O que é arte - Subjetividade x Intersubjetividade - Destruindo a fundação do prédio
Ainda no segundo grau um amigo se associou ao Partido da Causa Operária. Foi impressionante, rapidamente seu modo de ver o mundo mudou. Lembro de conversamos sobre o filme ‘Matrix’ no ônibus. Ele comparando o marxismo às pílulas oferecidas ao Neo. Sua vida passou a girar ao redor do partido. Mesmo aos domingos, em almoços de família ele trazia o Marxismo em sua vertente Leninista. Uma pessoa coerente com o que acredita é um ponto fora da curva. Seja a pessoa vegana, cristã ou, como neste caso, marxista. Ela sempre traz um desconforto a todos que que divergem de suas orientações. Imagine ter que chamar aquele seu amigo vegano a quem você ama tanto a um jantar. Imagine sair, beber além da conta e falar o que passar pela cabeça em frente ao seu amigo cristão (que jejua toda sexta). Imagine domingão se reunir com toda a família (de avô, tios, netos) e conversar sobre como a revolução marxista mundial está próxima.
Na minha experiência pessoal ninguém fica tentando convencer o cristão de que os fundamentos de suas crenças são fracos. “Cara, você vai acreditar em um livro escrito há dois mil anos? Um que afirma, através fontes indiretas, que um homem literalmente transformou água em vinho?” Entretanto todo mundo tentava tentava convencer o Gregório a sair do comunismo. É claro que em seu acampamento no PCO, mesmo antes de ler qualquer livro, ele aprendeu toda a contra argumentação genérica às críticas usuais.
O conforto cognitivo é a tranquilidade de que nossas crenças são pertinentes. Eventualmente algum valor é posto em cheque. Isto acontece quando percebemos em alguma situação prática que um valor é inconciliável com outro. Neste caso fazemos todo o tipo de malabarismo intelectual para conciliar nossos valores e nos manter em nosso conforto cognitivo. O desconforto também vem quando sentimos nossas crenças ameaçadas através de uma argumentação consistente. Neste caso o que procuro fazer é ponderar com muita calma com a disposição genuína de mudar de crença. De maneira inconsciente, entretanto, posso recorrer a argumentos genéricos e inconsistentes que asseguram meu conforto cognitivo. Nem sempre os indivíduos precisam ser originais em suas defesas. Os sistemas de conhecimento têm suas defesas próprias.
Segundo o marxismo existe uma verdade objetiva alcançada através do método científico. Ela assegura que as sociedades evoluem através da luta de classes até chegarem ao estágio mais evoluído, o comunismo. Em contraposição à verdade objetiva (comunismo) existem opiniões que são reflexo da classe dominante da época (ideologia). Ou seja, qualquer argumento que apresentassem contrário às suas crenças ele apreciaria com muito pouco cuidado. Ele chegou a me dizer que eu defendia a ideologia da classe dominante. No alto de seus dezesseis anos (eu tinha dezoito) ele afirmava que, em regra, as pessoas defendem a ideologia que as classes dominantes disseminam através da mídia. Entendi que a crítica era impessoal, se estendia à população em geral. De algum modo, entretanto, me senti ofendido. Será que eu era um ignorante repetidor de ideias dos outros?
No segundo mandato da Dilma eu ainda assistia à Globo News. Qual foi a minha surpresa ao perceber que o jornal usava exatamente o mesmo mecanismo para desqualificar o governo da época. Os jornalistas se apresentavam como neutros. Os entrevistados (economistas liberais) eram apresentados como representantes da verdade objetiva (alcançada através da ciência econômica). O lado contrário ao jornal era fantasia, a verdade está aí, é concreta. Certamente uma verdade simples repetida é mais crível do que uma confrontação minuciosa entre duas maneiras de pensar.
O uso do conceito ‘verdade’ na mídia e no fala cotidiana sempre me perturbaram muito. Aparentemente verdade é óbvia, objetiva, concreta e está no chão. Recusar a verdade é um misto de burrice e auto-enganação. Já vi um argumento ser recusado por ser muito abstrato. Concretamente a verdade é irrecusável e independe do ponto de vista. A verdade é objetiva! O subjetivo é diferente para cada um (a beleza, por exemplo). Já o objetivo é independente de ponto de vista, de conceitos, da visão. Uma vez em uma discussão com um amigo o desfiei a achar algum conceito objetivo. Ele pegou um lápis e o soltou. A gravidade, demonstrou com este simples gesto, é objetiva, concreta, está a vista de todos, é irrecusável.
Como será que alguém que ignora o conceito de gravidade reagiria à demonstração do João? A gravidade é um conceito sólido, demonstrado pela ciência, verificado repetidamente por qualquer bebê que derruba brinquedos de propósito, por todo distraído que quebra os copos da casa, por todo bêbado que tem dificuldade de permanecer em pé. João teria facilidade em explicá-lo a um pobre ignorante. Seria como escrever em um livro em branco. Talvez a única dificuldade fosse se referir ao conceito.
