MARCAS DO CAMINHO: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE E A NOVA POESIA BRASILEIRA

(Autor: Leon Cardoso da Silva )

BREVE INTRODUÇÃO PARA INÍCIO DE CONVERSA

Antes de qualquer coisa, quando se trata de literatura – no que diz respeito à criação artística –, devemos entender que não há movimento absolutamente globalizante. O que há é a predominância de temas específicos em determinados períodos e envolvendo, por sua vez, um maior número de escritores e artistas. É neste ponto que surgem categorias conceituais, necessárias para a compreensão histórica dessa área em particular. Conceitos como: Barroco, Arcadismo, Romantismo, Simbolismo, e assim por diante, permitem-nos entender que toda classificação literária ou análise de produções artísticas deve passar por um processo de interpretação envolvendo algo mais que o autor e sua obra.

Mas pode questionar o mais crítico dos leitores: como isso pode nos fazer entender autores, por exemplo, como Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, intensamente ligados às questões mais relevantes de seu tempo? É este o ponto precípuo de nossa reflexão. Mas chegar à resposta sem percorrermos todas as curvas do caminho dificultará a compreensão do todo. Isso porque Drummond e Pessoa não foram simplesmente escritores de profundidades universais carregadas de rebeldias e calmarias íntimas. Pertenceram, também, ao movimento mais radical e mais impactante da história da literatura, o Modernismo.

Neste sentido, o que foi mencionado no primeiro parágrafo – acerca do processo para definição das tipificações conceituais utilizadas pela nossa historiografia literária – pode ser compreendido pela confluência do número bastante distinto e significativo de escritores de um determinado período. Isso quer dizer que o movimento modernista foi tão intenso em promover liberdade de criação literária que, com o tempo, diversos movimentos coexistiram levando a literatura e sua crítica para uma diversidade estética nunca antes vista em nossas letras. É neste contexto de distinções e novidades que Carlos Drummond de Andrade convive e deixa, para a humanidade, sua contribuição em forma de literatura.

Tudo isso justifica, portanto, o fato de fazermos uma análise sobre a produção de Drummond e dos solavancos do modernismo primeiro estabelecendo a prioridade de um método de estudo – um caminho a ser percorrido –, segundo realizando uma reflexão sobre o alcance e a confluência de todo um processo (criação artística) e sua culminância no objeto literário (a obra). Assim, o período histórico-literário e social, a vida e a obra de Drummond, que é um dos maiores escritores da literatura, será o nosso objeto de estudo.

CONTEXTO LITERÁRIO

Resumidamente, poderíamos dizer que literatura é a “arte do uso da palavra”, que estudarmos sua história é o mesmo que desbravarmos o pensamento humano e entendermos sua mudança ao longo do tempo. Além disso, está repleta de aspectos culturais e linguísticos com muitas marcas tanto do autor, quanto de elementos particulares moldados por um período ou um contexto histórico. Sendo assim, seria inevitável não percebermos que rupturas constantes também fazem parte do mundo literário.

E é nesta perspectiva de ruptura e inovação que em 1922,

culminando com o centenário de nossa independência, ocorre o período de maior mudança na literatura. Na verdade, este é um ano bastante simbólico, pois foi nele que ocorreu a Semana de Arte Moderna oficializando propostas radicais no que se entendia como concepção estética. Antes, por exemplo, os autores seguiam uma determinada concepção do fazer literário, e isso em conjunto fez com que os movimentos fossem mais facilmente definidos pelo conjunto de autores que tratavam determinados temas de forma semelhante.

O que ocorreu com o modernismo? Dissipou um pouco essa unidade ao promover, entre outras coisas, certa liberdade de criação artística. Isso quer dizer que os autores modernos puderam criar sua própria estética e com isso moldar uma nova forma de criação literária. E isso é tão intenso que nossa crítica literária atual tem dificuldade de estabelecer um conceito ou um nome, ainda menos algum marco histórico, para o que se faz hoje em literatura. Certamente estamos num pós-modernismo ainda em construção carecendo do olhar que ainda vai se delinear no futuro, quando quem olhar para nós juntar, com mais autonomia, as peças do quebra-cabeça.

Divagações à parte, observamos que antes mesmo da semana que inaugurou o modernismo no Brasil já circulavam publicações de artigos polêmicos, exposições de pintores expressionistas e diversas obras renovadoras que, por sua vez, iam de encontro a toda uma tradição literária. Em 1917, houve a exposição de Anita Malfatti com inovações artísticas tão intensas a ponto de inquietar o já conhecido Monteiro Lobato que reagiu escrevendo o artigo bastante duro intitulado “Paranoia ou Mistificação?” onde critica veementemente as inovações artísticas praticadas pela respectiva pintora. Em 1920 e 1921, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia fudam a revista “Papél e Tinta”, Graça Aranha publica o ensaio “Estética da Vida”, Oswald de Andrade publica “Meu Poeta Futurista” e Mário de Andrade publica “Mestres do Passado”, todas estas contribuições traziam propostas inovadoras que culminaram na Semana de Arte Moderna no ano seguinte.

