A DESPERSONALIZAÇÃO DE G.H.
A literatura de Kafka se propõe a perscrutar o conflito do homem com o seu mundo exterior. A literatura de Clarice Lispector faz o caminho reverso: procura a reorganização interna dos elementos vitais. Em " A paixão segundo G.H.," a protagonista de nome estranho com apenas as inicias “G” e “H”, entra no quarto da empregada demitida e como uma epifania clariceana lhe surge o inesperado à sua frente: a inominável convencionada “barata de Kafka.” Sim, a barata do imaginário coletivo de "A metamorfose". Na leitura a personagem G.H. está fazendo uma inspeção no quarto de Gregor Samsa. Continuamente, G.H. não seria então, em uma leitura microscópica, o espelho reverso de Gregor Samsa ou um duplo falseado? Os pressupostos surgem quando a "barata de Clarice Lispector" se assume como a versão menor de “ungeheuren Ungeziefer” o inseto monstruoso no original alemão de “A metamorfose”. “A hostilidade me tomara. É mais do que não gostar de baratas: eu não as quero. Além de que são a miniatura de um animal enorme. A hostilidade crescia. (LISPECTOR, 2009, p.48). O disfarce de G.H., é a metamorfose de um Gregor hostilizado e explícito em sustentação nula: “Eu corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim [...] (p.64).
“A paixão segundo G.H.,” de Clarice Lispector, é um espectro da máscara humana. Do lado reverso do espelho de “A metamorfose”, G.H. acessa o inacessível em Gregor: o núcleo pulsante da vida. O rompimento do invólucro para o pré amor. “É que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu – só tenho o que sou. E agora o que sou? (LISPECTOR, 2009, p.66). G.H.; é a busca da libertação da moral, a verdade da esperança, o neutro da vida. A vida tem um núcleo dentro da matéria; é estranho a nós mesmos como o sangue que vaza para fora do corpo. Esse núcleo reside nos personagens G.H. e Gregor Samsa. Clarice Lispector dá a forma ao inexpressível desse núcleo: o plasma da vida – sêmen pulsante de Deus. Deus é o amor. E o amor só existe na ausência silenciosa de uma redenção. Em Lispector, a sexualidade ressurge como inocência e o conflito do homem é o amor demonizado por Deus. As baratas são a invenção da vida letal; e estas criaturas redentoras do mundo –animalidade ancestral– estão esmagadas e as linguagens se esgotam aqui, no abandono da esperança.