O MESTRE ELEITO DOS NOVE
A influência gnóstica do grau nove
Um dos mais importantes graus das Lojas de Perfeição, do ponto vista iniciático, é o chamado Mestre (ou Cavaleiro) Eleito dos Nove, correspondente ao grau nove da Escada de Jacó. Por isso ele é conferido através de elevação ritualística, na qual o drama da morte de Hiram é usado para transmitir ao iniciado maçom conceitos acerca da verdadeira justiça. Nos Mistérios Antigos esse grau correspondia á uma iniciação nos chamados “Mistérios Maiores”, onde o iniciado aprendia o real significado do mito de Osíris, ou seja, o conteúdo metafísico da sua morte e ressurreição em outro estado do “ser” e a necessidade de todo homem passar por esse processo se quiser se libertar da eterna peregrinação pelo mundo da matéria e pela “terra intermediária”, a Tuat.
Na Maçonaria do Rito Escocês, além da influência egípcia, o rito foi enxertado com elementos da tradição hebraica, que nele está presente através de vários símbolos e alegorias emprestados á Cabala.
É possível perceber também várias evocações á tradição hermética, o que certamente revela a contribuição dos “maçons aceitos”, cultores da gnose e da alquimia.
Já nos referimos ás tradições cainitas, que tinham em Cain o iniciador da ciência e do conhecimento. Essas tradições sustentam que foi através de seus trinetos, Jubal, Jabel e Tubalcain que os homens aprenderam as diversas artes e técnicas de produção. Jubal e Jabel deram nome aos Jubelos, que na lenda maçônica são os companheiros invejosos que querem obter de Hiram Abiff a PalavraSagrada, com a qual eles seriam reconhecidos como mestres. Nesse simbolismo está interpolada a idéia que esses “companheiros” Jubelos são, na verdade, usurpadores do conhecimento e destruidores da ordem e da harmonia, utilizando a violência e o crime na aquisição de um direito que só pode ser conferido aos que cumprem o devido processo iniciatório.
Quanto a Tubalcain, os maçons do terceiro grau simbólico já conhecem bem esse nome. Se lembrarmos que na Bíblia, ele aparece como o homem que ensinou á humanidade a arte de curtir peles, tecer lã e fundir metais, então estará fechado o círculo esotérico que envolve o nome dos Jubelos. Os três Jubelos, de acordo com a tradição cainita, são exatamente Jubal, Jabel e Tubalcain, os três iniciados na Arte Real que, detendo o conhecimento técnico que faz uma civilização, queriam o título de mestres, o qual só era conferido á quem tinha esse direito. Possuindo o conhecimento técnico, esses descendentes de Cain julgavam-se merecedores de compartilhar com os mestres arcanos o supremo conhecimento. Não sendo admitidos nessa “confraria de eleitos”, apelaram para a violência, e promoveram a “rebelião” que separou o profano do sagrado, e deu inicio á eterna peregrinação do homem sobre a terra, e sua insana luta para recuperar o estado de beatitude que antes gozara.[1]
Esse simbolismo significa que a posse do conhecimento científico, profano, não leva, por si só, o seu possuidor á iluminação. Por isso Cain e sua família, embora tivessem esse conhecimento, que lhes foi concedido pelos próprios anjos rebeldes, não obstante, foram "expulsos do grupo de eleitos" (o ramo adâmico que gerou a nação de Israel), pois a sua arrogância os perdeu. O assassinato do Mestre Hiram, por esse prisma, simboliza a arrogância do pretenso “sábio” que quer, a todo custo, possuir a verdadeira sabedoria sem passar pela devida iniciação.
A lenda do grau
Depois de realizados os procedimentos ritualísticos devidos ao sepultamento de Hiram, Salomão intentou punir os assassinos do seu mestre arquiteto, ou seja, os Jubelos. Estes, após o crime, haviam se escondido numa caverna lá pelos lados do Monte Carmelo. Um pastor, que os vira no esconderijo, denunciou-os ao rei. Salomão, o qual reuniu os quinze mestres mais antigos do canteiro de obras do templo, e por votação feita entre eles, escolheu nove para uma expedição ao local onde os assassinos estavam escondidos. Liderados por Johaben, os mestres iniciam uma caçada aos criminosos; dois deles, encurralados diante de um abismo, preferiram antes saltar para a morte, do que serem presos. O terceiro, acossado por Johaben dentro de uma caverna, crava no próprio peito um punhal. Após cortarem as cabeças dos três assassinos, os nove mestres voltaram a Jerusalém para dar satisfação ao rei do cumprimento da missão. Salomão, satisfeito com o resultado, deu-lhes o titulo de Mestres Eleitos.
No ritual, o desenvolvimento da lenda foi adaptado a fim de dar vida ao simbolismo que o grau encerra. Nele está presente o rei de Tiro, pois este é um fiel aliado de Salomão. O pastor que denuncia os assassinos, em principio, é confundido com um deles. No ritual é Joahben que mata a punhaladas o assassino e não ele que se suicida. Salomão, em princípio, por achar que Johaben tomou a justiça nas próprias mãos, não gosta da sua atitude e o submete a um julgamento. Depois o declara inocente, cumprimentando-o por seu zelo no cumprimento da missão.
Esse simbolismo foi desenvolvido mais tarde, como informa Jorge Adoun, para fins de expurgar do ritual a idéia de que esse era “um grau de vingança”, o que não se coadunava com o ensinamento maçônico. Então, o julgamento de Johabem passou a significar que a vingança é um sentimento que não deve ser cultivado na Maçonaria. A vingança pertence a Deus. O maçom deve praticar a justiça e não a vingança.
A missão dos Mestres Eleitos deve representar a tarefa do maçom, na sua luta pela identificação e destruição da injustiça e dos vícios que assolam a humanidade, e que, dessa forma “assassinam” todos os dias os Mestres Hiram (o homem virtuoso) da vida. Essa luta é sempre cheia de vicissitudes e perigos. Os mestres eleitos (que são todos os maçons) devem estar imbuídos de coragem, disciplina e zelo pela missão que lhes foi confiada.
Toda a ritualística do grau evoca essa missão justiceira. Panos negros, salpicados com lágrimas prateadas, ornamentam a Loja para lembrar a morte de Hiram. A Loja, no caso, representa uma das câmaras do Templo de Salomão, feita câmara mortuária para velar e prestar as últimas exéquias ao mestre morto. No altar dos juramentos, forrado com um pano negro com lágrimas prateadas, estão o Pentateuco, os Estatutos da Loja, as Constituições da Ordem, duas espadas e um punhal. Nove luzes iluminam o Altar dos Juramentos, com oito delas formando um octógono. Nove mestres, no mínimo, deverão estar presentes á cerimônia. Há somente um Vigilante, o Segundo, com o nome de Stolkin.
O Orador, também chamado “Cavaleiro da Eloqüência”, atende pelo nome de Zabud; o Hospitaleiro, pelo nome de Ahishar, o Secretário pelo nome de Zadcco, o Tesoureiro por Joabert. Todos esses nomes não são encontráveis nos registros históricos dos israelitas, nem nas crônicas bíblicas, já que são composições cabalísticas construídas pela técnica da gematria e da temura, pois como se sabe, as letras do alfabeto hebraico, além de seus significados semânticos também representam valores numéricos.²
Uma bandeira negra com um braço no centro segurando um punhal, encimado pelas iniciais V\ A\ M\ (Vincere Aut Mori), e na parte de cima as iniciais A\ U\ T\ O\ S\ A\ G (Ad Universal Terrarum Orbis Summim Architecti Gloriam)[3], é o símbolo do grau. O avental, de pele branca, forrado em vermelho e negro, tem um braço segurando um punhal, e no quadrado um crânio com duas tíbias cruzadas, circundado por lágrimas prateadas.
No moderno ritual, os iniciados recebem automaticamente o oitavo grau. Porém, quando se apresentam para a iniciação, o fazem na condição de Intendentes dos Edifícios. A eles é dito que “O Mestre Hiram está morto” e que “ O espírito do homem saiu das trevas e lenta e dolorosamente, caminhava para a luz. Mataram o espírito do homem”. [4]
O significado iniciático da lenda
“Os trabalhos do Templo estão abandonados”, diz o 2º Vigilante, “ porque os assassinos de Hiram estão vivos e é preciso que morram”. Com efeito, não pode o homem empreender uma missão de construir “templos á virtude e masmorras ao vicio”, que é o lema da Maçonaria, enquanto seus “próprios vícios”, aqueles que o assassinam diariamente, ainda estão vivos.
Na tradição cabalista, o anjo rebelde Samael, com inveja do Criador, seduziu Eva e com ela gerou Cain, dando inicio á linhagem dos homens maus sobre a terra. Essa linhagem, no entanto, deu origem á ciência, pois dela vieram os conhecimentos de metalurgia, arquitetura, o desenvolvimento da linguagem etc. Foram esses homens, descendentes de Cain, que cultivaram a matéria e aprisionaram o espírito humano nela.
Na crônica bíblica Cain mata Abel, (o mau mata o bom, o espírito é vencido pela matéria, a treva prevalece sobre a luz), mas não poderá ser morto pelo próprio homem, pois Deus assim não o permitirá. E “quem matar Cain será castigado sete vezes em dobro”, razão pela qual ”pôs o Senhor um sinal em Cain, para que ninguém, que o encontrasse, o matasse”.5]
Por isso Salomão, em principio, submete Johaben a um julgamento pela morte do criminoso, por que a “vingança pertence ao Senhor”, porquanto ao homem, ele deve perseguir a Justiça.
A lenda dos Nove Eleitos foi desenvolvida também com a finalidade de adaptar tais conhecimentos iniciáticos aos propósitos morais da Maçonaria. Com efeito, ninguém nela ingressa se não for “eleito”, ou seja, cooptado por alguém que a ela já pertence. O candidato tem que ser apresentado por um membro pertencente ao quadro, em seguida é pesquisado, sondado e afinal “votado” pelos irmãos como digno de fazer parte do grupo. Somente após essa “eleição” é ele iniciado.
Depois, a partir do momento em que é iniciado, o que se requer dele? Que “submeta suas paixões e aperfeiçoe seu espírito, “erguendo templos á virtude e cavando masmorras ao vicio”. Que quer isso dizer? Que ele deve “matar em si mesmo” todos aqueles ”assassinos” que o impedem de ser virtuoso. Que ele justice, com essa morte, o assassinato do “homem justo”, que foi cometido por “aqueles homens maus”, que o desviaram da virtude. Quem são esses “homens, ou anjos maus”? São a ambição desmedida e sem moral, a avareza, a inveja, o ódio, a indiferença pela sorte dos seus irmãos de Ordem ou pela humanidade em geral, a ignorância, a preguiça e todos os vícios e sentimentos que aviltam o homem e o levam a se comportar como “filho das trevas”.
Na mística cristã, Jesus explica bem essa questão com a parábola dos trabalhadores da vinha. Nesse ensinamento, ele mostra que não importa a hora nem o momento em que o homem é chamado para cumprir a sua missão. Alguns podem trabalhar mais ou trabalhar menos. Mas todos, independentemente do tempo que trabalharem, receberão a mesma paga. Porque Deus chama a todos, mas escolhe, realmente, a poucos. Aos “Eleitos” cabe a missão, realmente messiânica, de “matar “os “assassinos” do espírito do homem, para que ele, assim liberto, possa escolher entre permanecer no “mundo das trevas” ou iniciar sua ascensão para o “ mundo da luz”.
Por isso, realmente, não se trata de “vingar” o mestre assassinado, mas sim, destruir o mal representado pelos seus assassinos, como medida de justiça e recomposição do equilíbrio social perdido com esse crime, evitando que ele daí prolifere.
Se quisermos ver nesse simbolismo uma imagem da realidade profana, neste mundo em que vivemos, basta ver como as virtudes, no momento, estão sendo eclipsadas pelo vício. Em toda parte progride o comportamento criminoso, enquanto parece que cada vez mais a virtude se vê obstruída pelas trevas. O simbolismo dos pensadores gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo ainda é valido. O combate entre a luz e as trevas nunca pareceu ser mais feroz do que nestes nossos dias. É preciso, hoje mais do que nunca, por em prática o ensinamento contido na lenda dos “Eleitos do Nove” e sair á caça dos “assassinos” do espírito humano que pregam a tolerância com o crime , com a destruição do meio ambiente, com os violações das leis da natureza, e deixar que a Justiça julgue e puna os violadores, pois estes, como disse Jesus, receberão a devida recompensa, já que “ é necessário que ao mundo venham os escândalos, mais ai daqueles por quem os escândalos vem ao mundo” [6].
A missão dos nove mestres
No ritual do grau, o presidente da Loja diz aos Mestres Eleitos que “Desde que estás entre nós, continuastes a sofrer o peso do trabalho abandonado. A humanidade está sufocada pela ignorância, corrompida pelo crime. Será preciso sofrer eternamente? Sob os nossos olhos atentos, crescestes em dignidade; tendes a confiança de vossos irmãos. Podemos contar com a Vossa?”