Nasce o poeta

Como sabemos, Drummond nasceu em 31 de outubro de 1902, no município de Itabira, Minas Gerais. Assim, quando a Semana de Arte Moderna foi realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, nosso poeta contava alguns meses para completar seus 20 anos de idade. Acontece que isso não quer dizer que ele esteve alheio às propostas modernistas. Em 1920, Drummond residindo em Belo Horizonte, após passar um período no Rio de Janeiro, começa a se relacionar com jovens escritores e conhece mais intensamente as ideias de liberdade artística proposta pela nova literatura e publica sua primeira crítica no Jornal de Minas. Em 1924 conheceu Mário de Andrade.

Então, já podemos tirar uma primeira conclusão, a de que Drummond, antes da Semana de Arte Moderna já começava a ensaiar uma nova postura, ainda que imatura de um jovem recém ingresso no mundo das letras – havia publicado crítica, crônicas e outros textos em jornais de baixa circulação até conseguir emprego no Diário de Minas, permanecendo nele por dez anos. Neste sentido, o poeta mineiro dava seus primeiros passos no terreno do modernismo, mas sua maior presença foi reservada para a segunda fase desse movimento.

Mas como podemos conceituar o que seja modernismo e como enquadrar Drummond dentro deste movimento?

Modernismo, como já foi explicitado, foi um movimento literário e artístico que surgiu na primeira metade do século XX. Seu maior impacto foi o de promover rupturas e inovações até antes não permitidas pela elite intelectual. Isso quer dizer que antes do modernismo havia a predominância da estética realista/parnasiana com alguns resquícios do simbolismo – em alguns casos –, sobretudo na poesia.

Características do Parnasianismo:

• Versos regulares e o gosto pelo soneto e pelo decassílabo;

• Universalismo (alguma exceção para Olavo Bilac);

• Objetivismo;

• A arte pela arte;

• Apego a tradição clássica;

• Valorização da linguagem formal;

• Obediência a um padrão estético.

Como ruptura, os escritores modernos priorizavam:

• Verso livre;

• Nacionalismo;

• Subjetivismo;

• Valorização de temas vinculados ao cotidiano;

• Desapego a obras clássicas;

• Linguagem fragmentada mais popular e coloquial;

• Liberdade de criação estética.

Poema parnasiano:

PROFISSÃO DE FÉ

(...)

E horas nem conto passo, mudo,

O olhar atento,

A trabalhar, longe de tudo

O pensamento.

Porque o escrever - tanta perícia,

Tanta requer,

Que ofício tal... nem há notícia

De outro qualquer.

Assim procedo. Minha pena

Segue esta norma,

Por te servir, Deusa serena,

Serena Forma!

(...)

(Olavo Bilac)

Este poema busca alcança o ideal da poesia parnasiana: a perfeição formal. O último verso busca cultuar este ideal a partir da ideia de arte ou da produção artística como a maior coroação do fazer poético, o alcance da arte pela forma.

Poema modernista:

PRONOMINAIS

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.

(Oswald de Andrade)

Poema da primeira fase do modernismo que tem como objetivo fazer certa aproximação entre a linguagem falada e a escrita ao passo que busca romper com as barreiras puristas do passadismo acadêmico.

Cronologicamente, o modernismo costuma ser dividido em três fases. A primeira (1922 – 1930) foi o período mais radical desse movimento no que diz respeito ao estabelecimento de uma nova concepção literária e consequentemente o rompimento com paradigmas tradicionais, já explicitados aqui. Certamente, foi o período mais difícil e um dos mais promissores de nossas letras. Isso porque literatura passou rapidamente a ser tema requisitado por um número cada vez maior de pessoas. Os autores que mais se destacaram foram: Mário de Andrada, Oswaldo de Andrade, Manuel Bandeira e Alcântara Machado. Em “O movimento modernista”, Mário de Andrade resume o que foi o ano de 1922: “O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e técnicas consequentes, foi uma revolução contra o que era a inteligência nacional.(...) o que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.

Segunda fase (1930 – 1945) conhecida também como Geração de 30. O modernismo estava praticamente consolidado e galgava já certa maturidade literária. Neste período, surgiram inúmeras obras de relevância histórica tanto no que diz respeito aos romances regionalistas abordando profundos problemas sociais, quanto na poesia que dava força ao movimento e caracterizava os sujeitos na sua forma mais natural e cotidiana. Tudo passou a ser objeto de inspiração ou manifestação poética. E é exatamente nessa fase que aparece nosso poeta mineiro. Os autores de mais destaques são: Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz.

Terceira fase (1945 – 1960), também conhecida como Geração de 45. Alguns pesquisadores consideram como Pós-Modernismo. Certamente é a fase de maior liberdade literária. Muitos autores desse período se desvencilham de ideais da primeira geração modernista na medida em que não buscam explorar de forma mais tão enfática a realidade brasileira e a linguagem popular. Sobre o poema houve uma tendência de retorno à forma permitindo a retomada da abordagem da poesia como a arte da palavra. Os autores de mais destaques são: Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Mário Quintana, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Ariano Suassuna.

Após realizarmos esta abordagem, podemos perceber que somente uma parte da pergunta feita anteriormente foi respondida. A saber: como podemos conceituar o que seja modernismo enquanto movimento literário e como podemos enquadrar Drummond dentro deste movimento? Como a primeira parte foi respondida, resta-nos entender agora como Drummond se inseriu definitivamente neste movimento literário.

