O que é arte - Erigindo Muros x Colecionando Instrumentos
Tenho uma amiga que tinha a tradição de comemorar a virada de ano em sua casa. É uma casa muito gostosa no alto de um morro. No meio do mato, próximo à Torre Digital, um dos lugares mais altos do DF, portanto bem frio. Um primo dela que amava cozinhar (acabou se formando em gastronomia) fazia entradas, caldos e um jantar. Naquele ambiente maravilhoso eu conversava com o Daniel sobre música. Ele falava que havia amadurecido, gostava de apreciar a música inteira. Nos nossos vinte anos éramos quase adolescentes. Alguns de nós, eu inclusive, havíamos aprendido a gostar do rock pesado há pouco tempo. Nesta época era comum juntar uns três amigos e ficar ouvindo e comentando uma parte específica de uma música – como um solo do Megadeath. O Daniel passara desta fase. Em sua maturidade já entendia que cada trechinho estava inserido em um contexto fornecido pela música como um todo. A conversa foi caminhando para outras músicas, perguntei para ele a respeito da minha banda favorita à época.
No meu universo ‘Cordel de Fogo Encantado’ foi a maior febre que já aconteceu. O show deles era absolutamente espetacular. Eram meninos novos, de idade próxima às nossas. Eles faziam uma apresentação que misturava teatro, bumba meu boi, rock e, claro, cordel. Para mim surgiram do nada, um sucesso repentino. De repente todas as pessoas com quem eu convivia, mesmo que de círculos diferentes, conheciam a banda. Sempre que havia um sarau umas três pessoas ensaiavam para recitar o cordel que o Liminha declamava no show, ‘Ai! se sesse’.
Daniel – que era músico, gaitista – respondeu que gostava, mas os achava músicos ruins. Repliquei que a música tinha muita força, que o solo de violão (no lugar do da guitarra) era incrível. Daniel disse que era mal tocado, que ele arranhava as cordas – especialmente em shows. Atualmente tenho muita consciência de um aspecto do meu gosto musical: prefiro a verve, a presença e a empatia à técnica. Sempre gostei de Legião Urbana, Cássia Eller, The Doors, Cazuza, Chico Buarque, Nirvana. Mesmo quando gosto dos músicos virtuosos eu gosto quando a virtuose serve a uma força empática bruta: Gosto da Elis Regina e da Janis Joplin berrando, gosto do Jimi Hendrix loucão em sua guitarra. Poucas vezes a sutileza me apetece. Frequentemente prefiro uma execução ruim à uma execução perfeita. Maior exemplo é Nação Zumbi. A técnica deles melhorou muito, entretanto gosto mais da sua versão antiga. Sendo assim a crítica de que o toque do violão do ‘Cordel do Fogo Encantado’ tinha pouca técnica me atingiu de uma maneira estranha.
Por que esta exigência em relação à técnica? Duas respostas concomitantes, qual o peso de cada uma é impossível dizer. Primeiro porque seu conhecimento funciona como uma luneta. Onde eu (leigo) vejo céu estrelado ele vê os anéis de saturno, consegue discernir cada estrela de órion. Ele, com seu ouvido apurado, está interessado nesta riqueza que me é inacessível. Segundo porque seu conhecimento funciona como um grilhão. Tal qual prisioneiros acorrentados a bolas de ferro para que sua locomoção fosse prejudicada seu conhecimento o condena a desgostar do que fica abaixo de critérios. O mesmo conhecimento pode ser uma luneta ou um grilhão. Pode no enriquecer nossos horizontes ou nos condenar a recusar caminhos alternativos.
Falei ao Daniel que a originalidade do Cordel de Fogo Encantado tinha mérito. Ele concordou. Mas fez questão de salientar que existe um caminho muito mais elevado: é possível dominar toda a técnica e, a partir daí, fazer sua contribuição artística, dar o seu olhar. Este é um caminho válido e nobre. É o que a academia defende: devemos fazer graduação, mestrado, doutorado só então - após dominar tudo o que já foi dito em determinada área bem específica - estar habilitado a fazer uma contribuição significativa. Daniel se encantava com a possibilidade de subir em ombros de gigantes.
Uma obra de arte é uma porta que permite a quem tiver interesse e capacidade acessar algo muito pessoal de seu autor. Será que só quem tem uma habilitação de marceneiro pode construir tais portas? Será dominar tudo o que foi dito necessário para dizer algo original? Ter o conhecimento teórico como pré requisito para contribuir através de uma obra é transformar o conhecimento em tijolos de um muro a ser transposto. Quanto mais conhecimento mais alto é o muro, mais difícil falar algo pertinente. Ao invés de ter conhecimentos como pré requisitos defendo conhecimentos como instrumentos e insumos, como pincéis e tinta para um pintor. Ter à mão muitos conceitos e referências amplia as possibilidades do pintor. Entretanto mesmo com apenas um pincel e uma tinta já me atrevo a fazer minha obra. Desta maneira escrevo meus ensaios. Certamente ignoro muitos teóricos importantes. Mesmo assim me atrevo a pintar a minha definição.
Existem dois tipos de conhecimento. O teórico, possível de ser escrito, explicado. Existe o conhecimento heurístico, construído através das vivências pessoais. O conhecimento como exigência funciona como empecilho tanto para o consumidor como para o criador. O conhecimento como possibilidade funciona como um instrumento tanto ao consumidor como para o criador. Na perspectiva do consumidor os conhecimentos como exigência é um grilhão. É o preconceito contra às obras que não alcançam seus padrões técnicos. Na perspectiva do criador os conhecimentos como exigência é como um muro. Apenas após dominar tudo é permitido cimentar mais um tijolo no muro (o tornando ainda mais alto e intrasponível). Na perspectiva do consumidor os conhecimentos como possibilidade são como lunetas, permitem enxergar nuances invisíveis aos leigos, enriquecem os horizontes. Na perspectiva do criador os conhecimentos como possibilidades são como instrumentos. São usados de acordo com a disponibilidade e com a necessidade. Pintamos os quadros com as cores que temos e que queremos. Você gosta das cores com que estou pintando a definição de arte?
Ai! Se sêsse!...
Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dos se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!
Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?
E se eu me arriminasse
e tu cum insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?...
Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!
*Poeta: Zé da Luz