Se eu e você conversarmos a respeito, basta uma palavra “gravidade” e todo o conceito é resgatado em cada uma de nossas mentes. Talvez o conceito seja um pouco diferente em cada um dos nossos sistemas de crença. Talvez você se lembre da lua, em como ela controla o mar e em como o nascer do sol é lindo na maré baixa. Enquanto eu talvez lembre do último tombo que tive no futebol. Talvez um de nós lembre que a atração entre os planetas é inversamente proporcional ao quadrado de sua distância e o outro nunca tenha aprendido isto. Mesmo assim o conceito de gravidade que eu e você temos é suficientemente parecido em cada um dos nossos sistemas de crenças. Facilmente ambos resgatamos o conceito tanto racionalmente como intuitivamente. Racionalmente porque podemos falar conscientemente, intuitivamente porque resgata anos de malabarismo com nossos corpos físicos e os objetos que nos rodeiam (conhecimento heurístico).
Mesmo sem usar palavra alguma João se referiu a um conceito que temos em comum, um conceito cuja familiaridade é tão grande que o faz parecer inevitável. Se fizesse o mesmo artifício a alguém que ignora o conceito a referência seria impossível. Quantas horas de explicação seriam necessárias para ensinar este simples conceito? Como você começaria esta explicação? Começaria explicando os conceitos de aceleração e inércia? Ou começaria fazendo uma introdução sobre a maçã caindo na cabeça de Newton. Você acha que a pessoa sairia convencida de que esta tal de “gravidade” realmente existe? Mesmo a alguém que desconhece qualquer conceito similar explicar o conceito ‘gravidade’ é difícil.
Entretanto cada um de nós se assemelha mais a um livro preenchido. Temos nossos próprios sistemas de crença. Uma pessoa poderia dizer que as coisas vão em direção ao chão porque algum deus as puxa. Aristóteles tinha uma explicação elegante que decifrava porque uns objetos são puxados para baixo (como uma pedra) e uns são puxados para cima (como a fumaça). Cada objeto seria composto por uma combinação de elementos. Cada elemento é atraído pelo seu próprio tipo (como um imã). Se um objeto tiver muito elemento terra ele é puxado para baixo (onde há muita terra), se tiver muito elemento ar é puxado para cima(pois o céu é cheio de ar). Caso conversássemos com Aristóteles é bem possível que abandonássemos o nossos sistema de crenças em favor do dele, ele deveria ser bem persuasivo.
O que existe são verdades compartilhadas em sistemas de crenças. Os conceitos, assim como as verdades relacionadas a estes conceitos, são intersubjetivas. Conceitos suficientemente parecidos podem ser referidos entre pessoas com sistemas de crenças suficientemente parecidos. Isto difere da subjetividade e da objetividade. Na subjetividade a verdade é específica a cada um. Na objetividade a verdade é necessária, igual para todos independente do sistema de crenças. O que no dia a dia chamamos de objetividade é a intersubjetividade.
No contexto da falta de uma verdade objetiva/concreta/universal alguém poderia defender que a evolução do conhecimento é impossível. Isto é incorreto. O conhecimento evolui através de críticas e experimentos. Apenas teorias falseáveis estão sujeitas ao teste empírico. Uma teoria muito vaga é imune à críticas. O tema da evolução das ideias e dos conceitos foge ao escopo dos meus ensaios (que são relacionados à arte). Se o tema interessar me peça que faço um ensaios falando das ideias do Popper.
As pessoas suas crenças cimentadas em seus sistemas cognitivos como tijolos são cimentados na fundação de um prédio. Anos de experiência as mostram, intuitivamente, que suas crenças são adequadas.Em alguns casos o mundo endossa suas crenças (cada vez que derrubo um lápis demonstro a gravidade). Em outros casos a crença é muito enraizada, é muito importante para seus sistema de crenças. Desta maneira, mesmo o mundo apresentando evidências em contrário ao seu modo de pensar, a pessoa faz malabarismos intelectuais para manter seu conforto cognitivo. Meu primeiro objetivo neste ensaio foi pegar uma picareta e destruir a fé na existência da verdade objetiva/universal/concreta. Meu segundo objetivo foi apresentar os conceitos de subjetividade e intersubjetividade.
Intersubjetividade é o compartilhar um mesmo conceito (como gravidade) ou uma sintaxe (maneira com que um filme é editado) dentro de um sistema de entendimento similar. A subjetividade é decorrente da incompatibilidade entre algum ponto do sistema de entendimento de duas pessoas. A compreensão destes dois conceitos é a base do entendimento da experiência artística. Defenderei em futuro ensaio que a intersubjetividade é o que possibilita o acesso à compreensão de uma obra de arte. Ao passo que a subjetividade está relacionada ao aspecto transformador da experiência artística.