Em 1930, Drummond publica seu primeiro livro intitulado “Alguma Poesia” e com ele marca sua estreia na nova poesia brasileira. Acontece que esta publicação veio a lume no período que acertadamente é considerado como a segunda fase do modernismo. No que diz respeito à prosa, foram produzidos muitos romances regionais, e a poética consolidou o gosto pelo verso livre e pela abordagem do cotidiano através da linguagem coloquial.

O livro “Alguma Poesia” é marcado por temas como sentimento de inquietação do indivíduo com relação ao mundo e explora o uso de ironias alternando-se com um preciso senso de humor. Outro traço modernista desse livro pode ser observado pelo uso do verso livre e da linguagem coloquial. É nesta obra que figura talvez o poema mais radical da poesia moderna e (talvez) brasileira:

NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond)

Se o leitor se atentar bem, irá perceber que no início desse texto, ainda no primeiro parágrafo, eu havia me referido ao fato de que não poderemos compreender a obra de um autor sem nos atentarmos para o contexto que ela está inserida. O que deve nos nortear, portanto, é o fato de que o processo de interpretação, que envolve algo mais que o autor e sua obra, se dá exatamente nesse contexto. A exemplo disso, podemos citar o próprio poema de Drummond “No meio do caminho”. Na frente dele paramos mudos e aflitos diante de uma impossibilidade, a impossibilidade da interpretação e do julgamento literário profundo. Em outras palavras, este é um poema que só pode ser interpretado se levarmos em consideração o contexto literário e histórico em que ele foi escrito.

Proponho analisarmos as palavras do próprio autor:

“Este poema ‘pedra no caminho’ que ficou um tanto conhecido, realmente despertou certo movimento, não digo de indignação, mas de irritação porque ele é tão simples, tão barato por assim dizer, as palavras eram tão poucas que as pessoas diziam: mas como pode isso ser um poema, poema tem que ser complicado, tem que ter adjetivos brilhantes, frases inteligentes e notas eruditas. E o meu poema não tinha nada. Exatamente, minha intenção era essa. A de fazer um poema com o mínimo de palavras bem repetidas, bem massacrantes, bem chato...” (Drummond em entrevista veiculada na Tv Brasil).

Esse poema está presente no primeiro livro de Drummond “Alguma Poesia” (1930), mas já tinha sido publicado em 1928 na conhecida “Revista de Antropofagia”. De fato causou bastante polêmica e recebeu diversas críticas, sobretudo pela utilização de redundância e repetições usadas pelo poeta. Para se ter uma ideia a frase “tinha uma pedra” aparece em 7 dos dez versos que compõem o poema. Mas parece que essas críticas resultaram da análise exclusiva do aspecto formal do texto, sem a necessária análise do contexto.

Vamos entender melhor. Sabemos que a historiografia literária divide o modernismo em três fases específicas. Como Drummond publicou seu primeiro livro no último ano da primeira fase – portanto primeiro ano da segunda fase – costuma-se colocá-lo como um autor da segunda geração moderna. Acontece que nosso poeta já tinha publicações em periódicos. É de se concluir que já tinha em mente um projeto literário a ponto de dois anos antes de “Alguma Poesia” o poema “No meio do caminho” chocava a crítica e rompia com padrões estéticos da antiga poética parnasiana.

No fragmento da entrevista de Drummond, podemos perceber que havia toda uma intenção por parte do poeta. “Minha intenção era essa. A de fazer um poema com o mínimo de palavras bem repetidas, bem massacrantes, bem chato”. O que seria um poema “chato” nesta perspectiva? Seria o poema que fugisse da estética oficial, dos padrões estabelecidos. Não que o Parnasianismo não tenha sido relevante para a literatura, e os escritores modernos compreendiam perfeitamente isso, ocorre que o Modernismo propõe romper com essa perspectiva e estabelecer uma nova concepção artística. Apenas uma mudança de paradigmas, não necessariamente uma mudança de relevância literária.

Neste sentido, o respectivo poema, entre inúmeros outros de Drummond, só pode ser compreendido se levarmos em consideração que a intenção do poeta transcendeu o aspecto formal do poema e estabeleceu sua consciência poética a partir das intenções estéticas de um movimento literário cada vez mais intenso. Atrevo-me a dizer que isso não foi algo exclusivo de Drummond, mas algo que se estende a todo poeta consciente de sua obra. Há sempre uma preocupação social, ou política, ou estética, ou histórica, ou ideológica, etc, presente nas obras literárias e artísticas que torna imprescindível sua compreensão para a interpretação do todo.

Mas não é apenas isso. Diversos são os autores influenciados ou inspirados em outros campos de estudo como filosofia, psicologia e linguística. Portanto, toda influência parte de um ponto específico, e por ser de tal forma transcende a estrutura e passa inevitavelmente a envolver um contexto histórico, seja ele social, político, religioso ou ideológico.

CONTEXTO POLÍTICO-SOCIAL

Drummond vive sua infância e juventude na Primeira República (1889-1930), período marcado pelo domínio econômico e político dos grandes proprietários de terra, especialmente os cafeicultores e pecuaristas. Na verdade, a mesma oligarquia se manteve no poder, mesmo depois de 1989. A República não favorecia os mais pobres em praticamente nada. As camadas mais numerosas da população não se viram inseridas no processo político que culminou na instauração do novo governo.