Evidentemente, se a humanidade não puder contar com aqueles a quem elege, a quem compete livrá-la dos vícios e reconduzi-la á virtude, com quem contará? É a estes que se reserva a luta para recuperar o estado de harmonia, ordem e estabilidade que existia antes que o crime (o crime de Cain, o pecado de Adão, a corrupção da mulher através da Serpente, a sedução de Eva por Samael, etc.), provocasse a queda do homem primitivo, que sabia qual o seu exato lugar na natureza, que fazia parte dela e não era, como se pensa hoje, alguém que deve dominá-la e fazê-la trabalhar em seu beneficio.
Hiram morto é também a humanidade pecadora e decaída que precisará “matar” seus vícios para recuperar a virtude com a qual iluminará o seu espírito. Enquanto esses vícios permanecerem vivos, o trabalho de “construção do templo”, que é o trabalho de aperfeiçoamento moral do indivíduo, através da qual ele atinge a salvação, permanecerá abandonado. Esse trabalho de recuperação moral da humanidade é a missão dos Eleitos.
Entre evocações aos textos bíblicos e alusões á doutrina gnóstica prossegue o ritual:“Quando Salomão soube que Hiram não aparecera entre seus operários, mandou todos para o trabalho e jurou não pagar salário algum se não se descobrisse Hiram, morto ou vivo. Todos os obreiros puseram-se em campo e o corpo de Hiram foi encontrado enterrado sob um ramo de acácia”[7] .
Sim, pois que salário, que pagamento pode ser dado a uma humanidade cujo espírito foi assassinado pelo pecado? Urge, primeiro que se encontre esse cadáver, e é preciso que todos sejam chamados para procurá-lo. E aqui ressurge novamente a parábola dos trabalhadores da vinha. Todos são chamados, apenas alguns serão escolhidos. Essa sabedoria iniciática está presente em todo o ensinamento de Jesus. Veja-se, por exemplo, a parábola da cizânia. Por ela Jesus ensina que os bons e os maus devem ser cultivados juntos. A eles se dá o mesmo tratamento. Mas no dia do julgamento será procedida a separação, por que então será mais fácil saber quem é bom ou mau. Aos primeiros se aproveita como semente, aos segundos se queima como erva daninha. É como o pescador que lança a rede e trás tanto peixes pequenos como grandes. Os grandes são aproveitados os pequenos não.
O ritual antigo exigia que os mestres a serem eleitos para essa missão entrassem na câmara com a cabeça coberta por um véu vermelho. Esse simbolismo, segundo cremos, deve ter sido introduzido no ritual por influência dos hermetistas, particularmente os adeptos da tradição alquímica. Segundo o magistério alquímico, não se pode promover nenhuma transmutação num metal sem primeiro aquecê-lo através do fogo. Aliás, toda a arte de Hiram, como fundidor, assim como de Tubalcain, o Mestre das artes metalúrgicas, consistia em moldar, pela aplicação do calor, os metais. Assim, o fogo, a cor rubra, tem uma importante parte nessa simbologia.
O “metal” a ser aquecido é o próprio recipiendário que, como iniciado, vai sofrer a transmutação. Ele é “amolecido” no seio da Loja, expressão essa significativa do reconhecimento que o maçom elevado ao grau deve ter de seus defeitos e vícios, que precisam ser vencidos. Nas mãos leva o ramo de acácia, que significa a vitória sobre a “morte” psíquica que sofrerá e a prometida ressurreição. Caminha descalço, como os iniciados nos Mistérios de Ìsis e Osíris, que adentravam assim a câmara do ritual, com o pé direito á frente do esquerdo.[8] Essa atitude ritualística evoca também Moisés quando pisou no terreno sagrado do Monte Sinai, onde Deus o convocou para a missão de libertar Israel.[9]
Na liderança do cortejo vem Johaben (ou Joabe), nome cabalístico que significa “Filho de Deus”.Todos os nomes dos mestres que comandam os trabalhos de Loja são obtidos por aplicação de fórmulas cabalísticas. Stolklin, o 2º Vigilante, é a “Sabedoria Verdadeira”, o que quer dizer que nem toda ciência é sabedoria e o verdadeiro mestre deve saber distingui-la. Nessa alegoria está presente, novamente, a alusão aos companheiros assassinos Jubelos, (Jubal, Jabel e Tubalcain), pais da ciência e do conhecimento técnico.
Jesus também advertiu sobre a “falsa sabedoria” quando conclamou seus discípulos a se “guardarem do fermento dos escribas e dos fariseus”, com isso querendo dizer que deviam tomar cuidado com as falsas doutrinas. Em outras palavras, não importa saber muito; é preciso ter saber qualitativo. E isso também diz respeito ao maçom.
Zerbal, por transposição cabalística, significa “inteligência que cria”. Jorge Adoun o compara ao “Verbo Criador” do Evangelho de João.[10]
Note-se, entretanto, que os mestres que comandam o trabalho de eleição dos Nove Eleitos são três. Nesse simbolismo está implícita a idéia de que todo equilíbrio repousa sobre um princípio trinitário, que na Maçonaria é simbolizado pelos três pontos. Novamente, temos aqui a evocação do principio que está na base de todas as religiões deístas, a partir do qual, segundo se crê, todas as coisas são criadas.
Os nove mestres viajam em busca dos criminosos e os encontram encerrados em cavernas e junto a despenhadeiros. A alegoria é por demais reveladora para que precisemos comentá-la. Só podemos eliminar nossos defeitos de personalidade se primeiro reconhecermos que os temos. Para isso é preciso fazer uma rigorosa auto-análise. E para fazê-la é preciso descer ao fundo de nós mesmos, nas cavernas do nosso subconsciente, e enfrentar os abismos que lá existem, e nos quais muitas vezes nos lançamos. Se o fizermos, os nossos “assassinos”, como fantasmas expulsos pela súbita iluminação do ambiente, saltarão para o nada, de onde vieram para obscurecer a luz da nossa alma e prejudicar a ascensão do nosso espírito.
O simbolismo do número nove
Nove são os Mestres que foram eleitos para a missão justiceira. Não há muito acordo entre os autores sobre o significado desse número. Todavia, face ás influências da mathese, técnica cabalística que trata do cálculo metafísico, sabe-se que o número nove simboliza a imortalidade. Assim o informa Ragon em seu Tratado de Ortodoxia Maçônica.[11] Esse número significa um regresso ás origens pelo fato de ser o que está mais próximo do dez, que é o numero perfeito, representativo da Divindade. Ele marca também a etapa última de um processo de purificação, o derradeiro degrau de uma escada que o iniciado terá que galgar obrigatoriamente, antes de integrar-se ao Uno, ao Perfeito que se expressa pelo número dez. Na tradição vedanta, ele simboliza o número da duração da vida material sobre o cosmo, já que Vishnu teve que encarnar nove vezes para salvar a humanidade. Também Jesus Cristo morre á nona hora do dia. O nove encerra, portanto, uma idéia mística de salvação espiritual, de missão cumprida, de cumprimento de uma etapa purificadora, razão pela qual os discípulos de Zaratustra sempre terminavam seus cultos com uma “novena”, tradição essa que também foi adotada pelos cristãos. Nove também foi o número dos cavaleiros que fundaram a Ordem dos Templários, que por nove anos não admitiram nenhum outro membro em sua Fraternidade.
Portanto, não nos parece estranho que esse número tenha sido escolhido para simbolizar a missão dos nove Mestres Eleitos, missão essa que consistia numa expedição destinada a “restaurar” a pureza de um ambiente, pureza essa necessária á construção de um templo dedicado ao Senhor. E aqui está encerrada, talvez, uma das mais importantes idéias contidas em todos os ensinamentos iniciáticos: a de que o espírito humano é o templo da divindade, talvez o único e verdadeiro templo digno desse nome, sendo as construções humanas erguidas para esse fim, nada mais que retratos dessa realidade![12]
Pois não é no coração desse templo, que é o ser humano, que repousa a chama sagrada, a luz que deve ser liberada para que sua alma ganhe, afinal, a condição necessária para se integrar á Divindade? E não é essa a função de todas as religiões, a de “religar” o homem a Deus? E não é este, também, o objetivo das práticas iniciáticas, ou seja, “acelerar” o processo de purificação do espírito, tornando-o capaz de libertar-se de todos os vestígios de matéria, que impedem que ele se transforme em pura luz?
Essa era, inclusive, a finalidade dos Mistérios Egípcios e dos Mistérios de Elêusis, nos quais, no fim das cerimônias ritualísticas, o iniciado obtinha a verdadeira iluminação.
O simbolismo dos Antigos Mistérios
Os egípcios acreditavam que após a separação das estruturas cósmicas, o universo material para onde os homens foram desterrados tornara-se um oceano de desordem, injustiça e desarmonia. A única forma de manter uma ligação com o ”mar da harmonia e bem-aventurança”, que era o céu, os homens deviam viver de acordo com o principio da Maat e honrar devidamente aos deuses. Isso significava que não bastava aos homens apenas viver uma vida honrada, justa, piedosa, mas também era preciso cumprir suas responsabilidades em relação ás coisas divinas. Aqueles que não o fizessem cairiam nas garras de Apépi (ou Tifon), a serpente da morte, onde se fragmentariam, se desordenariam e acabariam desaparecendo por completo, sem alcançar a regeneração de Osíris e sem realizar a união final com Rá, o princípio luminoso que dava vida ao mundo, princípio esse representado pelo disco solar. Viver apenas, por mais justo e piedoso que fosse o homem, mas sem desempenhar suas responsabilidades para com o divino, sujeitava o homem a uma eterna peregrinação pela Tuat “a terra intermediária”, a pitr-yana dos hindus, sem jamais ultrapassar os limites da lua e atingir a iluminação, pela união com a Suprema Luz.
Assim, a prática das virtudes profanas não era suficiente para se alcançar uma união com o Supremo, mas era também preciso irradiar Maat, ou seja, divinizar-se pela iluminação. É nesse sentido que Anderson, por exemplo, sustentou a idéia de nenhum maçom poderia ser um “ateu estúpido nem um libertino irreligioso”, pois estes, além de não acreditarem nas realidades divinas, jamais poderiam sustentar um programa de aprimoramento moral sem uma crença a apoiá-los.
Da mesma forma, a iniciação nos Mistérios de Elêusis era incentivada entre os gregos ilustres como disciplina de aprimoramento espiritual. Um verdadeiro sábio, no mundo grego, tinha que conhecer o significado espiritual e moral dos Mistérios. Com isso ele deixava a superstição de lado, ao tempo que enriquecia em sua espiritualidade.
Uma boa descrição do conteúdo dos Mistérios de Elêusis é dada por Virgilio em seu famoso poema Eneida, no qual o herói Enéas desce aos infernos, e ali “aprende” o processo mediante o qual a vida morre e renasce periodicamente.
Foi um escritor grego do segundo século chamado Apuleio de Madaura, que no seu conto hermético, O Asno de Ouro, desenvolveu o conteúdo metafísico dos Mistérios Egipcios, recuperando para o ocidente o seu verdadeiro significado iniciático. Nesse conto, o iniciado Lúcio (Luz), na forma de um asno, símbolo da ignorância, passa por três iniciações: uma de Ísis, outra de Serápis, e uma final , de Osiris, na qual se processa sua ressurreição em outra esfera mental. Mas tanto nos Mistérios Egípcios quanto nos Mistérios de Elêusis, a iniciação é uma repetição simbólica do drama da regeneração do defunto Osíris, que por sua vez é uma representação do mito solar. O propósito dessas cerimônias era reconstituir “o psiquismo dilacerado” do homem profano, para fazer dele um homem novo, possuidor da verdade que liberta. Esse processo é aquele pelo qual passava a alma do defunto na sua jornada pela Tuat, até a libertação final pela união com Rá. Tanto em termos iniciáticos quanto filosóficos, a iniciação dos Mistérios tinha o mesmo objetivo. De um lado procurava “realizar” a salvação da alma pela sua progressiva espiritualização, e de outro, visava proporcionar ao individuo, enquanto criatura, uma vida moral que não prejudicasse sua existência na “outra esfera”.
