Diálogo com Krishnamurti
''Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou por baixa minha competência, num fogo-e-ferro (…) Inimigo vier, a gente cruza chamados, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz, experimentem ver. Digo isto ao senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro.'' (Rosa, 1986: 15-6)
Talvez não se possa mais ficar de tarde, sentado numa canoa, amortizando o vento. (Barros, 1996: 343).
Quando surgiu a proposta de dialogar com as vozes de Krishnamurti – somos sempre atravessados por diversas vozes –, fiquei ansioso por poder viver mais essa experiência. Era algo novo. E então, aí, logo de começo, eu já, sem saber, casava com as vozes de Jiddu, porque me enveredava por esse sertão desconhecido. Não me restringia ao habitual, o que seria começar com destino. Seria caminhar num acostamento de BR, sabendo para onde ia, desde o princípio. Mesmo com os imprevistos do caminhar, seria trilhar por paisagens e solos desde já caminhados. Mas, eu não havia lido nada, não fosse a recente curiosidade por um certo ‘’O Livro da Vida’’. Por onde começar?
Não me preocupei, a princípio. Minha experiência de leitura foi gostosangustiante. Sim, ao mesmo tempo que as páginas iam-se por veredas afora, eu queria filtrar conceitos para bancar o ‘’especialista do ramo’’, rastreando ‘’o caminho’’ para as ‘’luzes’’ da cidade. Não fui feliz nessa intenção. E, por mais que deixasse o livro falar, as pessoas que me circundavam desejavam uma resposta para o então freqüente disparo: ‘’o livro fala sobre o quê?’’. Eu rastejava, ‘’de esquinado’’, diante dos perigos daquele sertãozão como um jagunço especulando acerca do movimento do inimigo. A afronta me obrigaria a uma reação esperada: a pergunta tinha essa característica de convite ao fogo-e-ferro! Ao mesmo tempo que se pergunta, espera-se uma resposta, dentro das leis das jagunçagem. Entretanto, riobaldamente, eu rodeava para evitar o bando de Hermógenes. Não era a hora, ainda.
De fato, o bando – do qual eu fazia parte –, sentindo a mesma necessidade, agendou um bate-papo com Noemi Salgado (simpática professora, diga-se de passagem), ‘’estrategista’’ no assunto? Antes disso, porém, já havíamos reservado Washington para a condição de ‘’chefe’’ do bando, ‘’responsável’’ pela ‘’exposição’’ sobre Jiddu. Era a expectativa de indicações, de esclarecimentos, de segurança psicológica. Que não veio. E que experiência ímpar! Abertamente, sem direcionamentos de uma pessoa, montamos a apresentação. Obra do acaso. Fiquei entusiasmado. O depoimento de Irenilson, pastor e amigo, foi de extrema franqueza. Ficamos surpresos e consolados. Esvaiu-se o medo.
Não vou me restringir, pois, aos ‘’defeitos’’ do sertão, como muitos estamos habituados. Quero filtrar as possibilidades ‘’positivas’’ desse labirinto. As nossas táticas de sobrevivência? De solidariedade?
Combinamos de fazer algo natural, sem qualquer preocupação a priori. Escrutamos as nossas próprias relações com as leituras e com as falas dos outros, que éramos nós. Tivemos a felicidade de falar pelo outro, que éramos nós, e de ouvir as singularidades. Não queríamos a ilusória perfeição da ‘’compreensão real’’ sobre o autor. Fomos nós mesmos, com nossos passos. Daí, aproveitamos a idéia do silêncio (uma sugestão de fora), durante dez minutos, à nossa maneira. Talvez, um outro grupo ficasse em silêncio, durante uma hora. Para nós, soava como uma falsa aceitação, já que realmente tínhamos a necessidade de falar e de explicar o silêncio. Temos essa tendência em nós e preferimos deixá-la brotar também.
À primeira vista, interpretei o silêncio inicial como algo incômodo – o sertão, se comparado ao ‘’silêncio’’ da cidade, é silencioso? Depois, percebi que este se constituía, pelo menos para mim, parte do processo de apresentação, porque, a partir dele, sem se preocupar com o quê eu iria apresentar, viajei pela minha experiência de leitura. O silêncio, então, não era silencioso no sertão. E, aos poucos, fui aprendendo que ele era necessário para nos deslocarmos pelos atalhos. O silêncio des-silencioso foi sendo parte de mim e não podia destacá-lo para não prejudicar minha relação com aquele novo lugar – que era constituído de mim e por mim. Nesse ‘’sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar’’ (Rosa, 1996: 17). Por isso, não há como escapar ao pensamento. Ou há?
