Morte do Ego e Tradição Oriental

Muito se tem dito ultimamente sobre morte do ego, principalmente devido à divulgação que o budismo tem conquistado aqui no ocidente. Até gente que não tem a ver com a tradição oriental, como new agers e coachs por aí, como o Copini, têm falado sobre a importância de matar o ego.

Isso gera muita confusão na cabeça das pessoas porque é um método oriental que se aplica unicamente a um contexto oriental. Existe um entendimento oriental do que é o Eu/Ego. Não é o mesmo que o ocidental. Tem gente que acha que matar o ego é matar a própria individualidade, outros pensam que é matar o orgulho, ou até mesmo matar o egocentrismo em nós, só que essas três coisas não passam de conceitos ocidentais.

O ocidente é estranho à ideia de matar o Eu. O Eu é o próprio fundamento do Ocidente. O ocidente tenta aperfeiçoar o Eu, ordenar o Eu, ter um Eu mais consciente, um Eu altruísta, um Eu bondoso etc. Só que nossos conceitos de bem são projeções nossas. Um idealista de esquerda e um ultrarreacionário pensam, ambos, estarem lutando pelo bem coletivo. Você pode enxergar isso em qualquer área, não só em política. O bem que a gente acha que pode fazer está limitado por nosso próprio campo de observação. Você acha que está fazendo o bem, mas está projetando no mundo suas representações interiores desses valores, ou seja, até mesmo o bem e o altruísmo são projeções do nosso ego.

O budismo, na verdade, não é tão politicamente correto quanto a imagem que os divulgadores daqui, como a Coen e o Lama Michel passam, é uma imagem que eles cuidam de passar de maneira a chocar menos, a assustar menos. Se um ocidental mergulhar fundo na essência da tradição oriental, ele vai passar por uma ruptura completa. Uma ruptura não apenas psicológica, mas uma ruptura ontológica – de fundamentos da realidade.

Se a bondade é uma projeção de mim, meus ideais de justiça, meu idealismo, são também projeções de mim. Tem pessoas, por exemplo, que veem na caridade uma forma de fazer o bem. Outras veem na caridade uma forma de manter uma sociedade conformada e hipócrita, que evita mudanças estruturais (como de classe). Fazer o bem é realmente bom até que ponto?

Matar o ego não tem a ver com se tornar bom. O ego age sendo uma vozinha interna que compara, julga as coisas, avalia as coisas e, principalmente, relaciona tudo consigo mesma. O mundo acontece por si – o mundo não gira em torno de nós (mas o ego faz parecer com que gire). É o ego que te diz que as pessoas fazem tal coisa por sua causa, ou que as coisas acontecem de tal forma para você, que a vida é assim e assada para você, que os outros não te entendem etc.

Em uma palestra, a Coen deixou claro que quem perpetua essa condição de vítima e injustiçado na verdade tem um ego muito maior que um Donalt Trump. O que ela quis dizer, é que ter ego é estar ensimesmado. Estar ensimesmado é se colocar de tal maneira como centro das coisas que você não consegue observar a realidade de forma neutra. E quando você julga a realidade de maneira negativa, você também está agindo com o seu ego.

Não é só quando você se acha bom que você está sendo egoico. Não é só quando você se acha melhor que você está sendo egoico. Se você acha pior, se você se critica, você também está sendo egoico. Você está comparando, está julgando!

A gente, aqui no ocidente, tem o ego como sinônimo de orgulho, mas no oriente não é assim. O ego é o que eles chamam de “pequena mente”. Eles usam esse termo para diferenciar da “grande mente”. A pequena mente é a mente que fragmenta a realidade e avalia as coisas com relação a si mesma – o que é bom é o bom para mim; o que é ruim é o ruim para mim; tive um sucesso; tive um fracasso. Achar que teve um fracasso, na verdade, é tão egoico quanto achar que teve um sucesso.

Para agir sem ego, você tem que estar disposto até mesmo a ser interpretado de maneira errada, porque a interpretação que os outros fazem de você tem a ver com eles, e não com você. Se alguém interpreta uma determinada intenção em algo que você fala ou faz, isso tem a ver com o quanto essa pessoa projeta essas coisas na realidade dela, e não com você, nem com o seu interior, que não deveria estar preocupado em controlar a reação dos outros.

Como reagir sem ego? Como fazer as coisas, falar e agir, sem ego? O ego surge no momento em que você compara e age com intenção. Aquele primeiro reflexo, aquela primeira coisa que você fez, aquela primeira reação mais espontânea que surge é a reação sem ego, porque ela é a reação que não teve nem tempo de ser julgada. Surge o ego no momento em que você submete essa primeira reação a uma avaliação na qual você coloca na balança como que ela vai repercutir nos outros e na sua imagem. Para agir sem ego, você não tem que ficar tentando lutar contra o ego, imaginando que está lutando contra o seu orgulho, porque quem luta já é o ego! Você não tem que lutar contra pensamentos, porque isso já seria pensar com o ego. Qualquer oposição pertence ao ego – inclusive a oposição aos próprios impulsos.

A maneira de matar o ego cotidianamente, no dia-a-dia, na interação com os outros, é se tornando cada vez mais capaz de expressar-se espontaneamente sem julgar nem a si mesmo e nem aos outros. Deixar que as coisas aconteçam psiquicamente, antes que venha a voz que julga. É inevitável – nós somos humanos, temos emoções espontâneas, você pode sentir ciúme ou raiva, só que é o ego que se identifica com aquela emoção.

