Lera Capelo Gaivota, com a intenção de aprender a superar seu próprio limite. No entanto, sentia-se derrotado pelo ciúme, este mau sentimento era o grande obstáculo a transpor. Precisava estar aberto de corpo, e de mente, quando desembarcasse em Paris para conversar com Vannini. Sabia que o desejo pela coisa proibida tinha-se tornado o vulcão aceso com a tocha do diabo, que induziu Siquém a sequestrar Dina, o mesmo sentimento que levara Páris a raptar Helena, é o mesmo vulcão que ardeu na alma de Hemor quando tomou Vannini para si. Fernão decolaria do porta-aviões Charles de Gaulle para pousar no coração da amada e nunca mais decolar. Queria superar os limites de suas forças; rasgar as páginas que registram a vida de um homem traído e não esconder de si mesmo o segredo que muitos já sabiam: sua mulher o trocou por um piloto que voava sem licença para voar. Pobre diabo este Capelo. Não tinha boas lembranças de Paris: as tardes frias tocavam folhas secas no outono de seu coração.
Tremeu e gelou.
Leu novamente o recorte do bilhete que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: ‘Vim te devolver isto’. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Vannini, assim que desembarcasse em Paris. E reprisou a cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho, navegando um navio sem timoneiro a chocar-se com o paredão da encosta. Fernão tinha certeza de uma coisa: quando retornasse da França contaria tudo a Ravenala. Malgrado, não conseguisse nada com Vannini, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Ravenala sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador. Ele estava em um isolamento de quatro paredes de ferro e sequer ouvia o ronco das turbinas, tal era sua compenetração na leitura de Bach. Tudo era um silêncio mortal, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: ‘Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá alteração no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa é de quarenta e sete graus negativos. Boa noite e boa viagem!’
— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.
— Sim. — respondeu Alice.
— Acho que nossos companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional para as Artes e Literatura da França. Aquele não é o Arnaldo?
— É ele sim! E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que vai inscrever no Salon Du Livre.
— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...
— Autobiográfico? Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — não leste as últimas postagens da Vania Lopes no Portal Literal? Pessoalmente é uma pessoa bem resolvida, mas sua poesia transpira desassossego da alma, inquietude e solidão. Ela consegue materializar seu estilo poético de forma, hilariante, no momento de convulsão por que passa o Gigante, que outrora deitado em berço esplêndido, se contorce agora, sobre o frágil assento de vidro do Congresso. No caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso.
De fato, Arnaldo se desentendeu com padre Davi. Como educador, o padre não evoluiu. Tem cultura, mas parece nunca ter lido Paulo Freire. É autoritário, um 'ditador', e não um 'mediador' de conhecimento.
— Nascemos velhos — diz Alice — nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc.... Só quando desfrutando da razão crítica vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, então, jogamos fora grande parte do fardo que carregamos na mochila...
— Por trás do autoritarismo do padre Davi, há uma doce alma de pastor.
— O povo aumenta, mas não inventa. Corre um boato que o Padre e Chanana moram juntos.
—Moram juntos, mas vivem a castidade.
— A castidade do casal, remete à fidelidade entre si. Não implica que marido e mulher não tenham vida íntima. Vida celibatária entre homem e mulher que moram juntos? Nunca vi! É possível isso?
— Se é possível entre eles, não sei. Em certa idade da vida a duquesa Edwiges e o príncipe Fernando viveram casados, como se não o fossem. Viviam como bons amigos, sob o mesmo teto. Não se tocavam...
— Mas tiveram filhos.
— Sim, a abstinência foi depois de nascidos os filhos.
— Abstinência sexual? Todos estamos fadados a viver isso na velhice. O fogo apaga, ou parece apagado. Resta a chama que não se apaga: o amor, a amizade e o carinho que um têm um pelo outro.
— Ei, Alice! Por que Arnaldo não foi ao velório de Androceu?
— Foi. Eu o vi. Calado. Ele sempre está em clima de velório, mesmo que não vele ninguém, vela sua própria alma. Vigia a língua. Não diz asneira. Quando fala, o seu coração o escuta e é de si mesmo conselheiro. Não se envaidece. Tem alma leve, prestes a abandonar o corpo.