Foi nesse período que ficou conhecida e expressão “política do café-com-leite”, pois a alternância de poder circulava entre representantes de Minas Gerais, pela riqueza da produção de café, e São Paulo, pela influência de possuir o maior colégio eleitoral desse período. Com o crescimento urbano, o Brasil se viu diante de uma situação difícil, pois era notória a marginalização dos antigos escravos e, com a indústria canavieira do nordeste sofrendo forte decadência sem poder competir com o café, ocorreu pouco tempo depois o processo migratório de pessoas do campo para os estados do sudeste, aumentando muito rapidamente o crescimento urbano e o inchaço das cidades.

Em 1914 eclode a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, consequentemente, uma intensificação da produção industrial no Brasil. Em 1917, ocorre a Revolução Russa que repercute consideravelmente nos meios operários paulistas. Necessariamente, o pequeno Drummond não participa dos acontecimentos da Primeira República. Fica, contudo, registrado em sua memória a lembrança da entrada do Brasil na guerra no poema “1914” publicado no livro Boitempo: “Desta guerra mundial / não se ouve uma explosão / sequer nem mesmo o grito / do soldado partido / em dois no campo raso. / Nenhum tanque perdido / ou avião de caça / rente ao Poço da Penha por um momento passa. / Vem tudo no jornal / ilustrado longínquo”.

Durante a primeira grande guerra, alguns países, inclusive os Estados Unidos e o Brasil, venderam diversas mercadorias para países aliados e, com isso, fortaleceram e expandiram suas indústrias. Acontece que em 1929, os EUA se viram diante de uma crise, pois quando os países da Europa se recuperaram da guerra, pararam de comprar uma série de produtos já estocados pelas indústrias norte-americanas. É que todo o panorama mundial havia mudado desde o final da década de 20. Com muitos produtos em estoque, as empresas norte-americanas pararam de exportar, o que fez com que a Bolsa de Valores de Nova York quebrasse e muitas pessoas ao redor do mundo foram afetadas.

Mas quais foram as consequências sociais e políticas da crise de 1929 para o Brasil? Primeiramente, o café era o produto brasileiro mais vendido e os EUA eram os maiores compradores. Outro aspecto que observamos, é que a sociedade, até então acostumada com a cultura do café, se vê agora diante de uma realidade econômica cada vez mais competitiva. Era a modernidade batendo a porta. Uma nova classe começa a se desenvolver, pois o Brasil, nitidamente agrícola há bem pouco tempo, entra definitivamente na fase da industrialização.

Foi um período de muita turbulência, sobretudo no campo político e social – Revolução de Outubro, de 1930 que colocou Getúlio Vargas no poder; Revolução Constitucionalista, em 1932; promulgação de uma nova constituição e eleição de Vargas, em 1934; Revolta comunista, em 1935, e sua consequência, a dissolução do congresso e a implementação do Estado Novo, 1937, que seguiu até 1945. Em 1939/45 ocorreu a Segunda Guerra Mundial – o Brasil participa entrando no grupo dos países aliados, em 1942.

Como havia dito, nosso poeta, até 1930, já tinha publicado muitos textos em periódicos, mas ainda não em livro. Entretanto, neste mesmo ano fez sua estreia com “Alguma Poesia”, seguindo-se de “Brejo das Almas” (1934). Se aceitarmos o aspecto cronológico utilizado pela historiografia literária podemos dizer que Drummond iniciou de fato no mundo das letras como poeta da segunda geração modernista. Teve como pano de fundo estas mudanças radicais que afetaram a sociedade e, praticamente, toda a produção literária, sobretudo, da primeira metade do século XX.

Tendo este panorama, não é de se admirar que os primeiros livros de Drummond façam parte de uma fase mais subjetiva e radical de sua produção literária, muitas vezes espelhando o que fizeram seus contemporâneos da primeira geração modernista.

As fases do poeta

É comum dividir-se as fases do poeta em 4: a gauche – lê-se “gôxe” – (os anos 30), a social (1940-1945), a fase do “não”, caracterizada por uma poética mais filosófica, (anos 50 e 60) e a fase da “memória” (a partir de 1970). Vale salientar que esta divisão em partes ou em fases permite uma melhor visão sobre o conjunto de sua obra, no que diz respeito à evolução de seus temas, à sua visão de mundo e ao seu aspecto estilístico.

Assim, da primeira fase, fica evidente a publicação de dois livros: “Alguma Poesia” (1930) e “Brejo das Almas” (1934). No poema de abertura, “Poema de sete faces”, de seu primeiro livro, nosso poeta já deixa claro o que o leitor vai encontrar no decorrer da obra.

“Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida”.

(...)

“Gauche” é um termo francês que significa “lado esquerdo”. Neste caso, podemos dizer que representa uma postura distinta, desconcertante e auto-reflexiva do poeta em face de si mesmo, não destoando do título bem colocado no poema. Em outras palavras, o respectivo termo poderia indicar o ser ao avesso, o outro lado da dimensão humana, aquele que tem dificuldades de estabelecer ou consolidar uma boa comunicação com o mundo e com a realidade circundante. Daí surge também certos traços de pessimismo, isolamento, ironia – e reflexões existencialistas – presentes em toda a obra.

