João Gilberto e a Cerimônia do Chá

Para a Daia,

que nos encanta com a repetição de sua sua dança

A “chanoyu” é uma cerimônia japonesa para o chá. Ela é constituída de uma ampla série de regras, que incluem a apreciação da casa de chá, dos utensílios utilizados, das qualidades de chá, dos trajes e seus acessórios e dos movimentos efetuados para servir o chá aos apreciadores. Tudo se trata, ao que parece, de desenvolver o senso de observação, da paciência e do exercício de busca eterna da perfeição. Há séculos os japoneses cultivam esta tradição, iniciada a rigor no século 12. Ainda hoje existem pessoas que se dedicam a aprender os rituais da Cerimônia, procurando executar suas regras tão atentamente quanto possível, tentando controlar o melhor que possam as variáveis que compõem o ritual, visando que os apreciadores a considerem perfeita. Para buscar a perfeição, eles repetem eternamente a construção dessa Cerimônia, pois existem inúmeras variáveis para controlar e ajustar. Há, nesta tradição, uma lição implícita de humildade, uma vez que as tentativas servirão de exemplo para futuras gerações e a perfeição, se um dia for alcançada, será por outra pessoa no futuro. Repetir é aceitar humildemente a imperfeição.

João Gilberto, cantor ícone da Música Popular Brasileira, criador do movimento chamado “bossa-nova”, procura até hoje a interpretação perfeita. Tenta controlar as diversas variáveis que influenciam uma interpretação, que vão desde a pressão que exerce sobre os dedos das cordas do violão em cada posição, passando pela entonação de sua voz em cada palavra da canção, até a temperatura adequada do ar-condicionado do lugar onde se apresenta ou grava um trabalho, que por sua vez influencia a tensão das cordas do violão, a madeira do violão, seus nervos e suas cordas vocais. É conhecido seu sintoma de faltar a shows e brigar com seus produtores de seus discos, que desejam (de forma absurda para seu gosto e padrão) considerar os ensaios acabados, para que o produto seja logo posto à venda ou o show apresentado. João Gilberto aparentemente se apresenta sempre insatisfeito com o que está mostrando e quer continuar repetindo cada música até atingir a perfeição. Em minha opinião, ele sofre da falta de percepção de que a perfeição é uma meta a ser perseguida e não atingida. Caetano Veloso, seguidor confesso de João Gilberto, declarou em recente entrevista à revista “Rolling Stone”: “Tenho pena de não ter trabalhado tão bem para as canções serem melhores. Fica meio sujo, termino antes de estar pronto. É tudo meio assim. Raras vezes isso não aconteceu.” Ou seja, Caetano admite a imperfeição de suas canções e consola-se. Caetano é a evolução de João Gilberto. Sabe que a perfeição é inatingível e pára antes de ser considerado um demente e de que seus familiares tenham desejo de interná-lo...

Para mim a vida é feita de tantas variáveis, com tantas variações a serem ajustadas, que é um prazer repetir tudo aquilo que alguns chamam de “cotidiano”. Todo dia ela não faz tudo sempre igual, nem me acorda às seis horas da manhã, nunca me sorri um sorriso pontual ou me beija sempre com a boca de hortelã. É impossível. Assim, vou repetindo os dias com um prazer enorme de buscar em cada um deles a perfeição. Num dia, no entanto, é uma dor-de-barriga, noutro o computador que empaca, noutro ainda há um amigo doente. Cada dia, tudo isto vai me estimulando mais a repetir, repetir, repetir, até encontrar o dia perfeito.

Que espero que chegue nunca.