Nos Mistérios Egípcios, Osíris era o juiz que julgava os méritos do defunto e decidia se ele podia contemplar a “Divina Realidade”, que era o rosto de Rá. É por isso que nos Livro dos Mortos se orienta o defunto a recitar a Osíris uma oração que dizia: “destruí a iniqüidade por ti, não fiz mal á humanidade.; amparei os membros da minha família, alimentei os famintos, dei abrigo aos órfãos, não fiz o mal, vivi conforme a Maat, não causei mal a ninguém, sou puro, sou puro sou puro...”. Daí, após ter o coração pesado na balança de Anúbis, e ser questionado sobre o nome dos deuses, o defunto, se aprovado, tinha o direito de contemplar a “Divina Realidade”. A cerimônia terminava com uma oração a Rá:
“ Vi o Olho de Rá, quando cheio em Anu;
Que nenhum mal se abata sobre mim,
Nesta Tuat, nem neste salão de Maat,
Pois eu sei todos os nomes dos deuses
Que habitam no interior de Tuat,
Todos os deuses
Seguidores do verdadeiro Deus”[13]
Assim, “ver” a realidade divina e saber o nome dos deuses era a verdadeira gnose, a iluminação produzida pela iniciação aos Mistérios. O homem que então “renascia” em Osíris era um novo homem, que conhecia as causas do bem e do mal. Esse homem não precisaria mais ficar chumbado na roda do eterno nascimento e morte, porque era todo espírito e estava pronto para unir-se ao Principio Criador do universo. Como bem salienta Verluis: “Mas aqui temos o centro do misterioso drama em que Isis ressuscita Osíris. Porque essa ressurreição do divino, esse despertar, o vislumbre da Realidade Divina que ela implica, oblitera as trevas, a confusão e a fragmentação do homem, mesmo aqui no mundo inferior da ignorância, de maneira que, em virtude dos Mistérios, transmitidos desde a própria alvorada da humanidade, o homem pode, depois da morte e durante a vida, reconhecer a Luz que constitui sua essência, (e que no decorrer da iniciação ele vislumbrou), obtendo assim o renascimento num reino celestial, até o final dos tempos, quando a luz se transforma em Luz..”[14]
Somente o renascimento em Osíris, entretanto, não levava o iniciado á definitiva iluminação, pois o processo implicava numa parte psíquica e numa parte moral. A “iluminação” obtida pelo iniciado, exigia que ele agisse na sociedade como “uma luz” a guiar os outros homens que não tinham tido esse privilégio. Daí as palavras de Jesus: “assim brilhe a vossa luz”. Os iniciados, tanto nos antigos Mistérios, quanto na verdadeira doutrina de Cristo, eram iluminados, e nessa condição não podiam sonegar aos outros a sua luz.
Da mesma forma não basta ao iniciado maçom ser elevado a Mestre nas Lojas simbólicas. É preciso que ele pratique Maçonaria, sendo esta entendida como construção moral da humanidade. Por isso é que a iniciação nos antigos Mistérios não conduzia o iniciado a uma “salvação”, do tipo idealizada pelas religiões deistas, assim como a Maçonaria também não trabalha com esse conteúdo doutrinário. A Maçonaria, tal como as antigas seitas iniciáticas gnósticas, não é religião. Aliás, essa é a diferença entre o método iniciático e o caminho preconizado pelas religiões. As religiões pretendem indicar aos seus fiéis o caminho que leva á salvação, enquanto a iniciação é uma fórmula pela qual se pretende descobrir um caminho para a iluminação espiritual. O iniciado não alcança a iluminação por virtude de uma força que age externamente a ele, que o acolhe como “um eleito”, e o leva a um estado de bem-aventurança eterna. O iniciado salva-se por si mesmo, pelo conhecimento da Realidade Divina, que o admite e com ele faz união.
Esse é também o fundamento da prática maçônica. E por isso é que, tanto nas práticas iniciáticas do antigo Egito, quanto no simbolismo da doutrina gnóstica, ela é representada por uma serpente que engole a si mesma, simbolizando que o aprimoramento do espírito se faz através de um processo contínuo de auto-alimentação, onde a moral gera virtude, a virtude gera espiritualidade e esta alimenta novamente a moral, cada vez num grau mais alto da espiral.
A necessidade de um Mestre
Mas há outro ensinamento no ritual do grau nove que precisa ser destacado. Á certa altura, o Muito Poderoso Mestre, presidente da Loja encarrega o Mestre de Cerimônias de guiar os Nove Eleitos na caçada aos assassinos. Esse Mestre é o desconhecido que descobriu o esconderijo dos assassinos e o revelou ao rei. Esse simbolismo encerra um dos mais caros preceitos de todo conhecimento iniciático: o de que não há iniciação possível sem um mestre para guiar o neófito. E que esse mestre deve ser sempre “um desconhecido”.
A verdade contida nesse ensinamento faz parte da vida histórica de todas as doutrinas. Todos os grandes mestres, ao longo de suas vidas, durante seus magistérios, jamais deixaram que se conhecesse sua verdadeira identidade, nem que suas doutrinas fossem proclamadas além dos estreitos limites dos territórios onde viveram. Os verdadeiros mestres nunca escreveram nada, e geralmente seus ensinamentos são transmitidos por tradição oral a um pequeno grupo de discípulos. Assim foi Sidarta Gautama, o Buda, assim também Lao-Tsé, fundador do taoísmo, Maomé, o fundador do Islã, e especialmente Jesus de Nazaré, cujo grupo iniciático talvez jamais tivesse passado de vinte pessoas, se contarmos os doze apóstolos e aquelas pessoas que o seguiam para servi-lo no ministério, como Maria Madalena, Lázaro e suas irmãs, etc.
O verdadeiro mestre só aparece quando o discípulo está pronto e é muito difícil encontrar discípulos realmente aptos para a verdadeira doutrina, além de um limitado círculo de pessoas intimas.
Jesus, em vários de seus ensinamentos, encarece a necessidade de sermos humildes e não se dar a conhecimento público. Ensinou que o mestre deve servir aos seus discípulos e que o maior no reino da terra é o menor nos reinos dos céus; que para se entrar no reino dos céus é preciso ser “criança”, isto é, ser inocente, ter o espírito aberto, sem a arrogância dos que pensam tudo saber. Por isso, o verdadeiro sábio é um menino que se despiu de toda a sua empáfia, toda sua arrogância, sua falsa sabedoria. Seu coração é puro e sua mente não é viciada. Ele tem a humildade dos inocentes, pois somente os inocentes chegam instantaneamente á sabedoria que os “doutos” procuram a vida inteira e jamais encontram.
Nesse sentido, Lao-Tsé também ensina que o verdadeiro sábio é como a água, que procura os lugares mais baixos para se assentar, e no entanto, sem ela a vida é impossível. O mestre deve ser como a água: calmo, humilde e indispensável. [15]
Todos os ensinamentos iniciáticos nos dizem que o homem precisa voltar a “ser menino” para atingir a verdadeira iluminação. Isto é, precisa retornar a uma condição de nada saber, de estar sempre perplexo com os acontecimentos e não ter nenhum “conceito” sobre coisa alguma. Ele é uma criança que recupera a inocência, que renega o “eu” que o impede de retornar ao seio da mãe natureza e com ela realizar a união perfeita, que somente um filho, ainda não emancipado psiquicamente, pode ter.
O espírito de uma criança, como sabemos, não “destaca” as coisas dele mesmo; quer dizer , ele ainda não identifica o que “é ele” e o que “ são” as outras coisas. A criança não é “um mundo á parte”, um sujeito que recorta os objetos que vê, como coisas independentes de si próprio. Ao contrário, ela é alguém que se sente como parte do próprio objeto que observa. Voltar a ser criança, no sentido que Jesus disse, é ser capaz de sentir-se como era o homem no inicio da civilização, quando ele ainda não havia se emancipado do quadro geral da natureza e adquirido o conceito “cientifico” de que ele era alguém que poderia domá-la, conceito que, infelizmente, marcou o caminho da ciência oitocentista, orientada pelo pensamento racionalista.
Ser novamente um menino corresponde ao processo de “esvaziamento da consciência’, utilizado pelas religiões orientais, particularmente o budismo, como condição essencial para se atingir o perfeito conhecimento.[16]
A questão da finalidade da vida
Joabert é o Mestre que encontra um dos assassinos na caverna, apunhala-o e depois corta sua cabeça. O assassino, que matou o “espírito humano”, espírito aqui tomado como sendo “a pureza inicial da alma humana”, que existia antes da queda, está morto. E diante da questão da morte, posta á frente dos homens, o Muito Poderoso Mestre pergunta: “ De onde viemos? Que somos? O que a morte fará de nós? Que é o homem? É apenas um átomo, aparecido no seio da mulher e que progressivamente se organiza, se harmoniza em suas inúmeras partes? Que cresce, pensa, cai, transforma-se e volta á causa primária, deixando apenas reminiscência de sua última forma ou conservando uma partícula essencial, mutável e mortal?
Temos aqui o enfrentamento da questão metafísica que tem desafiado a mente humana através de sua história terrestre. Afinal, é o homem apenas uma sombra que passa, um acontecimento despregado de qualquer sentido, que um dia surgiu no universo por causas exclusivamente naturais, ou é ele o resultado de uma Vontade que se manifestou, ao cabo de um longo processo evolutivo que começou, um dia, num átomo que rompeu, por um processo ainda desconhecido, os limites da matéria inanimada?
Um maçom não pode acreditar na primeira hipótese, por que então estaria negando qualquer virtude á prática que adotou. Por que se o homem fosse um acaso perpetrado por leis exclusivamente naturais,“um vírus” inoculado na corrente sangüínea do universo, como o definiu uma vez um romancista, então ele não teria um espírito, não se poderia falar na existência de um Criador, nem haveria qualquer motivo para se tentar uma união com Ele.
Nesse sentido, toda religião, bem como toda prática iniciática não passaria de uma distração infantil de mentes incapazes de conviver com a realidade. Mas, felizmente, temos razões para sentir que as coisas não são assim, que nós não somos apenas matéria desprovida de espírito, seres organizados por leis naturais que só obedecem ao determinismo dos grandes números.
Não. Nós não somos meras relações estatísticas derivadas de interações ocasionais ocorridas na matéria universal, sem qualquer conteúdo finalístico, como pensava aquele triste Antoine Roquentin, personagem do romance de Sartre.[17]
O Muito Poderoso Mestre continua: “A vida do homem é uma centelha, um minuto durante o qual ele sai na noite infinita. Uma voz interior lhe diz: “ Procura ver e saber”; O espaço imenso, aberto diante de si é um obstáculo? Se demora a incerteza, o instante da vida passa, e ele volta á noite sem ter visto a verdade! “
Não obstante o estilo poético dessa exortação, ela contém um conhecimento iniciático do mais alto grau, pois, como já vimos, toda iniciação é uma fórmula, um processo pelo qual o iniciado procura “abreviar” a necessidade da metempsicose, ou seja, aquele processo que consiste em nascer e morrer incontáveis vezes, nas mais diversas condições, para um dia, completamente purificado pela evolução natural da mente, não mais precisar nascer neste mundo.
Foi com essa finalidade, aliás, que se desenvolveram as doutrinas de salvação da alma, através da crença num “Messias” libertador, bem como as práticas de meditação e exercícios ritualísticos, capazes de levar seus praticantes ao Nirvana. [18] Nesse sentido, crer em Jesus Cristo e assumir, de todo coração essa crença, mesmo á custa da própria vida, foi a fórmula que os primeiros cristãos encontraram para abreviar o caminho para se unir á Deus, através do seu Mestre.
A crença em Cristo representou, dessa forma, um poderoso acelerador da iluminação final, tanto quanto a metempsicose das religiões orientais ou a moral taoísta ou ainda a fé do Islã.[19]
A Maçonaria, a seu modo, desenvolve a mesma idéia. A Escada de Jacó, no sentido místico do termo, nada mais é que uma ponte entre o profano e o sagrado, uma “estrada” que conduz o iniciado das trevas para a luz. Realizar a perfeita união com seu Criador é o sentido da vida humana, que só se realiza quando o espírito “cruza” essa ponte e sua luz se transforma em Luz.
A eterna vigilância
É só nesse sentido que poderíamos compreender o simbolismo de “eliminar os assassinos” de Hiram, e porque ele surgiu como uma alegoria apropriada aos introdutores do mito hiramítico na prática da Arte Real. É que ele mostra ao iniciado a necessidade da purificação da sua mente primeiro, antes de prosseguir na sua escalada pelos degraus da Escada de Jacó. Mas não antes de adverti-lo sobre o perigo de se tomá-la por religião e achar que não precisa de nenhuma outra visão da divindade, ou ainda de conhecer outras filosofias de aperfeiçoamento moral.[20]
Na verdade, o que Joahben fez foi exatamente isso. Imediatamente golpeou o assassino e decepou-lhe a cabeça, sem ao menos cogitar que deveria primeiro submetê-lo a um julgamento. O que quer isso dizer? Que nenhuma idéia, nenhum comportamento, nenhuma doutrina deve ser imediatamente descartada, sem um rigoroso exame de seus fundamentos. Desprezar as idéias, os comportamentos, as crenças alheias sem um adequado julgamento, equivale a adotar um espírito dogmático, que é exatamente o que a Maçonaria sempre procurou combater.
Da mesma forma, não deve fazer julgamentos precipitados, condenando alguém sem primeiro fazer um rigoroso exame das suas razões. Por isso Johaben foi devidamente julgado por Salomão, conquanto mais tarde tenha sido absolvido, pois a lealdade e o zelo do seu comportamento falaram mais alto que a sua precipitação.
Na lenda do grau há outro simbolismo que merece adequada apreciação. Nela se diz que o desconhecido que guiou os nove mestres ao local onde foram encontrados os assassinos, estava acompanhado por um cão. O cão é o símbolo da fidelidade e da vigilância. Dentro da lenda, a alusão a um cão trás á baila um ensinamento bastante interessante. É sempre um amigo, um irmão que nos alerta para o erro, para a necessidade de aperfeiçoamento. Muito raramente essa decisão nos é inspirada por uma voz interior. Por isso, o mestre que nos guia é também o cão que nos guarda e nos desperta, sempre vigilante e fiel para que nós não nos desviemos pelo caminho, ou se, despertados, voltemos a dormir.