Mais adiante, na quarta estrofe do respectivo poema, nosso poeta deixa transparecer mais claramente certo grau de individualidade que o acompanha em boa parte de suas produções “O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode”. De outro lado, – nas duas estrofes seguintes – demonstra sua visão pessimista diante do mundo “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco. / Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é o meu coração”.

Ao concluir o poema, “Eu não deveria te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo”, Drummond explora características muito usadas por poetas modernistas que o antecederam, como o humor, a ironia, a linguagem coloquial e o poema-piada, totalmente repudiados pela antiga estética literária e, amplamente, divulgados por poetas da primeira fase do modernismo.

Ainda da fase gauche, pertence o livro “Brejo das Almas” (1934). Para o “gauche” não há saída. Nem mesmo o amor, este que deveria lhe dar sustento e coragem: “Você é a palmeira, você é o grito / que ninguém ouve no teatro / e as luzes todas se apagam. / O amor no escuro, não, no claro, / é sempre triste, meu filho Carlos, / mas não diga nada a ninguém, / ninguém sabe ou saberá” (do poema “Não se Mate”). Muito menos da morte, fim último de seu isolamento: “É inútil você insistir / ou mesmo suicidar-se. / Não se mate, oh não se mate, / reserve-se todo para / as bodas que ninguém sabe / quando virão / se é que virão” (idem). “Brejo das almas” apresenta um individualismo mais intenso com relação a “Alguma poesia” e um profundo mal-estar do sujeito frente ao mundo e aos seres que o rodeiam, como podemos ver também no “Soneto da perdida esperança”: “Perdi o bonde e a esperança. / Volto pálido para casa. / A rua é inútil e nenhum auto / passaria sobre meu corpo”.

Da segunda fase (1940 – 45) se sobressai uma poesia social intensamente viva e reflexiva. Há um “sutil” afastamento da insistência do eu lírico em relação à introspecção amplamente explorada nos dois primeiros livros e um maior interesse por questões sociais a ponto de muitos estudiosos colocarem esta fase do poeta como o momento em que foi produzida a melhor poesia social do século XX. Na verdade, observamos ocorrer em toda a obra do respectivo poeta um apego à introspecção, no que diz respeito ao eu-lírico em relação, às vezes, conflituosa com o mundo e com sua existência, e ao individualismo. Não obstante, é justamente na segunda fase da poética de Drummond que estes temas ficam menos recorrentes para darem mais espaço a questões sociais.

As obras desse período são: “Sentimento do mundo” (1940), “Poesias” (1942) e “A rosa do povo” (1945). No primeiro destes, ainda ocorre certa sensação de isolamento do eu lírico, parecido com seus dois primeiros livros publicados, mas agora este isolamento se aprofunda na consciência de impotência estabelecida entre o eu-mundo, se sobressaindo o eu na tentativa dolorosa de “comungar e agir sobre o segundo”. Drummond parecia procurar a compreensão de si e do mundo para chegar a compreensão definitiva da vida presente e de como agir sobre esta realidade.

Acontece que a realidade que nosso poeta estava inserido era de frustração de uma sociedade com relação ao momento social e político do país e do mundo. Os anos das publicações de “Sentimento do mundo”, das “Poesias” e de “A rosa do povo” coincide com o panorama traçado pela Segunda Guerra Mundial. Os sujeitos passaram, desiludidos, por uma ditadura do Estado Novo, viram conflitos com o surgimento de uma nova classe média e presenciaram diversas revoltas que se espalharam pelo Brasil. Se somarmos a isso o fato de nosso poeta ter sua realidade cotidiana e os assuntos atuais de nossa cultura, da política, da literatura, etc, como objeto de motivação ou inspiração literária entenderemos que ele não foi, necessariamente, um autor que esteve absolutamente além de seu tempo, nem precisou ir tão longe para compreender todo o contexto que o envolvia – era justamente este contexto que influenciava sua produção literária.

No poema “Mãos dadas”, presente em “Sentimento do mundo”, Drummond escreve: “Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. / Entre eles, considero a enorme realidade. / O presente é tão grande, não nos afastemos” (...). O termo “caduco” parece sugerir certa especificação conceitual diretamente ligada à nova perspectiva literária tão bem divulgada pelo modernismo. Podemos encará-lo do ponto de vista histórico ao notarmos que ainda havia o processo de consolidação desse como um movimento novo em detrimento do Realismo/Parnasianismo que agora, “caducos”, não representam mais a poesia e a realidade brasileira. “Também não cantarei o mundo futuro”. (...) “O presente é tão grande, não nos afastemos”. (...) “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes”. Além disso, nosso poeta valoriza intensamente a realidade atual como uma forma de dar à literatura certo grau de intervenção – talvez social – de um sujeito que deve compreender a si próprio e, em posse dessa compreensão, agir no mundo.

O livro “A rosa do povo” é, talvez, a obra mais relevante de Drummond. Foi o momento de maior equilíbrio de um escritor já amplamente consciente de sua produção literária e da relevância da poesia como ferramenta de resistência e de combate entre o eu lírico, desiludido com a realidade social e política em que vive, mas que quer agir, e sua consciência de impotência diante do mundo.

Acerca desse sentimento de impotência do eu lírico e da consciência social mencionados anteriormente, podemos citar um fragmento do poema “Nosso tempo”:

(...)

Calo-me, espero, decifro.

