristina Cesar, as vozes lentas convidam ao exercício da leitura e da magia. Elas propõem o completo esquecimento da palavra esquecida. Palavras se pensam numa realidade sem palavras. Trégua para o poema. Inspiração para o eu-lírico. O livro escapa para as águas, com o vento e a inócua transparência. A memória se repete como cantos da antilira destruída. Assim, Ana C. rompe com João Cabral ao sentenciar “antilira destruída”. Trégua é suspensão temporária de hostilidades. Cessação temporária de trabalho, incômodo e dor para descanso.
O terceiro poema em análise permite a intertextualidade com os dois poemas. “O poema e a língua” acelera o tempo ao afirmar que as vozes rápidas do poema convidam ao tempo líquido. Referência ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). As palavras escorrem como água. O livro é fluido e caminha contra o vento (contra a corrente) e não há mais certeza de nada. O pensamento pode ser todo questionado em qualquer língua (idioma ou assunto). A aceleração do tempo ocupa a pessoa e desconecta a memória física individual porque essa está ligada à memória da modernidade líquida (mundo virtual), cujas vozes rápidas convidam ao tempo líquido.
O poema e a língua
As vozes rápidas do poema
convidam ao tempo
líquido.
Falam com palavras
que escorrem
como água.
O livro fluido e veloz
caminha contra o vento,
sem a certeza de nada.
O uso acelerado do tempo
ocupa toda a pessoa,
desconecta a memória.
(COSTA JÚNIOR, 2018, p. 13)
Referências Bibliográficas
CESAR, Ana Cristina. Antigos e Soltos. Poemas e Prosas da Pasta Rosa.
Org. Viviana Bosi. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, 2008.
CESAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
COSTA JÚNIOR, Luiz Roberto. Mar de Sal. Florianópolis: Bookess, 2018.
MELO NETO, João Cabral. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
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Luiz Roberto da Costa Júnior nasceu em 1968, em Campinas (SP). Graduou-se em Comunicação Social (1992) pela Escola de Comunicações e Artes da USP e também em Ciências Sociais (1996) pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde fez mestrado em Ciência Política (2002). Autor da trilogia poética drummondiana pela Editora Penalux: Refúgio da Madrugada (2016), Em meio à tempestade (2016) e Neste Tempo de Cólera (2017).
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* Houve supressão de vírgulas no 1º terceto (uma) e no 3º terceto (duas) da 3ª Edição para a 4ª Edição do livro Pedra do Sono. As duas edições cotejadas revelam uma valoração, pelo autor, do fluido e do indistinto. O livro Poesia Completa mantém a versão revisada e atualizada do poema.