Essa, aliás, é uma das grandes divisas de todas as escolas iniciáticas. O famoso taumaturgo Gurdjieff, ao discorrer sobre o assunto, dizia que um homem não pode despertar a si mesmo. “Mas se vinte homens combinarem que o primeiro entre eles a acordar acordará os outros, já existe uma probabilidade. No entanto, isso também é insuficiente, pois esses vinte homens podem adormecer ao mesmo tempo, e sonhar que despertam. (....) Esses vinte homens devem ser vigiados por um que não esteja adormecido ou que não adormeça tão facilmente como os outros, (...) Devem procurar um homem desses e contratá-lo para que os desperte e não lhes permita tornar a cair no sono”. [21]
Pressupõe-se que a Maçonaria seja um conjunto de homens despertos, tanto é que, quando um maçom abandona a prática, dele se diz que está “adormecido”. Jesus também encareceu a necessidade de vigilância. “Orai e vigiai”, disse ele, para evitar que se caia em tentação. Pois na aquisição e na prática das virtudes que conduzem, primeiro ao aperfeiçoamento moral, depois á iluminação espiritual, é preciso uma eterna vigilância, já que os vícios dos quais pensamos nos ter livrado sempre estão á espreita, aguardando a oportunidade de voltar. E se nos pegarem desprevenidos, de nada terá valido a missão punitiva dos nove mestres. Precisamos de um mestre que tenha a sensibilidade de um cão para farejar “os assassinos” da nossa virtude, e para evitar que durmamos e sejamos surpreendidos por aqueles a quem caçamos para destruir.
Essa é, no nosso entender, a interpretação do simbolismo do cão que acompanha o mestre desconhecido. Essa interpretação, pensamos nós, é confirmada pelo juramento da Loja em relação aos irmãos eleitos. Diz esse juramento: “Prometemos a estes irmãos recentemente eleitos, nunca abandoná-los em qualquer trabalho empreendido de acordo com os preceitos maçônicos. Nada lhes devemos em interesse pessoal; devemos-lhes o socorro de nossos braços, de nossa influência, de nosso trabalho e auxilio, quando agirem num interesse humanitário e social. Quando um irmão for investido de uma função publica, nós nos empenharemos em sustentá-lo, se proceder corretamente, e em adverti-lo, se desviar do bom caminho. Quando um irmão sofrer, no mundo profano, por causa da sua fidelidade maçônica, devemos-lhe toda a nossa força para libertá-lo”.
Em outras palavras, fidelidade canina e vigilância extrema.[22]
Perdoar e esquecer
Outra virtude que se exalta no ritual do grau é o perdão. O sábio perdoa, o ignorante se vinga. O sábio compreende que o perdão é a virtude que mais estimula o espírito. Por isso Jesus disse a Pedro que um irmão que contra ele pecou deve perdoado não sete, mas setenta vezes sete. Essa é uma virtude fácil de pregar, mas difícil de praticar. Geralmente, o ego ferido fala mais alto do que qualquer alegria que se possa obter de um comportamento desses.
Salomão, perdoando Joahben, quis mostrar que o perdão, longe de ser uma atitude de fracos, é uma virtude que somente uma profunda sapiência pode inspirar. O perdão não pode ser apenas uma atitude política de recomposição da ordem violada. Tem que integrar um sentimento de renúncia a qualquer vingança, no momento e para sempre. Ó verdadeiro perdão tem que ser acompanhado pelo esquecimento da ofensa. Não há perdão sem esquecimento. Se assim não for, jamais será possível perdoar um irmão “setenta vezes sete”.
É claro que essa é uma alegoria de ordem moral. Na prática social, o perdão só pode ser considerado depois que o ofensor tiver efetivamente pago pela ofensa, seja através de um comportamento que recomponha a ordem social violada, ou da dor do arrependimento. Por outro lado, isentar um violador da lei da devida punição significaria a falência de qualquer sistema jurídico ou moral. É no principio na recomposição do erro que repousam os sistemas de proteção social desenvolvidos pela civilização.
O que se quer dizer aqui com perdão e esquecimento é que, em momento algum, deve alguém tomar em suas mãos a Justiça, ou agir com espírito de vingança. E depois da ofensa recomposta não se pode continuar a isolar o ofensor como se ele continuasse ainda em dívida. Infelizmente é isso que ocorre em nossa sociedade. Muitas vezes o ofensor paga, na forma prevista pelo ordenamento jurídico a sua falta, mas jamais volta a gozar do status anterior á sua má ação. Na verdade, a sociedade pode até perdoar, mas jamais esquece.
Ao Mestre Eleito dos Nove, entretanto, que já foi anteriormente Preboste e Juiz, não é lícito esquecer que existem leis naturais, sociais e penais. Todas são compostas do binômio preceito–sanção. O primeiro membro do binômio dispõe o comportamento desejado, o segundo a sanção que será imposta á quem violar o preceito. Engana-se quem pensa que pode violar as leis e escapar da punição. A Justiça pode até demorar, mas nunca falha em encontrar o violador das suas regras. Muitas vezes a punição ocorre da forma mais inusitada, e no momento mais inesperado, mas sempre vem. É a lei da causa e efeito, da qual ninguém escapa.
Não cabe, portanto, ao maçom, exercer vingança, mas sim praticar a Justiça e exercitar, á exaustão, ainda que “setenta vezes sete” a virtude do perdão, porque essa é uma qualidade de reis, que só os fortes possuem, é privilégio de um espírito cuja evolução já se encontra em um estágio bem avançado.
E acompanhado do perdão deve vir o esquecimento da falta. Em termos de sociedade, só assim pode o ofensor ser devidamente reintegrado ao sistema e ser devidamente recuperado.Esse, enfim, conteúdo iniciático do grau nove, denominado Mestres Eleitos dos Nove, que, na nossa opinião, é o mais completo das chamadas Lojas Filosóficas.
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[1] De acordo com a tradição cabalística, o pecado de Adão gerou uma “desordem cósmica” no seio da criação. O assassinato de Abel por Cain foi uma consequência dessa desordem, pois apôs irmão contra irmão, causando discórdia no seio da família humana.
2- Gematria, Notaricon e Temura são três técnicas utilizadas pelos cabalistas para construção de palavras, no alfabeto hebraico. Utilizam-se das propriedades desse alfabeto, cujas 22 letras e sinais representam, concomitantemente, sons e números.
[3]Vincere Aut Mori- Vencer Ou Morrer - Ad Universal Terrarum Orbis Summim Architecti Gloriam = Toda a Glória da terra ao Grande Arquiteto do Universo. Na imagem, o avental do grau , com o punhal e a cabeça decepada do Jubelo, motivos iconográficos que ilustram os ensinamentos do grau.
[4]A origem dessa simbologia está, como vimos, no mito solar. Ela incor-pora os mitos antigos, de Ìsis, Osíris e Seth, o drama egípcio que simbolizava o eterno embate entre as trevas e a luz. Incorpora também, como vimos, a tradição religiosa dos persas, desenvolvida pelo zoroastrismo, que aparece também entre os essênios nas idéias de eterno embate entre “os filhos das trevas contra os filhos da luz”. Essa idéia ganhou contornos de verdadeira doutrina com os gnósticos, que desenvolveram um interessante sistema de pensamento a partir desse tema. Para os gnósticos, os primeiros seres haviam sido construídos por um Deus bom, e tinham todos uma natureza luminosa. Mas alguns desses seres, com inveja do Criador, criaram o mundo da matéria, e para povoá-lo, moldaram homens á imagem e semelhança dos seres luminosos, mas com seus espíritos presos á matéria. São muitas as variantes desse mito, dependendo da escola de pensamento que as elaborou, mas, de alguma forma, todas trabalham com a mesma idéia de “ queda” de um ser celeste e seu trabalho de criação do mundo. E a partir daí desenvolveu-se a idéia de volta, ou de reintegração desse mundo, criado pelos anjos caídos, ao mundo celeste, que é pura luz. Nesse sentido, algumas escolas desenvolveram o mito de um “enviado” de Deus que resgataria a criação humana (As religiões reveladas que desenvolveram a idéia do Messias), enquanto outras, como os budistas e os hinduístas, preferiram trabalhar um “caminho pessoal” de elevação do espírito através da meditação ou simplesmente uma filosofia de vida, baseada na observação da natureza e reprodução dos seus processos, como fazem, por exemplo, os taoístas
[5] Gênesis,4:15.- Esse tema oi explorado por Ridley Scott no filme Noé, no qual Tubal Cain aparece como opositor de Noé e seu principal inimigo na recomposição da raça humana.A história de Cain e Abel é claramente uma metáfora que exprime uma antiga condição sociológica dos povos do Levante (Palestina principalmente) onde os povos que praticavam a agricultura (cananeus, amonitas, moabitas etc) viviam um eterno conflito com os povos pastoris (Israel, principalmente). O fato de Jeová ter preferido as oferendas de Abel(oriundas da agricultura) e desprezado às de Cain (vindas da agricultura) revelam bem o caráter desse conflito, embora, de fato, hoje se possa dizer que Israel simboliza mais Cain do que Abel face à visível supremacia tecnológica dos israelenses sobre seus vizinhos palestinos.
[6] Matheus, 18.7.
[7] Conforme o ritual do grau.
[8] Note-se que as representações dos faraós e sacerdotes egípcios sempre aparecem nessa atitude ritual: pé direito antes do esquerdo, às vezes formando um esquadro.
[9] Simbolicamente, é a libertação da humanidade de seu cativeiro psicológico.
[10] Jorge Adoun- O Grau Eleito dos Nove, pg. 16.
[11] Cf. Alexandrian, op citado, pg. 133.
[12] Na imagem, os nove mestres velam o corpo de Hiram. Fonte:Wikipédia Fundation.
[13] A Versluis- Os Mistérios Egípcios pg. 52. Essa é razão de os mestres maçons marcharem em volta do esquife do Mestre Hiram no sentido anti-horário, (do Oriente para o Ocidente), na cerimônia de elevação do companheiro para mestre. Eles vão na direção do sol, ou seja, à procura da sua luz.
[14] Idem, pg. 53.
[15]A virtude suprema é como a água, /Ambas dão vida aos dez mil seres e a nada se opõem/Buscam os lugares que os homens desprezam/Por isso são comparáveis ao Tão./ Em qualquer situação, a virtude é humildade/ No coração é profundidade insondável/No auxilio é amor/ Na palavra é sinceridade/ No governo é justiça/ Na ação é eficácia/ No movimento é oportunidade/ Não luta, e desse modo é irrepreensível. O Livro do Caminho Perfeito- Lao-Tsé, Verso 10.
[16] O perfeito conhecimento, segundo o budismo, não pode ser adquirido se a mente não for esvaziada de seus preconceitos. Um famoso conto zen ilustra bem essa necessidade. Um discípulo, desejando aprofundar-se nos conhecimentos do método zen procurou o melhor dos mestres nessa disciplina para estudar com ele. Sentado aos pés do grande mestre, começou a falar-lhe de tudo que sabia a respeito a respeito do assunto. Enquanto ele falava o mestre calmamente ouvia e colocava chá numa xícara. A certo momento o tagarela dirigiu-se a mestre dizendo: “ Mestre, o senhor não percebeu que a xícara já está cheia?” “Exatamente”, respondeu o mestre. “como espera aprender o zen se você já está transbordando com a sua própria sabedoria?”
[17] Jean Paul Sartre- A Náusea- Círculo do Livro, 1986.
[18] O Nirvana é o momento supremo de iluminação do budismo. Caracteriza-se por um estado de absoluta imobilidade mental, onde o individuo se desliga de qualquer sensibilidade, paralisando toda e qualquer atividade psíquica. Nesse estado de total imobilidade, ele se liberta completamente da matéria, atingindo a suprema paz, que é, também, a iluminação. Livre de toda atração pela matéria, a mente assim “iluminada” não precisa mais submeter-se á “sansara”, que é a roda dos nascimentos e mortes, jornada á qual a alma tem que se submeter para, num processo evolutivo, eliminar todas as impurezas que a chumbam á matéria.
[19] Veja-se que a fé muçulmana é ainda mais radical na aplicação dessa idéia. Segundo o Corão, um crente que morrer pela fé vai direto para o paraíso, sem qualquer escala por padrões inferiores ou superiores de vida.
[20] Daí o sincretismo adotado pela Maçonaria. Longe de representar um distanciamento da fé cristã ou de outras crenças, trata-se, na verdade de tentativa de unificação do real existente em termos de simbolismo religioso. É a crença de que todas as “ vias de salvação’ desenvolvidas pela humanidade na sua ânsia de união com o Criador tem o seu devido valor. É , enfim, um verdadeiro libelo contra o totalitarismo no terreno das idéias e das crenças.
[21] Citado por Pauwels e Bergier em O Despertar dos Mágicos, pg. 420
[22] Conforme o Ritual do grau nove.