As coisas talvez melhorem.

São tão fortes as coisas”.

Esta realidade se coloca diante do sujeito como incomunicável “Calo-me, espero, decifro”, insuperável “São tão fortes as coisas” e que o coloca diante de um panorama em que a esperança de melhoria começa a deteriorar-se numa incerteza pesarosa e fria “As coisas talvez melhorem”. E continua o poeta: “Mas eu não sou as coisas e me revolto. / Tenho palavras em mim buscando canal, / são roucas e duras, / irritadas, enérgicas, / comprimidas há tanto tempo, / perderam o sentido, apenas querem explodir”. Ainda que haja revolta e a poesia seja uma ferramenta de firme resistência do eu poético, a realidade contextual na qual nosso poeta está inserido parece estar marcada por uma solidão e privação da liberdade de comunicação.

Não é de surpreender que haja esta consciência pessimista em “A rosa do povo”. O livro foi publicado em (1945), portanto, a essa altura, nosso poeta já havia se dando conta dos males causados pela Segunda Guerra Mundial “Este é o tempo de divisas, / tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços”. (...) “Símbolos obscuros se multiplicam. / Guerra, verdade, flores? / Dos laboratórios platônicos mobilizados / vem um sopro que cresta as faces / e dissipa, na praia, as palavras”, viu muitos escritores e jornalistas serem perseguidos e presos pela ditadura do Estado Novo “É tempo de meio silêncio, / de boca gelada e murmúrio, / palavra indireta, aviso / na esquina. Tempo de cinco sentidos / num só. O espião janta conosco” – inclusive o próprio Drummond escreveu para um jornais usando pseudônimo – e presenciou diversas revoltas militares, sociais e políticas de resistência e oposição a difícil situação do Brasil em meados do século XX.

No final do poema em análise – “Nosso tempo” do livro “A rosa do povo” –, há um dos pontos de maior destaque na obra, no que diz respeito à consciência social e política: “O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, / um verme”. Vale saber que, ainda em 1945, Drummond, a convite de Luís Carlos Prestes figura como editor de um jornal comunista, embora, pouco tempo depois tenha deixado o mesmo por discordância da linha editorial adotada.

Terceira fase: (anos 50 e 60). Obras: “Claro enigma” (1951), “Fazendeiro do ar” (1955), “Vida passada a limpo” (1959) e “Lição de coisas” (1962). Foi onde se produziu, intensamente, uma poesia reflexiva, filosófica e metafísica nas quais são aprofundados temas universais como vida, morte, amor, velhice, tempo e a própria poesia, na perspectiva de uma metalinguagem carregada de muitos elementos do cotidiano. Neste sentido, esta fase seria um aprofundamento da primeira, reservando sua novidade – no que diz respeito ao lado formal do poema – a partir de certa aproximação com o concretismo e da preocupação com recursos gráficos, visuais e fônicos do texto.

O pessimismo dessa fase é o mais intenso de seu projeto literário. É corrosivo, frio e ácido, uma vez que o desejo de intervenção no plano social para a solução dos problemas se frustrou e se perdeu na própria compreensão de impotência do sujeito. O primeiro livro desta fase, por exemplo, foi escrito durante a Guerra Fria. Como sabemos, após o fim da segunda grande guerra, o mundo ficou dividido em dois blocos e as pessoas viviam atormentadas pela ameaça de uma iminente guerra atômica. De um lado os capitalistas liderados pelos Estados Unidos, de outro os comunistas, liderados pela União Soviética. Drummond via não só a impossibilidade de união entre estas duas posições tão divergentes, mas também observava os sujeitos divididos entre duas ideologias não necessariamente benéficas que somente se repeliam.

Mas, para a perspectiva de nosso poeta, no que isso tudo resultou? Numa poesia representativa de um sujeito perplexo diante de uma realidade ideologicamente caótica e abriu caminho para um pessimismo mais profundo e mais amargo, como já fora dito. Na fase anterior, o maior objetivo parecia encontrar respostas para problemas sociais, agora parece ser o de realizar perguntas ou questionamentos filosóficos em torno do ser, a fim de compreendê-lo no seu íntimo, afastando-o do mundo externo em nome de uma filosofia e de uma metafísica conscientes de seu alcance e de sua contribuição para a literatura.

Esse tom pesado aparece em muitos poemas de “Claro Enigma” e em outros livros dessa fase. Entre estes poemas, podemos citar um bastante significativo intitulado “Cantiga de enganar”. “O mundo, / meu bem, / não vale / a pena, e a face serena / vale a face torturada”. Era a melancolia do eu lírico em face de um mundo frio e sem sentido “É som que precede a música, / sobrante dos desencontros / e dos encontros fortuitos, / dos malencontros e das / miragens que se condensam / ou que se dissolvem noutras / absurdas figurações. / O mundo não tem sentido”. Aqui há um esvaziamento de sentido tanto do eu enquanto sujeito que pode interferir nos acontecimentos – como se fosse um autor escrevendo sua própria obra –, quanto do mundo já sem forças para suprir os sujeitos e suas demandas existenciais “que diz a boca do mundo? / Meu bem, o mundo é fechado, / se não for antes vazio. / O mundo é talvez: e é só. / Talvez nem seja talvez”.