‘’Positivo’’ silêncio. ‘’Positiva’’ a fala subsequente. Temos o costume de procurar as ‘’falhas’’, de achar que ‘’falta algo’’, de criticar ‘’negativamente’’. Sim, isso ajuda, mas por que não observar os pontos ‘’positivos’’? Gostei, pois, da ‘’nossa’’ naturalidade, da ‘’nossa’’ almeidade (de alma, é assim?) no trabalho, de ‘’nossa’’ singularidade, de ‘’nossa’’ vida – por que não dizer assim? E por que que destaquei o ‘’nossa’’? Porque temos também essas características em comum, são potencialidades humanas. E que aprendemos a observar. Temos o costume de ‘’fisgar’’ o ‘’errado’’. Nesse sertão bonito, temos olhos treinados somente para captar os jagunços inimigos? Talvez, haja espécies belas tão diferentes e interessantes! Posso ater-me a elas? Sim, pois foi isso que aprendi. Não vou falar do que esquecemos ou poderíamos ter feito, mas do que observei de ‘’positivo’’, para mim.
Proponho uma re-passagem por esse sertão krishnamurtiano. Garanto que será uma prazerosa experiência. Uma outra.
Pois bem, nesse diálogo com Krishnamurti que não é restrito às palavras, pude-me ir conhecendo um pouco melhor. ‘’E que importância tem isso para a vida prática?’’, perguntam os apressados, como ouvi por aí. Caso daqueles que querem ‘’o bem com demais, de incerto jeito’’, que podem estar já ‘’se querendo mal, por principiar’’. ‘’Viver é perigoso…’’ (Rosa, 1996: 9). Penso eu, que para transformarmos a escola pública, a universidade e as relações humanas, é preciso que nos conheçamos mais. É preciso que não nos disfarçamos com o discurso ‘’progressista’’, bem floreado, e que não sai das palavras. Costumamos falar para mostrar praticidade, imediatismo e não praticamos ‘’nada que não seja cômodo, agradável, seguro, quer psicológica, quer fisicamente’’ (Krishnamurti, 1986: 56) para nós mesmos.
Assim, com esse diálogo dialogentes que não se encerrou ao fechar as obras e não tem se encerrado até este momento, vou buscando olhar o outro como ser humano e avaliando os acontecimentos na relação (não em um dos pólos – já que estes não existem). Só para exemplificar, compartilho estudos de matemática com a minha companheira e percebo que há que nos colocarmos como estudantes, ambos. É interessante, pois tem assunto que vou me lembrando, na medida em que tentamos buscar as soluções. Chegamos, em parceria, a algumas conclusões importantes: da necessidade de um ambiente muito agradável para ambos, em que temos a probabilidade de tornar o estudo também agradável; da ausência de qualquer sinal de hierarquia, que prejudicaria a ambos; da freqüência de encontro, visando manter o contato e, enfim, da centralidade dos discursos não na ‘’negatividade’’ ou nas notas, mas no que se consegue fazer com mais tranqüilidade, entre outras descobertas. Isso fizemos sempre em conjunto. Eu sou eu e ela ao mesmo tempo, porque somos humanos e sentimos as mesmas coisas. ‘’Tudo é e não é…’’ (Rosa, 1996: 5).
A princípio, sentimos o tempo reduzido, mas será que a intensidade não provou que o tempo cronológico não é capaz de governar um instante agradável? Não penso no que poderíamos Ter feito, porque no sertão não planejamos. Nele, respiramos o presente. Ser para…? Não tanto. Ser-tão… E, acima de tudo, ser-sendo…
Referências Bibliográficas
BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: (poesia quase toda). 1996. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
KRISHNAMURTI, Jiddu & BOHM, David. O Futuro da Humanidade: dois diálogos entre J. Krishnamurti/ David Bohm. 1986. Trad. Rubens Rusche. São Paulo: Cultrix.
KRISHNAMURTI, J. A rede do pensamento. 1982. Trad. Sônia Régis. São Paulo: Cultrix.
_____. The book of life: o livro da vida. 1999. Trad. Pedro Dantas Jr. e Domingos Sande Vieira. São Paulo: Giordano.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1986. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.