Assim falou Nego Johnson

A noite já estava silenciosa e a cidade dormia. Passava da meia noite quando o chefão da comunidade o chamou e determinou que cuidasse da entrada. Que ficasse como vigilante até o amanhecer. E recomendara com muita veemência:

- Vê se fica de olho bem aberto. Não dá mole não, viu! Fique atento a tudo e a todos. Ninguém entra e ninguém sai da comunidade antes das seis da manhã. Ouviu bem?

- Sim. Ninguém entra e ninguém sai. Entendi.

- Nem o papa – reafirmou o chefão com a arma na mão. Vários outros comparsas estavam ao lado dele e observava a conversa entre os dois. – Nem se for minha vovozinha, entendeu?

Balançou a cabeça afirmativamente e caminhou para o posto na entrada da favela. Que merda esse cara pensa que sou. Eu já entendi que não passa ninguém. – pensava no caminho – quero ver quem vai encarar essa pistola aqui. Olhou para a pistola na mão direita e ajeitou o fuzil que trazia pendurado na costa. Ninguém vai ser louco de tentar violar a ordem do toque de recolher.

Ajeitou-se encima de um tambor que estava encostado em um barraco. Tinha a visão completa da rua. O silêncio só era quebrado pelos latidos de alguns vira-latas que, provavelmente corria atrás de algum gato ou coisa qualquer. Deve ser umas duas da manhã, pensou ele. E o tempo passou lentamente. A comunidade estava com medo. Havia tido trocas de tiros durante a noite e sabia que os milicianos rivais poderiam tentar alguma coisa.

Os olhos pesaram e o sono queria dominá-lo quando ele ouviu passos. Assustou-se e ficou em pé olhando em todas as direções. Então ele a avistou. Era uma senhora de idade. Forçou as vistas conforme ela se aproximava com passos lentos.

- Alto lá, vovozinha – disse apontando a arma para ela. – onde a senhora pensa que vai?

- Calma meu filho – disse ela chegando perto dele – eu só estou indo para a igreja.

- Igreja? Hora dessas? Tem igreja agora não. É de madrugada.

- Eu vou orar meu filho, falar com o Senhor.

- Olha aqui dona, vamos parar de palhaçada. O que a senhora está fazendo essa hora da madrugada na rua?

- Eu já disse meu filho, vou orar. Minha igreja fica a duas quadras daqui. É aquela azul que tem perto do mercadinho, você deve saber qual é.

- Sim eu sei qual é. Mas não tem ninguém lá hora dessas. Volte para sua casa e vá dormir. Amanhã a senhora vai na igreja.

- Não posso meu filho, oro sempre de madrugada. Deus ouve aqueles que o buscam nas madrugadas.

- Olha aqui minha senhora – o jovem apontou a arma para ela – daqui você não pode passar. Ninguém pode passar. É ordem.

A senhora ficou em silêncio por algum tempo e então disse:

- Se você vai atirar então atire logo porque eu vou orar.

Começou a caminhar e o jovem a interpelou:

- O que você está fazendo? Sabe que não pode passar por aqui.

- Vou orar por você, meu filho.

Ele praguejou, esperneou e ameaçou atirar naquela velha louca. Que merda essa senhora está fazendo. Onde se viu andar de madrugada pela rua para ir à igreja orar. Porque não ora em casa mesmo? Correndo perigo de ser morta numa rua deserta dessa.

E lá se foi à senhorinha em direção à igreja.

- Tudo normal?

O chefão olhou nos olhos dele. Outros três capangas o acompanhavam. Armados até os dentes eles olharam a cara de terror dele diante da situação.

- Sim. Tudo tranqüilo.

- Ninguém passou por aqui?

- Não.

(Silêncio)

- Não minta para mim.

Engoliu em seco e, então falou:

- Só uma senhora meio louca ai. Disse que ia para a igreja orar.

- Orar? De madrugada? E você acreditou nessa história?

- Sim.

- Você é mesmo um imbecil. – colocou a arma na cabeça dele – e se for uma espiã? E o que eu falei que nem o papa, nem minha vovozinha poderiam passar por aqui antes das seis?

Fechou os olhos esperando a bala perfurar o seu cérebro. Foi então que viu. Havia entrada em um grande salão. Era muito grande o salão e tinha um corredor imenso. Tudo branco e pessoas caminhavam sem pressa. Todos bem arrumados. Estava no paraíso? Viu a senhora. Tinha um semblante tão lindo. Parecia um anjo. Ela caminhou até ele. Pegou nas mãos dele e disse:

- Deus tem um plano na sua vida. E não é ficar cuidando de entrada de favela com armas na mão. Ele tem algo melhor para você. O cara me deu um tiro e eu vim para o paraíso.

- Oh! – Exclamou o chefão. – Não vou te matar agora. Vê se some da minha frente. Imbecil.

O dia havia amanhecido e pessoas caminhavam para os seus trabalhos e afazeres. Andou meio perdido por um tempo e, de relance viu a igreja. E viu a senhora saindo de lá.

- Eu orei por você – disse ela ao passar por ele – pedi a Deus para cuidar de você e transformar o seu coração. Pedi ao Senhor para que você não seja morto pelos criminosos desse lugar. Deus tem um plano para a sua vida.

Não quis que ela percebesse, mas de seus olhos lágrimas estavam rolando.

Prosa: Odair José, o Poeta Cacerense