Agora, mais “afastado” da primeira geração modernista, Drummond volta-se também para o resgate do poema clássico retomando as formas fixas como o soneto e utilizando versos rimados, como podemos ver em “Oficina irritada”.

Eu quero compor um soneto duro

Como poeta algum ousara escrever.

Eu quero pintar um soneto escuro,

Seco, abafado, difícil de ler.

Trata-se de um poema com muitos recursos linguísticos e imagens que se sobrepõe e se articulam entre si dando uma nova roupagem para o projeto literário do poeta. Nessa estrofe há utilização de figuras de linguagem e estilísticas como anáfora no primeiro e terceiro versos e sinestesia em “Eu quero pintar um soneto escuro, / seco, abafado, difícil de ler”. Também faz parte do poema a intenção semântica de dar um ar obscuro ao texto no sentido de tornar sua interpretação difícil, obscura e singular “como poeta algum ousara escrever”.

Quero que meu soneto, no futuro,

Não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que, no seu maligno ar imaturo,

Ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Embora ocorra elisão do pronome “eu” no primeiro verso desta estrofe, podemos dizer que houve anástrofe semelhante com o que era a pretensão da poética parnasiana “(Eu) Quero que meu soneto, no futuro”. Neste soneto há um requinte formal e, em alguns momentos, preocupação com a metrificação. Há uma metáfora nessa respectiva estrofe, talvez a grande mensagem do poema, a de que o poema alcance o futuro e causa prazer estético através da forma e do conteúdo.

Esse meu verbo antipático e impuro

Há de pungir, há de fazer sofrer,

Tendão de vênus sob o pedicuro.

Neste terceto há a confrontação de padrões estéticos ao mencionar Vênus – deusa romana da beleza –, o eu lírico – o ser que deve cultivar a beleza – e imprime-se o sofrimento como resultado do confronto entre a leitura obscura de um poema que pretende “antipático” e “impuro” com o objetivo de “fazer sofrer” no que diz respeito ao fazer poético e à concepção estética do belo.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

Cão mijando no caos, enquanto arcturo,

Claro enigma, se deixa surpreender.

Neste último terceto há a preocupação em criar uma atmosfera que ultrapasse o cotidiano. Não significa que há mudança de paradigmas na poética de Drummond, mas há uma liberdade maior em explorar elementos não tão bem visto pela primeira geração modernista. Talvez seja o momento de maior realização do poeta, ao acrescentar, em seu projeto literário, o desejo de romper fronteiras e paradigmas estéticos – já tão valorizados pelo modernismo – inclui novos horizontes no seu fazer poético e amplia consideravelmente o alcance de sua obra.

Já o livro “Lição de coisas” (1962) se sobressai no aspecto formal colocando o poeta próximo do concretismo e de uma poética mais preocupada com a forma. Podemos ver, por exemplo, a preocupação do poeta no elemento fonético e discursivo no poema “Amar-Amaro”:

Por que amou por que amou

se sabia

p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s

(...)

ah PORQUEAMOU

e se queimou

todo por dentro por fora nos cantos nos ecos

lúgubres de você mesm (o, a)

irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para

ou era por.

(...)

É importante notar que há uma forma bastante singular no que diz respeito à forma como o poeta utiliza as palavras. Aqui não ocorre apenas uma preocupação linguística, mas também fonética e visual. Em muitos versos há uma carga semântica marcada pela representação gráfica. Neologismos como: “esconsolável”, “núncaras” e “variantes de palavras dicionarizadas”, entre elas, “cantarino” (de cantarina) e “espotejação” (de espotejamento) fazem parte do poema como, parece-me, experimentações poéticas de um escritor sempre debruçado sobre novidades vanguardistas e alargamento de sua visão. Metafisicamente, há em Lição de coisas a exposição do amor inconsolável e suas contradições.

A quarta fase: a fase da memória (anos 70 e 80). Dentre as obras que se destacam, podemos citar: a série “Boitempo” (1968), “Menino antigo” (1973) e “Esquecer para lembrar” (1979). Também fazem parte os livros: “As impurezas do branco” (1973), “A paixão medida” (1980) e “Corpo” (1984), entre outros. Todas estas obras, em conjunto, representam um momento novo para o projeto literário do autor. Trata-se do resgate da memória, da infância, do tom nostálgico e autobiográfico do autor.

Desde alguma poesia – até a composição de seus últimos versos – que Drummond se apropria de certa atemporalidade ao romper, discursivamente, as barreiras de passado e presente numa tentativa de consolidar a memória como mola propulsora para essa efetivação. O fato poético, nesta perspectiva, – temas de que deveria tratar a poesia – não estaria apenas nas coisas cotidianas ou representativas de uma temporalidade poética, mas num movimento metafísico capaz de vencer o tempo.

No poema “Qualquer tempo”, nosso poeta escreve o seguinte:

Qualquer tempo é tempo.

A hora mesma da morte

é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo

bastante para a ciência

de ver, rever.

Tempo, contratempo

anulam-se, mas o sonho

resta, de viver.

Aqui há a retomada do lirismo filosófico e isso parece servir como pano de fundo capaz de justificar a produção poética dessa última fase “Nenhum tempo é tempo / bastante para a ciência” (...) Tempo, contratempo / anulam-se”. Podemos somar esta característica ao fato do poeta já contar com uma idade avançada, e isto resulta no uso da memória como campo específico e rebuscado para suas realizações poéticas.