(cONDENSADO DO NOSSO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL" -ED. MADRAS, 2011)
A influência gnóstica do grau nove
Um dos mais importantes graus das Lojas de Perfeição, do ponto vista iniciático, é o chamado Mestre (ou Cavaleiro) Eleito dos Nove, correspondente ao grau nove da Escada de Jacó. Por isso ele é conferido através de elevação ritualística, na qual o drama da morte de Hiram é usado para transmitir ao iniciado maçom conceitos acerca da verdadeira justiça. Nos Mistérios Antigos esse grau correspondia á uma iniciação nos chamados “Mistérios Maiores”, onde o iniciado aprendia o real significado do mito de Osíris, ou seja, o conteúdo metafísico da sua morte e ressurreição em outro estado do “ser” e a necessidade de todo homem passar por esse processo se quiser se libertar da eterna peregrinação pelo mundo da matéria e pela “terra intermediária”, a Tuat.
Na Maçonaria do Rito Escocês, além da influência egípcia, o rito foi enxertado com elementos da tradição hebraica, que nele está presente através de vários símbolos e alegorias emprestados á Cabala.
É possível perceber também várias evocações á tradição hermética, o que certamente revela a contribuição dos “maçons aceitos”, cultores da gnose e da alquimia.
Já nos referimos ás tradições cainitas, que tinham em Cain o iniciador da ciência e do conhecimento. Essas tradições sustentam que foi através de seus trinetos, Jubal, Jabel e Tubalcain que os homens aprenderam as diversas artes e técnicas de produção. Jubal e Jabel deram nome aos Jubelos, que na lenda maçônica são os companheiros invejosos que querem obter de Hiram Abiff a PalavraSagrada, com a qual eles seriam reconhecidos como mestres. Nesse simbolismo está interpolada a idéia que esses “companheiros” Jubelos são, na verdade, usurpadores do conhecimento e destruidores da ordem e da harmonia, utilizando a violência e o crime na aquisição de um direito que só pode ser conferido aos que cumprem o devido processo iniciatório.
Quanto a Tubalcain, os maçons do terceiro grau simbólico já conhecem bem esse nome. Se lembrarmos que na Bíblia, ele aparece como o homem que ensinou á humanidade a arte de curtir peles, tecer lã e fundir metais, então estará fechado o círculo esotérico que envolve o nome dos Jubelos. Os três Jubelos, de acordo com a tradição cainita, são exatamente Jubal, Jabel e Tubalcain, os três iniciados na Arte Real que, detendo o conhecimento técnico que faz uma civilização, queriam o título de mestres, o qual só era conferido á quem tinha esse direito. Possuindo o conhecimento técnico, esses descendentes de Cain julgavam-se merecedores de compartilhar com os mestres arcanos o supremo conhecimento. Não sendo admitidos nessa “confraria de eleitos”, apelaram para a violência, e promoveram a “rebelião” que separou o profano do sagrado, e deu inicio á eterna peregrinação do homem sobre a terra, e sua insana luta para recuperar o estado de beatitude que antes gozara.[1]
Esse simbolismo significa que a posse do conhecimento científico, profano, não leva, por si só, o seu possuidor á iluminação. Por isso Cain e sua família, embora tivessem esse conhecimento, que lhes foi concedido pelos próprios anjos rebeldes, não obstante, foram "expulsos do grupo de eleitos" (o ramo adâmico que gerou a nação de Israel), pois a sua arrogância os perdeu. O assassinato do Mestre Hiram, por esse prisma, simboliza a arrogância do pretenso “sábio” que quer, a todo custo, possuir a verdadeira sabedoria sem passar pela devida iniciação.
A lenda do grau
Depois de realizados os procedimentos ritualísticos devidos ao sepultamento de Hiram, Salomão intentou punir os assassinos do seu mestre arquiteto, ou seja, os Jubelos. Estes, após o crime, haviam se escondido numa caverna lá pelos lados do Monte Carmelo. Um pastor, que os vira no esconderijo, denunciou-os ao rei. Salomão, o qual reuniu os quinze mestres mais antigos do canteiro de obras do templo, e por votação feita entre eles, escolheu nove para uma expedição ao local onde os assassinos estavam escondidos. Liderados por Johaben, os mestres iniciam uma caçada aos criminosos; dois deles, encurralados diante de um abismo, preferiram antes saltar para a morte, do que serem presos. O terceiro, acossado por Johaben dentro de uma caverna, crava no próprio peito um punhal. Após cortarem as cabeças dos três assassinos, os nove mestres voltaram a Jerusalém para dar satisfação ao rei do cumprimento da missão. Salomão, satisfeito com o resultado, deu-lhes o titulo de Mestres Eleitos.
No ritual, o desenvolvimento da lenda foi adaptado a fim de dar vida ao simbolismo que o grau encerra. Nele está presente o rei de Tiro, pois este é um fiel aliado de Salomão. O pastor que denuncia os assassinos, em principio, é confundido com um deles. No ritual é Joahben que mata a punhaladas o assassino e não ele que se suicida. Salomão, em princípio, por achar que Johaben tomou a justiça nas próprias mãos, não gosta da sua atitude e o submete a um julgamento. Depois o declara inocente, cumprimentando-o por seu zelo no cumprimento da missão.
Esse simbolismo foi desenvolvido mais tarde, como informa Jorge Adoun, para fins de expurgar do ritual a idéia de que esse era “um grau de vingança”, o que não se coadunava com o ensinamento maçônico. Então, o julgamento de Johabem passou a significar que a vingança é um sentimento que não deve ser cultivado na Maçonaria. A vingança pertence a Deus. O maçom deve praticar a justiça e não a vingança.
A missão dos Mestres Eleitos deve representar a tarefa do maçom, na sua luta pela identificação e destruição da injustiça e dos vícios que assolam a humanidade, e que, dessa forma “assassinam” todos os dias os Mestres Hiram (o homem virtuoso) da vida. Essa luta é sempre cheia de vicissitudes e perigos. Os mestres eleitos (que são todos os maçons) devem estar imbuídos de coragem, disciplina e zelo pela missão que lhes foi confiada.
Toda a ritualística do grau evoca essa missão justiceira. Panos negros, salpicados com lágrimas prateadas, ornamentam a Loja para lembrar a morte de Hiram. A Loja, no caso, representa uma das câmaras do Templo de Salomão, feita câmara mortuária para velar e prestar as últimas exéquias ao mestre morto. No altar dos juramentos, forrado com um pano negro com lágrimas prateadas, estão o Pentateuco, os Estatutos da Loja, as Constituições da Ordem, duas espadas e um punhal. Nove luzes iluminam o Altar dos Juramentos, com oito delas formando um octógono. Nove mestres, no mínimo, deverão estar presentes á cerimônia. Há somente um Vigilante, o Segundo, com o nome de Stolkin.
O Orador, também chamado “Cavaleiro da Eloqüência”, atende pelo nome de Zabud; o Hospitaleiro, pelo nome de Ahishar, o Secretário pelo nome de Zadcco, o Tesoureiro por Joabert. Todos esses nomes não são encontráveis nos registros históricos dos israelitas, nem nas crônicas bíblicas, já que são composições cabalísticas construídas pela técnica da gematria e da temura, pois como se sabe, as letras do alfabeto hebraico, além de seus significados semânticos também representam valores numéricos.²
Uma bandeira negra com um braço no centro segurando um punhal, encimado pelas iniciais V\ A\ M\ (Vincere Aut Mori), e na parte de cima as iniciais A\ U\ T\ O\ S\ A\ G (Ad Universal Terrarum Orbis Summim Architecti Gloriam)[3], é o símbolo do grau. O avental, de pele branca, forrado em vermelho e negro, tem um braço segurando um punhal, e no quadrado um crânio com duas tíbias cruzadas, circundado por lágrimas prateadas.
No moderno ritual, os iniciados recebem automaticamente o oitavo grau. Porém, quando se apresentam para a iniciação, o fazem na condição de Intendentes dos Edifícios. A eles é dito que “O Mestre Hiram está morto” e que “ O espírito do homem saiu das trevas e lenta e dolorosamente, caminhava para a luz. Mataram o espírito do homem”. [4]
O significado iniciático da lenda
“Os trabalhos do Templo estão abandonados”, diz o 2º Vigilante, “ porque os assassinos de Hiram estão vivos e é preciso que morram”. Com efeito, não pode o homem empreender uma missão de construir “templos á virtude e masmorras ao vicio”, que é o lema da Maçonaria, enquanto seus “próprios vícios”, aqueles que o assassinam diariamente, ainda estão vivos.
Na tradição cabalista, o anjo rebelde Samael, com inveja do Criador, seduziu Eva e com ela gerou Cain, dando inicio á linhagem dos homens maus sobre a terra. Essa linhagem, no entanto, deu origem á ciência, pois dela vieram os conhecimentos de metalurgia, arquitetura, o desenvolvimento da linguagem etc. Foram esses homens, descendentes de Cain, que cultivaram a matéria e aprisionaram o espírito humano nela.
Na crônica bíblica Cain mata Abel, (o mau mata o bom, o espírito é vencido pela matéria, a treva prevalece sobre a luz), mas não poderá ser morto pelo próprio homem, pois Deus assim não o permitirá. E “quem matar Cain será castigado sete vezes em dobro”, razão pela qual ”pôs o Senhor um sinal em Cain, para que ninguém, que o encontrasse, o matasse”.5]
Por isso Salomão, em principio, submete Johaben a um julgamento pela morte do criminoso, por que a “vingança pertence ao Senhor”, porquanto ao homem, ele deve perseguir a Justiça.
A lenda dos Nove Eleitos foi desenvolvida também com a finalidade de adaptar tais conhecimentos iniciáticos aos propósitos morais da Maçonaria. Com efeito, ninguém nela ingressa se não for “eleito”, ou seja, cooptado por alguém que a ela já pertence. O candidato tem que ser apresentado por um membro pertencente ao quadro, em seguida é pesquisado, sondado e afinal “votado” pelos irmãos como digno de fazer parte do grupo. Somente após essa “eleição” é ele iniciado.
Depois, a partir do momento em que é iniciado, o que se requer dele? Que “submeta suas paixões e aperfeiçoe seu espírito, “erguendo templos á virtude e cavando masmorras ao vicio”. Que quer isso dizer? Que ele deve “matar em si mesmo” todos aqueles ”assassinos” que o impedem de ser virtuoso. Que ele justice, com essa morte, o assassinato do “homem justo”, que foi cometido por “aqueles homens maus”, que o desviaram da virtude. Quem são esses “homens, ou anjos maus”? São a ambição desmedida e sem moral, a avareza, a inveja, o ódio, a indiferença pela sorte dos seus irmãos de Ordem ou pela humanidade em geral, a ignorância, a preguiça e todos os vícios e sentimentos que aviltam o homem e o levam a se comportar como “filho das trevas”.
Na mística cristã, Jesus explica bem essa questão com a parábola dos trabalhadores da vinha. Nesse ensinamento, ele mostra que não importa a hora nem o momento em que o homem é chamado para cumprir a sua missão. Alguns podem trabalhar mais ou trabalhar menos. Mas todos, independentemente do tempo que trabalharem, receberão a mesma paga. Porque Deus chama a todos, mas escolhe, realmente, a poucos. Aos “Eleitos” cabe a missão, realmente messiânica, de “matar “os “assassinos” do espírito do homem, para que ele, assim liberto, possa escolher entre permanecer no “mundo das trevas” ou iniciar sua ascensão para o “ mundo da luz”.
Por isso, realmente, não se trata de “vingar” o mestre assassinado, mas sim, destruir o mal representado pelos seus assassinos, como medida de justiça e recomposição do equilíbrio social perdido com esse crime, evitando que ele daí prolifere.
Se quisermos ver nesse simbolismo uma imagem da realidade profana, neste mundo em que vivemos, basta ver como as virtudes, no momento, estão sendo eclipsadas pelo vício. Em toda parte progride o comportamento criminoso, enquanto parece que cada vez mais a virtude se vê obstruída pelas trevas. O simbolismo dos pensadores gnósticos dos primeiros séculos do cristianismo ainda é valido. O combate entre a luz e as trevas nunca pareceu ser mais feroz do que nestes nossos dias. É preciso, hoje mais do que nunca, por em prática o ensinamento contido na lenda dos “Eleitos do Nove” e sair á caça dos “assassinos” do espírito humano que pregam a tolerância com o crime , com a destruição do meio ambiente, com os violações das leis da natureza, e deixar que a Justiça julgue e puna os violadores, pois estes, como disse Jesus, receberão a devida recompensa, já que “ é necessário que ao mundo venham os escândalos, mais ai daqueles por quem os escândalos vem ao mundo” [6].
A missão dos nove mestres
No ritual do grau, o presidente da Loja diz aos Mestres Eleitos que “Desde que estás entre nós, continuastes a sofrer o peso do trabalho abandonado. A humanidade está sufocada pela ignorância, corrompida pelo crime. Será preciso sofrer eternamente? Sob os nossos olhos atentos, crescestes em dignidade; tendes a confiança de vossos irmãos. Podemos contar com a Vossa?”