Acontece uma coisa, você tem uma emoção – a emoção é como se fosse uma onda que te atravessa, ela acontece dentro de você, mas, se você não se identifica com ela, o ego não surge. Então, alguém que mata seu ego deixa as coisas acontecerem e não se identifica. Quando você se identifica com uma emoção, você relaciona ela contigo e já começa a avaliar a vida, a realidade e o mundo com olhos do ego.

O ocidental, quando tenta praticar a morte do ego, como não consegue se desvencilhar dessa identificação, ele se identifica e depois de se identificar tenta criticar, tenta se opor, e então, achando que está matando o ego, ele age duas vezes com o ego! Ele age com o ego, e então age com o ego contra o ego. O certo seria que observasse o que acontece dentro de si mesmo sem julgamentos, com neutralidade. Você sentiu inveja? No momento em que se apercebe desse sentimento, ele já aconteceu dentro de você, não adianta lutar contra ele. Quem luta já é o ego, porque só o ego se opõe (essa é sua principal característica).

Surgiu um sentimento dentro de você? Então já surgiu! O que alguém que está realmente comprometido a seguir a senda da morte do ego tem que fazer é contemplar, observar o sentimento nascendo dentro de você, tentar entender por que que ele aconteceu, se observar, observar como ele se desenvolve, e deixar ele se esvaecer com a mesma naturalidade com que ele surgiu. Deixar essas ondas mentais se desfazerem da forma tão espontânea quanto elas nasceram. Então você sabe que aquele sentimento estava ali, mas você não agarrou ele para você mesmo. E aí, quanto menos você agarra, os sentimentos vão se tornando como ondas que só te atravessam. Você não deixa eles criarem raízes em você, que é o que acontece quando você cria a identificação.

Acontece o ódio. Aconteceu! Você está com ódio. Depois que aconteceu o ódio, você pode ou não se identificar com ele. Você se identifica a partir do momento que diz – Eu odeio tal coisa! Tal coisa é odiável! Nesse momento, você já se identificou. E depois que já criou a identificação, se você lutar contra isso em negação, é só mais ego – Não, não era para eu estar odiando! Vou tentar parar de pensar! Se você diz isso, tentando parar de pensar, você já está pensando. Lutar contra seus pensamentos é como tentar apagar uma fogueira jogando mais brasa em cima.

Depois que você começa a seguir a senda da morte do ego, que aos poucos vai se tornando uma coisa cada vez mais natural, que na verdade se resume a deixar as coisas acontecerem psiquicamente, você percebe que deveria ser a coisa mais simples de todas! Só que é a mais difícil, justamente por ser tão simples. Conforme você vai seguindo essa senda, você vai desconstruindo padrões de comportamento e reação que você tem enraizados como automatismos psíquicos, e esses automatismos dependem da sua identificação. A energia que sustenta esses automatismos é a identificação com os sentimentos, você se identifica e os alimenta, e eles continuam lá. Conforme você vai observando, quanto mais você observa, você ganha a habilidade de ver a si mesmo de fora. É como se você saltasse, como uma águia, e visse a sua mente, e visse tudo que acontece dentro de você, e visse o que está por trás de você, e aí consegue se desmascarar, desarmar essa postura que mantemos durante o dia de dominadores, de autoafirmação, da busca incessante de controle e segurança.

A princípio pode parecer, para um ocidental, que sem autoafirmação ele não é nada porque a gente tá acostumado a se impor – a gente sente a necessidade de se defender, de se impor, de dizer que é isso e aquilo, e acredita nisso e naquilo mas, conforme você abandona a autoafirmação, você ganha a oportunidade de um crescimento infindável, porque você percebe que o seu “bem” e “idealismo” são suas projeções psíquicas, você para de alimentar esses julgamentos e se volta para o crescimento da sua própria consciência. Temos de julgamentos que estão tão enraizados que os tomamos por nós mesmos. Tem que na verdade não são nem nossas, mas foram inseridas na gente desde a mais tenra idade na forma de traumas, experiências da infância, e essas coisas modelaram na gente reações automáticas que sustentamos até hoje e não percebemos a raiz e o alimento delas porque estamos identificados com ela, achamos que nós somos elas, mas a gente não é!

A gente não é nada! A gente não tem forma! A gente é livre, absolutamente livre! A gente pode ser qualquer coisa. Então deixe as coisas acontecerem psiquicamente. Vai se abrir um caminho que vai te permitir ir desfazendo nó em nó, corrente em corrente, você desfazendo tudo o que você tomava por você, tudo que você julgava, tudo que você avaliava e comparava. Aos poucos essa voz que tudo relacionava consigo vai se calando, e você vai se tornando capaz de observar as coisas como elas são. E aí, pela primeira vez, você vê as coisas como realmente são. Você vê as coisas de uma forma objetiva, de uma forma ampla! Essa é a grande mente. Essa é a mente ampla. Esse é o verdadeiro significado de morte do ego.

https://www.youtube.com/watch?v=KDFAI6AX8xM

Chrystian Revelles
Enviado por Chrystian Revelles em 17/07/2018
Reeditado em 25/07/2018
Código do texto: T6392983
Classificação de conteúdo: seguro