É neste sentido que podemos entender que o lugar da memória não se restringe a espaços físicos, aborda também cognições do imaginário, lugares onde só se pode ver com a visão da memória e da imaginação. Assim, Drummond revisita ‘lugares’ do passado e reconstrói lembranças vivas de seu tempo, dando a elas certas expressividades poéticas e discursivas – coadunando, no mesmo espaço, realidade e ficção. Tudo isso faz com que ao propor o resgate da memória como objetivação literária o poeta fortalece sua identidade e estabelece – profundamente – a identificação dele, o sujeito, com o mundo.

Assim, nesta última fase são retomadas características de sua infância tanto com temas políticos – exteriores ao poeta daquele período, mas que o impactaram – como no poema “15 de Novembro” (“A proclamação da República chegou / às 10 horas da noite / em telegrama lacônico. / Liberais e conservadores não queriam / acreditar”), quanto retratando algo de sua própria visão interna com “Boitempo” (“Entardece na roça / de modo diferente. / A sombra vem nos cascos, / no mugido da vaca / separada da cria. / O gado é que anoitece / e na luz que a vidraça / da casa fazendeira / derrama no curral / surge multiplicada / sua estátua de sal”).

No poema “Consciência suja” há a retomada de sua adolescência “Vadiar, namorar, namorar, vadiar, / escrever sem pensar, sentir sem compreender, / é isso a adolescência? E teu pai mourejando / na fanada fazenda para te sustentar? / Toma tento, rapaz. Escolhe qualquer rumo, / ai ser isto ou aquilo, ser: não, disfarçar”.

Até mesmo o próprio amor, outrora negativo aparecendo como sinônimo de desencanto/desencontro, assume certo reconhecimento: “O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo / acha a razão de ser, já dividido. / São dois em um: amor, sublime selo / que a vida imprime cor, graça e sentido” – do poema “Amor”. Podemos observar estes mesmos traços transcendentes em “O amor antigo” (“O amor antigo vive de si mesmo, / (...) Mais ardente, mas pobre de esperança. / Mais triste? Não. Ele venceu a dor, / e resplandece no seu canto obscuro, / tanto mais velho quanto mais amor”). Portanto, neste período, há uma realização muito intensa por parte do poeta. É o amadurecimento e, talvez, a realização mais alta de seu projeto literário.

UMA CONCLUSÃO PARA PROLONGAR A CONVERSA

Abordamos, na última parte desse texto, o fato de que a fase final, no que diz respeito ao conjunto da obra do poeta, alcança certo grau de atemporalidade. Quer dizer: Drummond se apropria de certa atemporalidade ao romper, discursivamente, as barreiras de passado e presente numa tentativa de consolidar a memória como mola propulsora para essa efetivação. Tudo isso se resumiria, em outras palavras, “tentativa de realização de um movimento metafísico capaz de vencer o tempo”, muito bem realizado pelo poeta.

Isso, por si só não confrontaria diversas tentativas de abordar o conjunto da obra de Drummond e fases específicas? Em partes sim. Mas não há contradição ao se realizar tais tentativas. Ocorre que se analisarmos determinados temas como infância, memória, família, auto-reflexão, entre outros, chegaremos a conclusão de que estiveram presentes em praticamente todas as obras de nosso poeta. Não obstante, há determinados períodos na produção do poeta em que estes temas são tratados de forma mais profunda. Por isso se diz que os anos 30 – do século XX – ficou marcada na obra de Drummond uma preocupação em estabelecer a nova poesia proposta pela primeira geração modernista e cria um panorama de intensas reflexões um tanto quanto pessimistas que giravam em torno do eu poético e do mundo. Depois, uma preocupação social mais específica e direta (1940-1945), seguindo-se de uma poética mais filosófica, (anos 50 e 60) e um período direcionado pela “memória” (anos 70 e 80).

Mas podemos questionar, ainda uma última vez: onde ocorre a questão da atemporalidade do poeta? Reside no ponto mais alto de sua poesia, na impressionante capacidade de ser contemporânea. E isso ocorreu não necessariamente porque nosso poeta refletia mais profundamente e com mais qualidade, mas porque não ignorava a matéria mais comum e abundante para a arte de escrever em versos, os detalhes comuns dos sujeitos, relegando para o poema as absorções do sentimento poético presente em todas as coisas.

Com isso, Drummond não foi apenas um poeta pós / primeira geração modernista. Pertenceu, por conseguinte, a todas as gerações modernas e ainda continua atual e rebuscado, no que já podemos chamar de pós-modernismo. O que muitos poetas pós-modernos abordam, certamente, em algum momento, Drummond já tratou em sua poesia.

É neste sentido que podemos dizer que em literatura não há movimento absolutamente globalizante. E a visão de mundo dos escritores modernos serve perfeitamente para confirmar tal hipótese, justificada – inevitavelmente – pelo projeto literário de Drummond. Onde residiria então o maior impacto produzido pelos escritores e artistas do modernismo? Na ampla liberdade de criação estética, tendo Carlos Drummond de Andrade como seu maior representante e sua maior realização poética. Assim, nosso poeta deixou suas marcas no caminho e escreveu sua história, com grande destaque, na nova poesia brasileira.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 04/01/2018
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