UM PONTO CERTO
Nesse momento eu olho o preto de árvores e morcegos que se misturam com o cimento ainda quente das casas aparentemente humildes, mas reconhecíveis: já é noite. É noite e o meu bigode cresce sem parar. Imagino-o fios grossíssimos, como se parecessem grandes barras de ferro, querendo tapar-me a boca — para que eu não beba o último gole desse líquido aliciador — estou em um bar, cacete armado, sei lá o quê!
Dispo os meus ouvidos dos recursos da audição, porque o som agora é estranho, barulhento, tipo inferno mesmo!
É... abstração total: Tom Jobim é ótimo, eu sinto a sua música já na minha garganta; eu estou bebendo Tom Jobim com toda a sua beleza (as pessoas comentam que Tom Jobim é quente, é culto) ... abstração total!
... talvez, se não fosse aquela árvore ali à esquerda, eu pudesse ver tudo, além das casas e dos morcegos pretos. Leve-se em consideração a esse meu brado retumbante o fato de eu estar a apenas meia garrafa de cerveja que, porém, mais parece delírio de droga forte.
... esse vazio, esse branco no papel, testa o meu consciente, que no momento transborda de ansiedade. Sou, pois, forçado a encontrar uma lógica descritível, apesar da precoce ressaca delirante: não mais vejo os pássaros, digo, morcegos (pretos). Não vejo nada agora além da imagem do garçom, em um gesto habitual, quase clássico, desenrolando um enorme pergaminho que não tem mais fim. Entra por tantos corredores, no seu desenrolar, o pergaminho, que me leva por um instante a pensar que esteja acontecendo tudo isso naquela faculdade mofada e sórdida e... hisss! Hisss! — desculpem, é o clima. A propósito, sempre tive dificuldades em trabalhar com onomatopeias.
... O garçom agora está na minha frente, vestindo um traje escocês e insistindo em dizer que aquilo que estou vendo em suas mãos não é um rolo de papel higiênico, é a conta mesmo! Volto, então, a escutar a música que violenta ouvidos, ela é a melhor maneira de escapar de um garçom insistente (onde está a minha musa, meu reino por ela, quero ela!)
Paga a conta! — insiste o garçom, exibindo em um rolo de papel róseo uma porção de números que dão para substituir as frutas da minha camisa nova tão criticada, mas aceita por “eles”.
... não tenho todo esse dinheiro, é muito para tão pouco sonho, tão pouca utopia. Se ao menos a minha musa... não vou pagar, não vou mesmo! — estou me sentindo autêntico e representativo das criaturas às quais não falta testosterona com esse gesto tão audacioso e viril.
— Olha, seu garçom — respondo, não sei se a minha rebeldia se dá porque ainda não morri; só sei é que não quero ser artificial. Porra, sardinha de canto de lata!
E “eles” quase me castraram; por um momento pensei não voar mais colorido... ah, mas eu sou mais que a corda, eu sou a própria caçamba! Eu só quero um trago, entende! Não sei se a metáfora é forte demais para um vernáculo assim meia boca, mas choro sem a minha musa e fico descalço sem o meu JEEP — ele tem que ser original!
... não podendo, entretanto, evitar a logística de um ambiente como esse, desprovido de ideais altruístas, da prática do mecenato e, após a pantomima não convincente, pago a conta e sumo depois de acondicionar as minhas discrepâncias metafísicas dentro de um saco plástico que costumo carregar para ocasiões como essas, não raras, acompanhadas de um antiácido providencial.
Ah, a música aí é uma tal de Faraó, óóó, óóó... Raul Seixas era feliz e não sabia, meu amigo!