Evidentemente, se a humanidade não puder contar com aqueles a quem elege, a quem compete livrá-la dos vícios e reconduzi-la á virtude, com quem contará? É a estes que se reserva a luta para recuperar o estado de harmonia, ordem e estabilidade que existia antes que o crime (o crime de Cain, o pecado de Adão, a corrupção da mulher através da Serpente, a sedução de Eva por Samael, etc.), provocasse a queda do homem primitivo, que sabia qual o seu exato lugar na natureza, que fazia parte dela e não era, como se pensa hoje, alguém que deve dominá-la e fazê-la trabalhar em seu beneficio.
Hiram morto é também a humanidade pecadora e decaída que precisará “matar” seus vícios para recuperar a virtude com a qual iluminará o seu espírito. Enquanto esses vícios permanecerem vivos, o trabalho de “construção do templo”, que é o trabalho de aperfeiçoamento moral do indivíduo, através da qual ele atinge a salvação, permanecerá abandonado. Esse trabalho de recuperação moral da humanidade é a missão dos Eleitos.
Entre evocações aos textos bíblicos e alusões á doutrina gnóstica prossegue o ritual:“Quando Salomão soube que Hiram não aparecera entre seus operários, mandou todos para o trabalho e jurou não pagar salário algum se não se descobrisse Hiram, morto ou vivo. Todos os obreiros puseram-se em campo e o corpo de Hiram foi encontrado enterrado sob um ramo de acácia”[7] .
Sim, pois que salário, que pagamento pode ser dado a uma humanidade cujo espírito foi assassinado pelo pecado? Urge, primeiro que se encontre esse cadáver, e é preciso que todos sejam chamados para procurá-lo. E aqui ressurge novamente a parábola dos trabalhadores da vinha. Todos são chamados, apenas alguns serão escolhidos. Essa sabedoria iniciática está presente em todo o ensinamento de Jesus. Veja-se, por exemplo, a parábola da cizânia. Por ela Jesus ensina que os bons e os maus devem ser cultivados juntos. A eles se dá o mesmo tratamento. Mas no dia do julgamento será procedida a separação, por que então será mais fácil saber quem é bom ou mau. Aos primeiros se aproveita como semente, aos segundos se queima como erva daninha. É como o pescador que lança a rede e trás tanto peixes pequenos como grandes. Os grandes são aproveitados os pequenos não.
O ritual antigo exigia que os mestres a serem eleitos para essa missão entrassem na câmara com a cabeça coberta por um véu vermelho. Esse simbolismo, segundo cremos, deve ter sido introduzido no ritual por influência dos hermetistas, particularmente os adeptos da tradição alquímica. Segundo o magistério alquímico, não se pode promover nenhuma transmutação num metal sem primeiro aquecê-lo através do fogo. Aliás, toda a arte de Hiram, como fundidor, assim como de Tubalcain, o Mestre das artes metalúrgicas, consistia em moldar, pela aplicação do calor, os metais. Assim, o fogo, a cor rubra, tem uma importante parte nessa simbologia.
O “metal” a ser aquecido é o próprio recipiendário que, como iniciado, vai sofrer a transmutação. Ele é “amolecido” no seio da Loja, expressão essa significativa do reconhecimento que o maçom elevado ao grau deve ter de seus defeitos e vícios, que precisam ser vencidos. Nas mãos leva o ramo de acácia, que significa a vitória sobre a “morte” psíquica que sofrerá e a prometida ressurreição. Caminha descalço, como os iniciados nos Mistérios de Ìsis e Osíris, que adentravam assim a câmara do ritual, com o pé direito á frente do esquerdo.[8] Essa atitude ritualística evoca também Moisés quando pisou no terreno sagrado do Monte Sinai, onde Deus o convocou para a missão de libertar Israel.[9]
Na liderança do cortejo vem Johaben (ou Joabe), nome cabalístico que significa “Filho de Deus”.Todos os nomes dos mestres que comandam os trabalhos de Loja são obtidos por aplicação de fórmulas cabalísticas. Stolklin, o 2º Vigilante, é a “Sabedoria Verdadeira”, o que quer dizer que nem toda ciência é sabedoria e o verdadeiro mestre deve saber distingui-la. Nessa alegoria está presente, novamente, a alusão aos companheiros assassinos Jubelos, (Jubal, Jabel e Tubalcain), pais da ciência e do conhecimento técnico.
Jesus também advertiu sobre a “falsa sabedoria” quando conclamou seus discípulos a se “guardarem do fermento dos escribas e dos fariseus”, com isso querendo dizer que deviam tomar cuidado com as falsas doutrinas. Em outras palavras, não importa saber muito; é preciso ter saber qualitativo. E isso também diz respeito ao maçom.
Zerbal, por transposição cabalística, significa “inteligência que cria”. Jorge Adoun o compara ao “Verbo Criador” do Evangelho de João.[10]
Note-se, entretanto, que os mestres que comandam o trabalho de eleição dos Nove Eleitos são três. Nesse simbolismo está implícita a idéia de que todo equilíbrio repousa sobre um princípio trinitário, que na Maçonaria é simbolizado pelos três pontos. Novamente, temos aqui a evocação do principio que está na base de todas as religiões deístas, a partir do qual, segundo se crê, todas as coisas são criadas.
Os nove mestres viajam em busca dos criminosos e os encontram encerrados em cavernas e junto a despenhadeiros. A alegoria é por demais reveladora para que precisemos comentá-la. Só podemos eliminar nossos defeitos de personalidade se primeiro reconhecermos que os temos. Para isso é preciso fazer uma rigorosa auto-análise. E para fazê-la é preciso descer ao fundo de nós mesmos, nas cavernas do nosso subconsciente, e enfrentar os abismos que lá existem, e nos quais muitas vezes nos lançamos. Se o fizermos, os nossos “assassinos”, como fantasmas expulsos pela súbita iluminação do ambiente, saltarão para o nada, de onde vieram para obscurecer a luz da nossa alma e prejudicar a ascensão do nosso espírito.
O simbolismo do número nove
Nove são os Mestres que foram eleitos para a missão justiceira. Não há muito acordo entre os autores sobre o significado desse número. Todavia, face ás influências da mathese, técnica cabalística que trata do cálculo metafísico, sabe-se que o número nove simboliza a imortalidade. Assim o informa Ragon em seu Tratado de Ortodoxia Maçônica.[11] Esse número significa um regresso ás origens pelo fato de ser o que está mais próximo do dez, que é o numero perfeito, representativo da Divindade. Ele marca também a etapa última de um processo de purificação, o derradeiro degrau de uma escada que o iniciado terá que galgar obrigatoriamente, antes de integrar-se ao Uno, ao Perfeito que se expressa pelo número dez. Na tradição vedanta, ele simboliza o número da duração da vida material sobre o cosmo, já que Vishnu teve que encarnar nove vezes para salvar a humanidade. Também Jesus Cristo morre á nona hora do dia. O nove encerra, portanto, uma idéia mística de salvação espiritual, de missão cumprida, de cumprimento de uma etapa purificadora, razão pela qual os discípulos de Zaratustra sempre terminavam seus cultos com uma “novena”, tradição essa que também foi adotada pelos cristãos. Nove também foi o número dos cavaleiros que fundaram a Ordem dos Templários, que por nove anos não admitiram nenhum outro membro em sua Fraternidade.
Portanto, não nos parece estranho que esse número tenha sido escolhido para simbolizar a missão dos nove Mestres Eleitos, missão essa que consistia numa expedição destinada a “restaurar” a pureza de um ambiente, pureza essa necessária á construção de um templo dedicado ao Senhor. E aqui está encerrada, talvez, uma das mais importantes idéias contidas em todos os ensinamentos iniciáticos: a de que o espírito humano é o templo da divindade, talvez o único e verdadeiro templo digno desse nome, sendo as construções humanas erguidas para esse fim, nada mais que retratos dessa realidade![12]
Pois não é no coração desse templo, que é o ser humano, que repousa a chama sagrada, a luz que deve ser liberada para que sua alma ganhe, afinal, a condição necessária para se integrar á Divindade? E não é essa a função de todas as religiões, a de “religar” o homem a Deus? E não é este, também, o objetivo das práticas iniciáticas, ou seja, “acelerar” o processo de purificação do espírito, tornando-o capaz de libertar-se de todos os vestígios de matéria, que impedem que ele se transforme em pura luz?
Essa era, inclusive, a finalidade dos Mistérios Egípcios e dos Mistérios de Elêusis, nos quais, no fim das cerimônias ritualísticas, o iniciado obtinha a verdadeira iluminação.
O simbolismo dos Antigos Mistérios
Os egípcios acreditavam que após a separação das estruturas cósmicas, o universo material para onde os homens foram desterrados tornara-se um oceano de desordem, injustiça e desarmonia. A única forma de manter uma ligação com o ”mar da harmonia e bem-aventurança”, que era o céu, os homens deviam viver de acordo com o principio da Maat e honrar devidamente aos deuses. Isso significava que não bastava aos homens apenas viver uma vida honrada, justa, piedosa, mas também era preciso cumprir suas responsabilidades em relação ás coisas divinas. Aqueles que não o fizessem cairiam nas garras de Apépi (ou Tifon), a serpente da morte, onde se fragmentariam, se desordenariam e acabariam desaparecendo por completo, sem alcançar a regeneração de Osíris e sem realizar a união final com Rá, o princípio luminoso que dava vida ao mundo, princípio esse representado pelo disco solar. Viver apenas, por mais justo e piedoso que fosse o homem, mas sem desempenhar suas responsabilidades para com o divino, sujeitava o homem a uma eterna peregrinação pela Tuat “a terra intermediária”, a pitr-yana dos hindus, sem jamais ultrapassar os limites da lua e atingir a iluminação, pela união com a Suprema Luz.
Assim, a prática das virtudes profanas não era suficiente para se alcançar uma união com o Supremo, mas era também preciso irradiar Maat, ou seja, divinizar-se pela iluminação. É nesse sentido que Anderson, por exemplo, sustentou a idéia de nenhum maçom poderia ser um “ateu estúpido nem um libertino irreligioso”, pois estes, além de não acreditarem nas realidades divinas, jamais poderiam sustentar um programa de aprimoramento moral sem uma crença a apoiá-los.
Da mesma forma, a iniciação nos Mistérios de Elêusis era incentivada entre os gregos ilustres como disciplina de aprimoramento espiritual. Um verdadeiro sábio, no mundo grego, tinha que conhecer o significado espiritual e moral dos Mistérios. Com isso ele deixava a superstição de lado, ao tempo que enriquecia em sua espiritualidade.
Uma boa descrição do conteúdo dos Mistérios de Elêusis é dada por Virgilio em seu famoso poema Eneida, no qual o herói Enéas desce aos infernos, e ali “aprende” o processo mediante o qual a vida morre e renasce periodicamente.
Foi um escritor grego do segundo século chamado Apuleio de Madaura, que no seu conto hermético, O Asno de Ouro, desenvolveu o conteúdo metafísico dos Mistérios Egipcios, recuperando para o ocidente o seu verdadeiro significado iniciático. Nesse conto, o iniciado Lúcio (Luz), na forma de um asno, símbolo da ignorância, passa por três iniciações: uma de Ísis, outra de Serápis, e uma final , de Osiris, na qual se processa sua ressurreição em outra esfera mental. Mas tanto nos Mistérios Egípcios quanto nos Mistérios de Elêusis, a iniciação é uma repetição simbólica do drama da regeneração do defunto Osíris, que por sua vez é uma representação do mito solar. O propósito dessas cerimônias era reconstituir “o psiquismo dilacerado” do homem profano, para fazer dele um homem novo, possuidor da verdade que liberta. Esse processo é aquele pelo qual passava a alma do defunto na sua jornada pela Tuat, até a libertação final pela união com Rá. Tanto em termos iniciáticos quanto filosóficos, a iniciação dos Mistérios tinha o mesmo objetivo. De um lado procurava “realizar” a salvação da alma pela sua progressiva espiritualização, e de outro, visava proporcionar ao individuo, enquanto criatura, uma vida moral que não prejudicasse sua existência na “outra esfera”.