— Cruz credo! Estamos a trinta e seis mil pés. isso é hora de falar em morte? Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés, bem firmes presos no chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!
— Claro, Solange. Foi o voo literário que nos pôs nas asas deste avião. Mas, à morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o anjo da morte venha apanhar-me agora. Você entende muito de voo literário, não é mesmo?
— Não sou crítica de literatura. Sou pesquisadora de Linguagem. A priori, o objetivo desta viagem é científico. Logo depois do encontro no Salon Du Livre, devo ir ao Sul da França, na região administrativa de Languedoc-Roussillon, pesquisar Joseph-Abrahan Bénard, um comediante francês.
– Eu também não sou crítica. Produzo meus textos depois de ler livros de Filosofia. Pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. As palavras criam mundos... O navio vai ao fundo. Cai no mais profundo abismo da ignorância aquele que não lê. Nossa responsabilidade é usarmos a imaginação.
Encontramos o homem em busca da verdade, nos poemas de Homero, nas tragédias de Eurípedes e Sófocles, principalmente, nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. A palavra tem o poder de edificar ou de destruir. Se benfazejas, são doces como o mel. Se insidiosas, cortam como navalha — conclui Alice.
Solange ouvia com atenção, mas não pretendia discutir filosofia com filósofo e modificou a direção da prosa.
— Soube que Carrero vai ser publicado na França.
— É mesmo! Qual dos livros será traduzido?
— A Preparação do Escritor.
— Nossa! É o mesmo que ensinar inglês aos ingleses. No bom sentido é claro, porque a França continua sendo o berço da linguística. Coleciona o maior número de Prêmio Nobel de Literatura.
Mulheres falam demais, disse Fernão, fechando o livro de Bach. Era a terceira vez em menos de dois anos que ele lia Capelo Gaivota.
***
Trecho de "Estrela que o vento soprou."
Tremeu e gelou.
Leu novamente o recorte do bilhete que a mulher deixara no criado. Seria uma forma de abordá-la: ‘Vim te devolver isto’. Dobrou-o cuidadosamente e o guardou outra vez na carteira. Entregaria a Vannini, assim que desembarcasse em Paris. E reprisou a cena do abraço com a mãe no Aeroporto. As preocupações dela sobre um sonho que tivera com o filho, navegando um navio sem timoneiro a chocar-se com o paredão da encosta. Fernão tinha certeza de uma coisa: quando retornasse da França contaria tudo a Ravenala. Malgrado, não conseguisse nada com Vannini, não poderia perder a oportunidade de construir novo lar com outra pessoa. Pelo sim, pelo não, Ravenala sabia de sua viagem apenas para concluir o curso de aviador. Ele estava em um isolamento de quatro paredes de ferro e sequer ouvia o ronco das turbinas, tal era sua compenetração na leitura de Bach. Tudo era um silêncio mortal, até que de repente, uma voz se fez ouvir em toda a aeronave: ‘Senhoras e senhores, estamos sobrevoando a costa Sul do Senegal. Temos nuvens pesadas em rota de colisão... Haverá alteração no plano de voo e atraso de trinta minutos na hora prevista para o pouso em Dakar. A temperatura externa é de quarenta e sete graus negativos. Boa noite e boa viagem!’
— Aceita um suco — disse sorridente a aeromoça.
— Sim. — respondeu Alice.
— Acho que nossos companheiros de viagem confirmaram presença na Convenção Internacional para as Artes e Literatura da França. Aquele não é o Arnaldo?
— É ele sim! E com o notebook aberto. Com certeza fazendo o enxugamento do poema que vai inscrever no Salon Du Livre.
— Será autobiográfico? Arnaldo pediu demissão do Marista e dizem que se separou da mulher...
— Autobiográfico? Isso é polêmico, polêmico demais — disse Solange — não leste as últimas postagens da Vania Lopes no Portal Literal? Pessoalmente é uma pessoa bem resolvida, mas sua poesia transpira desassossego da alma, inquietude e solidão. Ela consegue materializar seu estilo poético de forma, hilariante, no momento de convulsão por que passa o Gigante, que outrora deitado em berço esplêndido, se contorce agora, sobre o frágil assento de vidro do Congresso. No caso de Arnaldo, creio que sejam arranjos articulados, ele é especialista nisso.