Nos Mistérios Egípcios, Osíris era o juiz que julgava os méritos do defunto e decidia se ele podia contemplar a “Divina Realidade”, que era o rosto de Rá. É por isso que nos Livro dos Mortos se orienta o defunto a recitar a Osíris uma oração que dizia: “destruí a iniqüidade por ti, não fiz mal á humanidade.; amparei os membros da minha família, alimentei os famintos, dei abrigo aos órfãos, não fiz o mal, vivi conforme a Maat, não causei mal a ninguém, sou puro, sou puro sou puro...”. Daí, após ter o coração pesado na balança de Anúbis, e ser questionado sobre o nome dos deuses, o defunto, se aprovado, tinha o direito de contemplar a “Divina Realidade”. A cerimônia terminava com uma oração a Rá:
“ Vi o Olho de Rá, quando cheio em Anu;
Que nenhum mal se abata sobre mim,
Nesta Tuat, nem neste salão de Maat,
Pois eu sei todos os nomes dos deuses
Que habitam no interior de Tuat,
Todos os deuses
Seguidores do verdadeiro Deus”[13]
Assim, “ver” a realidade divina e saber o nome dos deuses era a verdadeira gnose, a iluminação produzida pela iniciação aos Mistérios. O homem que então “renascia” em Osíris era um novo homem, que conhecia as causas do bem e do mal. Esse homem não precisaria mais ficar chumbado na roda do eterno nascimento e morte, porque era todo espírito e estava pronto para unir-se ao Principio Criador do universo. Como bem salienta Verluis: “Mas aqui temos o centro do misterioso drama em que Isis ressuscita Osíris. Porque essa ressurreição do divino, esse despertar, o vislumbre da Realidade Divina que ela implica, oblitera as trevas, a confusão e a fragmentação do homem, mesmo aqui no mundo inferior da ignorância, de maneira que, em virtude dos Mistérios, transmitidos desde a própria alvorada da humanidade, o homem pode, depois da morte e durante a vida, reconhecer a Luz que constitui sua essência, (e que no decorrer da iniciação ele vislumbrou), obtendo assim o renascimento num reino celestial, até o final dos tempos, quando a luz se transforma em Luz..”[14]
Somente o renascimento em Osíris, entretanto, não levava o iniciado á definitiva iluminação, pois o processo implicava numa parte psíquica e numa parte moral. A “iluminação” obtida pelo iniciado, exigia que ele agisse na sociedade como “uma luz” a guiar os outros homens que não tinham tido esse privilégio. Daí as palavras de Jesus: “assim brilhe a vossa luz”. Os iniciados, tanto nos antigos Mistérios, quanto na verdadeira doutrina de Cristo, eram iluminados, e nessa condição não podiam sonegar aos outros a sua luz.
Da mesma forma não basta ao iniciado maçom ser elevado a Mestre nas Lojas simbólicas. É preciso que ele pratique Maçonaria, sendo esta entendida como construção moral da humanidade. Por isso é que a iniciação nos antigos Mistérios não conduzia o iniciado a uma “salvação”, do tipo idealizada pelas religiões deistas, assim como a Maçonaria também não trabalha com esse conteúdo doutrinário. A Maçonaria, tal como as antigas seitas iniciáticas gnósticas, não é religião. Aliás, essa é a diferença entre o método iniciático e o caminho preconizado pelas religiões. As religiões pretendem indicar aos seus fiéis o caminho que leva á salvação, enquanto a iniciação é uma fórmula pela qual se pretende descobrir um caminho para a iluminação espiritual. O iniciado não alcança a iluminação por virtude de uma força que age externamente a ele, que o acolhe como “um eleito”, e o leva a um estado de bem-aventurança eterna. O iniciado salva-se por si mesmo, pelo conhecimento da Realidade Divina, que o admite e com ele faz união.
Esse é também o fundamento da prática maçônica. E por isso é que, tanto nas práticas iniciáticas do antigo Egito, quanto no simbolismo da doutrina gnóstica, ela é representada por uma serpente que engole a si mesma, simbolizando que o aprimoramento do espírito se faz através de um processo contínuo de auto-alimentação, onde a moral gera virtude, a virtude gera espiritualidade e esta alimenta novamente a moral, cada vez num grau mais alto da espiral.
A necessidade de um Mestre
Mas há outro ensinamento no ritual do grau nove que precisa ser destacado. Á certa altura, o Muito Poderoso Mestre, presidente da Loja encarrega o Mestre de Cerimônias de guiar os Nove Eleitos na caçada aos assassinos. Esse Mestre é o desconhecido que descobriu o esconderijo dos assassinos e o revelou ao rei. Esse simbolismo encerra um dos mais caros preceitos de todo conhecimento iniciático: o de que não há iniciação possível sem um mestre para guiar o neófito. E que esse mestre deve ser sempre “um desconhecido”.
A verdade contida nesse ensinamento faz parte da vida histórica de todas as doutrinas. Todos os grandes mestres, ao longo de suas vidas, durante seus magistérios, jamais deixaram que se conhecesse sua verdadeira identidade, nem que suas doutrinas fossem proclamadas além dos estreitos limites dos territórios onde viveram. Os verdadeiros mestres nunca escreveram nada, e geralmente seus ensinamentos são transmitidos por tradição oral a um pequeno grupo de discípulos. Assim foi Sidarta Gautama, o Buda, assim também Lao-Tsé, fundador do taoísmo, Maomé, o fundador do Islã, e especialmente Jesus de Nazaré, cujo grupo iniciático talvez jamais tivesse passado de vinte pessoas, se contarmos os doze apóstolos e aquelas pessoas que o seguiam para servi-lo no ministério, como Maria Madalena, Lázaro e suas irmãs, etc.
O verdadeiro mestre só aparece quando o discípulo está pronto e é muito difícil encontrar discípulos realmente aptos para a verdadeira doutrina, além de um limitado círculo de pessoas intimas.
Jesus, em vários de seus ensinamentos, encarece a necessidade de sermos humildes e não se dar a conhecimento público. Ensinou que o mestre deve servir aos seus discípulos e que o maior no reino da terra é o menor nos reinos dos céus; que para se entrar no reino dos céus é preciso ser “criança”, isto é, ser inocente, ter o espírito aberto, sem a arrogância dos que pensam tudo saber. Por isso, o verdadeiro sábio é um menino que se despiu de toda a sua empáfia, toda sua arrogância, sua falsa sabedoria. Seu coração é puro e sua mente não é viciada. Ele tem a humildade dos inocentes, pois somente os inocentes chegam instantaneamente á sabedoria que os “doutos” procuram a vida inteira e jamais encontram.
Nesse sentido, Lao-Tsé também ensina que o verdadeiro sábio é como a água, que procura os lugares mais baixos para se assentar, e no entanto, sem ela a vida é impossível. O mestre deve ser como a água: calmo, humilde e indispensável. [15]
Todos os ensinamentos iniciáticos nos dizem que o homem precisa voltar a “ser menino” para atingir a verdadeira iluminação. Isto é, precisa retornar a uma condição de nada saber, de estar sempre perplexo com os acontecimentos e não ter nenhum “conceito” sobre coisa alguma. Ele é uma criança que recupera a inocência, que renega o “eu” que o impede de retornar ao seio da mãe natureza e com ela realizar a união perfeita, que somente um filho, ainda não emancipado psiquicamente, pode ter.
O espírito de uma criança, como sabemos, não “destaca” as coisas dele mesmo; quer dizer , ele ainda não identifica o que “é ele” e o que “ são” as outras coisas. A criança não é “um mundo á parte”, um sujeito que recorta os objetos que vê, como coisas independentes de si próprio. Ao contrário, ela é alguém que se sente como parte do próprio objeto que observa. Voltar a ser criança, no sentido que Jesus disse, é ser capaz de sentir-se como era o homem no inicio da civilização, quando ele ainda não havia se emancipado do quadro geral da natureza e adquirido o conceito “cientifico” de que ele era alguém que poderia domá-la, conceito que, infelizmente, marcou o caminho da ciência oitocentista, orientada pelo pensamento racionalista.
Ser novamente um menino corresponde ao processo de “esvaziamento da consciência’, utilizado pelas religiões orientais, particularmente o budismo, como condição essencial para se atingir o perfeito conhecimento.[16]
A questão da finalidade da vida
Joabert é o Mestre que encontra um dos assassinos na caverna, apunhala-o e depois corta sua cabeça. O assassino, que matou o “espírito humano”, espírito aqui tomado como sendo “a pureza inicial da alma humana”, que existia antes da queda, está morto. E diante da questão da morte, posta á frente dos homens, o Muito Poderoso Mestre pergunta: “ De onde viemos? Que somos? O que a morte fará de nós? Que é o homem? É apenas um átomo, aparecido no seio da mulher e que progressivamente se organiza, se harmoniza em suas inúmeras partes? Que cresce, pensa, cai, transforma-se e volta á causa primária, deixando apenas reminiscência de sua última forma ou conservando uma partícula essencial, mutável e mortal?
Temos aqui o enfrentamento da questão metafísica que tem desafiado a mente humana através de sua história terrestre. Afinal, é o homem apenas uma sombra que passa, um acontecimento despregado de qualquer sentido, que um dia surgiu no universo por causas exclusivamente naturais, ou é ele o resultado de uma Vontade que se manifestou, ao cabo de um longo processo evolutivo que começou, um dia, num átomo que rompeu, por um processo ainda desconhecido, os limites da matéria inanimada?
Um maçom não pode acreditar na primeira hipótese, por que então estaria negando qualquer virtude á prática que adotou. Por que se o homem fosse um acaso perpetrado por leis exclusivamente naturais,“um vírus” inoculado na corrente sangüínea do universo, como o definiu uma vez um romancista, então ele não teria um espírito, não se poderia falar na existência de um Criador, nem haveria qualquer motivo para se tentar uma união com Ele.
Nesse sentido, toda religião, bem como toda prática iniciática não passaria de uma distração infantil de mentes incapazes de conviver com a realidade. Mas, felizmente, temos razões para sentir que as coisas não são assim, que nós não somos apenas matéria desprovida de espírito, seres organizados por leis naturais que só obedecem ao determinismo dos grandes números.
Não. Nós não somos meras relações estatísticas derivadas de interações ocasionais ocorridas na matéria universal, sem qualquer conteúdo finalístico, como pensava aquele triste Antoine Roquentin, personagem do romance de Sartre.[17]
O Muito Poderoso Mestre continua: “A vida do homem é uma centelha, um minuto durante o qual ele sai na noite infinita. Uma voz interior lhe diz: “ Procura ver e saber”; O espaço imenso, aberto diante de si é um obstáculo? Se demora a incerteza, o instante da vida passa, e ele volta á noite sem ter visto a verdade! “
Não obstante o estilo poético dessa exortação, ela contém um conhecimento iniciático do mais alto grau, pois, como já vimos, toda iniciação é uma fórmula, um processo pelo qual o iniciado procura “abreviar” a necessidade da metempsicose, ou seja, aquele processo que consiste em nascer e morrer incontáveis vezes, nas mais diversas condições, para um dia, completamente purificado pela evolução natural da mente, não mais precisar nascer neste mundo.
Foi com essa finalidade, aliás, que se desenvolveram as doutrinas de salvação da alma, através da crença num “Messias” libertador, bem como as práticas de meditação e exercícios ritualísticos, capazes de levar seus praticantes ao Nirvana. [18] Nesse sentido, crer em Jesus Cristo e assumir, de todo coração essa crença, mesmo á custa da própria vida, foi a fórmula que os primeiros cristãos encontraram para abreviar o caminho para se unir á Deus, através do seu Mestre.
A crença em Cristo representou, dessa forma, um poderoso acelerador da iluminação final, tanto quanto a metempsicose das religiões orientais ou a moral taoísta ou ainda a fé do Islã.[19]
A Maçonaria, a seu modo, desenvolve a mesma idéia. A Escada de Jacó, no sentido místico do termo, nada mais é que uma ponte entre o profano e o sagrado, uma “estrada” que conduz o iniciado das trevas para a luz. Realizar a perfeita união com seu Criador é o sentido da vida humana, que só se realiza quando o espírito “cruza” essa ponte e sua luz se transforma em Luz.
A eterna vigilância
É só nesse sentido que poderíamos compreender o simbolismo de “eliminar os assassinos” de Hiram, e porque ele surgiu como uma alegoria apropriada aos introdutores do mito hiramítico na prática da Arte Real. É que ele mostra ao iniciado a necessidade da purificação da sua mente primeiro, antes de prosseguir na sua escalada pelos degraus da Escada de Jacó. Mas não antes de adverti-lo sobre o perigo de se tomá-la por religião e achar que não precisa de nenhuma outra visão da divindade, ou ainda de conhecer outras filosofias de aperfeiçoamento moral.[20]
Na verdade, o que Joahben fez foi exatamente isso. Imediatamente golpeou o assassino e decepou-lhe a cabeça, sem ao menos cogitar que deveria primeiro submetê-lo a um julgamento. O que quer isso dizer? Que nenhuma idéia, nenhum comportamento, nenhuma doutrina deve ser imediatamente descartada, sem um rigoroso exame de seus fundamentos. Desprezar as idéias, os comportamentos, as crenças alheias sem um adequado julgamento, equivale a adotar um espírito dogmático, que é exatamente o que a Maçonaria sempre procurou combater.
Da mesma forma, não deve fazer julgamentos precipitados, condenando alguém sem primeiro fazer um rigoroso exame das suas razões. Por isso Johaben foi devidamente julgado por Salomão, conquanto mais tarde tenha sido absolvido, pois a lealdade e o zelo do seu comportamento falaram mais alto que a sua precipitação.
Na lenda do grau há outro simbolismo que merece adequada apreciação. Nela se diz que o desconhecido que guiou os nove mestres ao local onde foram encontrados os assassinos, estava acompanhado por um cão. O cão é o símbolo da fidelidade e da vigilância. Dentro da lenda, a alusão a um cão trás á baila um ensinamento bastante interessante. É sempre um amigo, um irmão que nos alerta para o erro, para a necessidade de aperfeiçoamento. Muito raramente essa decisão nos é inspirada por uma voz interior. Por isso, o mestre que nos guia é também o cão que nos guarda e nos desperta, sempre vigilante e fiel para que nós não nos desviemos pelo caminho, ou se, despertados, voltemos a dormir.
Essa, aliás, é uma das grandes divisas de todas as escolas iniciáticas. O famoso taumaturgo Gurdjieff, ao discorrer sobre o assunto, dizia que um homem não pode despertar a si mesmo. “Mas se vinte homens combinarem que o primeiro entre eles a acordar acordará os outros, já existe uma probabilidade. No entanto, isso também é insuficiente, pois esses vinte homens podem adormecer ao mesmo tempo, e sonhar que despertam. (....) Esses vinte homens devem ser vigiados por um que não esteja adormecido ou que não adormeça tão facilmente como os outros, (...) Devem procurar um homem desses e contratá-lo para que os desperte e não lhes permita tornar a cair no sono”. [21]
Pressupõe-se que a Maçonaria seja um conjunto de homens despertos, tanto é que, quando um maçom abandona a prática, dele se diz que está “adormecido”. Jesus também encareceu a necessidade de vigilância. “Orai e vigiai”, disse ele, para evitar que se caia em tentação. Pois na aquisição e na prática das virtudes que conduzem, primeiro ao aperfeiçoamento moral, depois á iluminação espiritual, é preciso uma eterna vigilância, já que os vícios dos quais pensamos nos ter livrado sempre estão á espreita, aguardando a oportunidade de voltar. E se nos pegarem desprevenidos, de nada terá valido a missão punitiva dos nove mestres. Precisamos de um mestre que tenha a sensibilidade de um cão para farejar “os assassinos” da nossa virtude, e para evitar que durmamos e sejamos surpreendidos por aqueles a quem caçamos para destruir.
Essa é, no nosso entender, a interpretação do simbolismo do cão que acompanha o mestre desconhecido. Essa interpretação, pensamos nós, é confirmada pelo juramento da Loja em relação aos irmãos eleitos. Diz esse juramento: “Prometemos a estes irmãos recentemente eleitos, nunca abandoná-los em qualquer trabalho empreendido de acordo com os preceitos maçônicos. Nada lhes devemos em interesse pessoal; devemos-lhes o socorro de nossos braços, de nossa influência, de nosso trabalho e auxilio, quando agirem num interesse humanitário e social. Quando um irmão for investido de uma função publica, nós nos empenharemos em sustentá-lo, se proceder corretamente, e em adverti-lo, se desviar do bom caminho. Quando um irmão sofrer, no mundo profano, por causa da sua fidelidade maçônica, devemos-lhe toda a nossa força para libertá-lo”.
Em outras palavras, fidelidade canina e vigilância extrema.[22]
Perdoar e esquecer
Outra virtude que se exalta no ritual do grau é o perdão. O sábio perdoa, o ignorante se vinga. O sábio compreende que o perdão é a virtude que mais estimula o espírito. Por isso Jesus disse a Pedro que um irmão que contra ele pecou deve perdoado não sete, mas setenta vezes sete. Essa é uma virtude fácil de pregar, mas difícil de praticar. Geralmente, o ego ferido fala mais alto do que qualquer alegria que se possa obter de um comportamento desses.
Salomão, perdoando Joahben, quis mostrar que o perdão, longe de ser uma atitude de fracos, é uma virtude que somente uma profunda sapiência pode inspirar. O perdão não pode ser apenas uma atitude política de recomposição da ordem violada. Tem que integrar um sentimento de renúncia a qualquer vingança, no momento e para sempre. Ó verdadeiro perdão tem que ser acompanhado pelo esquecimento da ofensa. Não há perdão sem esquecimento. Se assim não for, jamais será possível perdoar um irmão “setenta vezes sete”.
É claro que essa é uma alegoria de ordem moral. Na prática social, o perdão só pode ser considerado depois que o ofensor tiver efetivamente pago pela ofensa, seja através de um comportamento que recomponha a ordem social violada, ou da dor do arrependimento. Por outro lado, isentar um violador da lei da devida punição significaria a falência de qualquer sistema jurídico ou moral. É no principio na recomposição do erro que repousam os sistemas de proteção social desenvolvidos pela civilização.
O que se quer dizer aqui com perdão e esquecimento é que, em momento algum, deve alguém tomar em suas mãos a Justiça, ou agir com espírito de vingança. E depois da ofensa recomposta não se pode continuar a isolar o ofensor como se ele continuasse ainda em dívida. Infelizmente é isso que ocorre em nossa sociedade. Muitas vezes o ofensor paga, na forma prevista pelo ordenamento jurídico a sua falta, mas jamais volta a gozar do status anterior á sua má ação. Na verdade, a sociedade pode até perdoar, mas jamais esquece.
Ao Mestre Eleito dos Nove, entretanto, que já foi anteriormente Preboste e Juiz, não é lícito esquecer que existem leis naturais, sociais e penais. Todas são compostas do binômio preceito–sanção. O primeiro membro do binômio dispõe o comportamento desejado, o segundo a sanção que será imposta á quem violar o preceito. Engana-se quem pensa que pode violar as leis e escapar da punição. A Justiça pode até demorar, mas nunca falha em encontrar o violador das suas regras. Muitas vezes a punição ocorre da forma mais inusitada, e no momento mais inesperado, mas sempre vem. É a lei da causa e efeito, da qual ninguém escapa.
Não cabe, portanto, ao maçom, exercer vingança, mas sim praticar a Justiça e exercitar, á exaustão, ainda que “setenta vezes sete” a virtude do perdão, porque essa é uma qualidade de reis, que só os fortes possuem, é privilégio de um espírito cuja evolução já se encontra em um estágio bem avançado.
E acompanhado do perdão deve vir o esquecimento da falta. Em termos de sociedade, só assim pode o ofensor ser devidamente reintegrado ao sistema e ser devidamente recuperado.Esse, enfim, conteúdo iniciático do grau nove, denominado Mestres Eleitos dos Nove, que, na nossa opinião, é o mais completo das chamadas Lojas Filosóficas.
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[1] De acordo com a tradição cabalística, o pecado de Adão gerou uma “desordem cósmica” no seio da criação. O assassinato de Abel por Cain foi uma consequência dessa desordem, pois apôs irmão contra irmão, causando discórdia no seio da família humana.
2- Gematria, Notaricon e Temura são três técnicas utilizadas pelos cabalistas para construção de palavras, no alfabeto hebraico. Utilizam-se das propriedades desse alfabeto, cujas 22 letras e sinais representam, concomitantemente, sons e números.
[3]Vincere Aut Mori- Vencer Ou Morrer - Ad Universal Terrarum Orbis Summim Architecti Gloriam = Toda a Glória da terra ao Grande Arquiteto do Universo. Na imagem, o avental do grau , com o punhal e a cabeça decepada do Jubelo, motivos iconográficos que ilustram os ensinamentos do grau.
[4]A origem dessa simbologia está, como vimos, no mito solar. Ela incor-pora os mitos antigos, de Ìsis, Osíris e Seth, o drama egípcio que simbolizava o eterno embate entre as trevas e a luz. Incorpora também, como vimos, a tradição religiosa dos persas, desenvolvida pelo zoroastrismo, que aparece também entre os essênios nas idéias de eterno embate entre “os filhos das trevas contra os filhos da luz”. Essa idéia ganhou contornos de verdadeira doutrina com os gnósticos, que desenvolveram um interessante sistema de pensamento a partir desse tema. Para os gnósticos, os primeiros seres haviam sido construídos por um Deus bom, e tinham todos uma natureza luminosa. Mas alguns desses seres, com inveja do Criador, criaram o mundo da matéria, e para povoá-lo, moldaram homens á imagem e semelhança dos seres luminosos, mas com seus espíritos presos á matéria. São muitas as variantes desse mito, dependendo da escola de pensamento que as elaborou, mas, de alguma forma, todas trabalham com a mesma idéia de “ queda” de um ser celeste e seu trabalho de criação do mundo. E a partir daí desenvolveu-se a idéia de volta, ou de reintegração desse mundo, criado pelos anjos caídos, ao mundo celeste, que é pura luz. Nesse sentido, algumas escolas desenvolveram o mito de um “enviado” de Deus que resgataria a criação humana (As religiões reveladas que desenvolveram a idéia do Messias), enquanto outras, como os budistas e os hinduístas, preferiram trabalhar um “caminho pessoal” de elevação do espírito através da meditação ou simplesmente uma filosofia de vida, baseada na observação da natureza e reprodução dos seus processos, como fazem, por exemplo, os taoístas
[5] Gênesis,4:15.- Esse tema oi explorado por Ridley Scott no filme Noé, no qual Tubal Cain aparece como opositor de Noé e seu principal inimigo na recomposição da raça humana.A história de Cain e Abel é claramente uma metáfora que exprime uma antiga condição sociológica dos povos do Levante (Palestina principalmente) onde os povos que praticavam a agricultura (cananeus, amonitas, moabitas etc) viviam um eterno conflito com os povos pastoris (Israel, principalmente). O fato de Jeová ter preferido as oferendas de Abel(oriundas da agricultura) e desprezado às de Cain (vindas da agricultura) revelam bem o caráter desse conflito, embora, de fato, hoje se possa dizer que Israel simboliza mais Cain do que Abel face à visível supremacia tecnológica dos israelenses sobre seus vizinhos palestinos.
[6] Matheus, 18.7.
[7] Conforme o ritual do grau.
[8] Note-se que as representações dos faraós e sacerdotes egípcios sempre aparecem nessa atitude ritual: pé direito antes do esquerdo, às vezes formando um esquadro.
[9] Simbolicamente, é a libertação da humanidade de seu cativeiro psicológico.
[10] Jorge Adoun- O Grau Eleito dos Nove, pg. 16.
[11] Cf. Alexandrian, op citado, pg. 133.
[12] Na imagem, os nove mestres velam o corpo de Hiram. Fonte:Wikipédia Fundation.
[13] A Versluis- Os Mistérios Egípcios pg. 52. Essa é razão de os mestres maçons marcharem em volta do esquife do Mestre Hiram no sentido anti-horário, (do Oriente para o Ocidente), na cerimônia de elevação do companheiro para mestre. Eles vão na direção do sol, ou seja, à procura da sua luz.
[14] Idem, pg. 53.
[15]A virtude suprema é como a água, /Ambas dão vida aos dez mil seres e a nada se opõem/Buscam os lugares que os homens desprezam/Por isso são comparáveis ao Tão./ Em qualquer situação, a virtude é humildade/ No coração é profundidade insondável/No auxilio é amor/ Na palavra é sinceridade/ No governo é justiça/ Na ação é eficácia/ No movimento é oportunidade/ Não luta, e desse modo é irrepreensível. O Livro do Caminho Perfeito- Lao-Tsé, Verso 10.
[16] O perfeito conhecimento, segundo o budismo, não pode ser adquirido se a mente não for esvaziada de seus preconceitos. Um famoso conto zen ilustra bem essa necessidade. Um discípulo, desejando aprofundar-se nos conhecimentos do método zen procurou o melhor dos mestres nessa disciplina para estudar com ele. Sentado aos pés do grande mestre, começou a falar-lhe de tudo que sabia a respeito a respeito do assunto. Enquanto ele falava o mestre calmamente ouvia e colocava chá numa xícara. A certo momento o tagarela dirigiu-se a mestre dizendo: “ Mestre, o senhor não percebeu que a xícara já está cheia?” “Exatamente”, respondeu o mestre. “como espera aprender o zen se você já está transbordando com a sua própria sabedoria?”
[17] Jean Paul Sartre- A Náusea- Círculo do Livro, 1986.
[18] O Nirvana é o momento supremo de iluminação do budismo. Caracteriza-se por um estado de absoluta imobilidade mental, onde o individuo se desliga de qualquer sensibilidade, paralisando toda e qualquer atividade psíquica. Nesse estado de total imobilidade, ele se liberta completamente da matéria, atingindo a suprema paz, que é, também, a iluminação. Livre de toda atração pela matéria, a mente assim “iluminada” não precisa mais submeter-se á “sansara”, que é a roda dos nascimentos e mortes, jornada á qual a alma tem que se submeter para, num processo evolutivo, eliminar todas as impurezas que a chumbam á matéria.
[19] Veja-se que a fé muçulmana é ainda mais radical na aplicação dessa idéia. Segundo o Corão, um crente que morrer pela fé vai direto para o paraíso, sem qualquer escala por padrões inferiores ou superiores de vida.
[20] Daí o sincretismo adotado pela Maçonaria. Longe de representar um distanciamento da fé cristã ou de outras crenças, trata-se, na verdade de tentativa de unificação do real existente em termos de simbolismo religioso. É a crença de que todas as “ vias de salvação’ desenvolvidas pela humanidade na sua ânsia de união com o Criador tem o seu devido valor. É , enfim, um verdadeiro libelo contra o totalitarismo no terreno das idéias e das crenças.
[21] Citado por Pauwels e Bergier em O Despertar dos Mágicos, pg. 420
[22] Conforme o Ritual do grau nove.
(cONDENSADO DO NOSSO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL" -ED. MADRAS, 2011)