De fato, Arnaldo se desentendeu com padre Davi. Como educador, o padre não evoluiu. Tem cultura, mas parece nunca ter lido Paulo Freire. É autoritário, um 'ditador', e não um 'mediador' de conhecimento.
— Nascemos velhos — diz Alice — nossa sociedade tenta condicionar a todos a tradição, os costumes, etc.... Só quando desfrutando da razão crítica vamos nos livrar daquilo que não nos interessa, não nos motiva, então, jogamos fora grande parte do fardo que carregamos na mochila...
— Por trás do autoritarismo do padre Davi, há uma doce alma de pastor.
— O povo aumenta, mas não inventa. Corre um boato que o Padre e Chanana moram juntos.
—Moram juntos, mas vivem a castidade.
— A castidade do casal, remete à fidelidade entre si. Não implica que marido e mulher não tenham vida íntima. Vida celibatária entre homem e mulher que moram juntos? Nunca vi! É possível isso?
— Se é possível entre eles, não sei. Em certa idade da vida a duquesa Edwiges e o príncipe Fernando viveram casados, como se não o fossem. Viviam como bons amigos, sob o mesmo teto. Não se tocavam...
— Mas tiveram filhos.
— Sim, a abstinência foi depois de nascidos os filhos.
— Abstinência sexual? Todos estamos fadados a viver isso na velhice. O fogo apaga, ou parece apagado. Resta a chama que não se apaga: o amor, a amizade e o carinho que um têm um pelo outro.
— Ei, Alice! Por que Arnaldo não foi ao velório de Androceu?
— Foi. Eu o vi. Calado. Ele sempre está em clima de velório, mesmo que não vele ninguém, vela sua própria alma. Vigia a língua. Não diz asneira. Quando fala, o seu coração o escuta e é de si mesmo conselheiro. Não se envaidece. Tem alma leve, prestes a abandonar o corpo.
— Cruz credo! Estamos a trinta e seis mil pés. isso é hora de falar em morte? Tenho pânico de voo alto! Prefiro o solo onde mantenho meus pés, bem firmes presos no chão. O único voo que faço com segurança e sem medo é o literário. E com prazer também, é claro!
— Claro, Solange. Foi o voo literário que nos pôs nas asas deste avião. Mas, à morte, não temo. O que terá de ser feito, um dia será. Só não quero que o anjo da morte venha apanhar-me agora. Você entende muito de voo literário, não é mesmo?
— Não sou crítica de literatura. Sou pesquisadora de Linguagem. A priori, o objetivo desta viagem é científico. Logo depois do encontro no Salon Du Livre, devo ir ao Sul da França, na região administrativa de Languedoc-Roussillon, pesquisar Joseph-Abrahan Bénard, um comediante francês.
– Eu também não sou crítica. Produzo meus textos depois de ler livros de Filosofia. Pego uma frase, um conceito e disparo a escrever. As palavras criam mundos... O navio vai ao fundo. Cai no mais profundo abismo da ignorância aquele que não lê. Nossa responsabilidade é usarmos a imaginação.
Encontramos o homem em busca da verdade, nos poemas de Homero, nas tragédias de Eurípedes e Sófocles, principalmente, nos tratados filosóficos de Platão e Aristóteles. A palavra tem o poder de edificar ou de destruir. Se benfazejas, são doces como o mel. Se insidiosas, cortam como navalha — conclui Alice.
Solange ouvia com atenção, mas não pretendia discutir filosofia com filósofo e modificou a direção da prosa.
— Soube que Carrero vai ser publicado na França.
— É mesmo! Qual dos livros será traduzido?
— A Preparação do Escritor.
— Nossa! É o mesmo que ensinar inglês aos ingleses. No bom sentido é claro, porque a França continua sendo o berço da linguística. Coleciona o maior número de Prêmio Nobel de Literatura.
Mulheres falam demais, disse Fernão, fechando o livro de Bach. Era a terceira vez em menos de dois anos que ele lia Capelo Gaivota.
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Trecho de "Estrela que o vento soprou."