Caminhando Perto do Coração Selvagem

Tudo o que começa já começou. Já faz algum tempo que venho caminhando perto do coração selvagem. Antes o meu que o de Clarice. Aliás, não sei se alguém poderia caminhar por Clarice sem já ter se decidido caminhar por si e em si mesmo. No meu caso, reconheço o que me leva e ad-mira nela. Isso de ser do sertão guarda em mim uma ferocidade que, somada à solidão com que dias chuvosos tanto me presenteiam quanto presentificam, faz com que minhas mãos me arranquem do peito o coração, como se num gesto canibal, entre o céu e a língua, eu fosse comer a mim mesma.

É dezembro. Chove muito. O dia está bastante cinzento. O feriado na cidade torna as ruas mais silenciosas, modo de que olhar para dentro e ouvir os segredos circulando na corrente sanguínea se-ja já quase inevitável. Perdoem-me, desde já – isso da repetição Freud explica -  os que esperam que a escrita se desvie de mim. Eu nada sei dizer fora do testemunho dos meus sentidos.

Certa vez – e que linda vez que isso foi -, vinha uma vaquinha pela estrada abaixo fazendo muu! E essa vaquinha , que vinha pela estrada abaixo muu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fuça-Fuça..Sobre a vaquinha e esse muu - tão perto do que é meu - falarei em outro momento.  Mas isso de Fuça-Fuça é a história dos rastros. Dispensei as aspas. Escrevo no rastro. Não há escrita sem rastros.  

Estas são as primeiras linhas do Retrato do artista quando Jovem, o primeiro romance de James Joyce, que guarda a frase “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”, que foi parar na epígrafe do primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem.  

Do grego antigo, epígrafe significa “escrever acima de”, sendo originalmente uma inscrição em prosa ou em verso, talhada em bronze ou mármore, que se colocava sobre tumbas para lembrar a memória de um defunto (assim chamada epitáfio) ou em outros lugares, em comemoração à vida de pessoas e/ou eventos importantes.

Não posso afirmar que a jovem Clarice, a moça, tão moça, de pouco mais de dezessete anos, teria lido o romance com que Joyce, com traços autobiográficos, conta o processo de amadurecimento artístico de Stephen Dedalus, o protagonista da obra que, determinado a se tornar poeta, quer vencer as forças que reprimem sua imaginação: as convenções sociais e religiosas.

“Não acusar-me. Buscar as bases do egoísmo: tudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é – no entanto, eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente; sou um corpo e tudo o que eu fizer é continuação do meu começo”. Pareceria, pela trilha das palavras, que o texto é de Joyce. Mas isso não é Joyce. Isso não é Stephen Dedalus. Isso é Clarice, ou melhor, isto é Joana, no Dia de Joana, Perto do Coração Selvagem. Eu sei que parece que estou saltando o Pai. Mas é isso não procede. O pai está ali, desde ali, contando a história para o Pequerrucho Fuça-Fuça.

Até aqui, não tenho elementos para dizer que a narradora é mesmo narradora, no feminino, mas minha intuição me diz que seja. De repente, num estremecimento, a chuva fica mais forte. A chuva é forte. A chuva e a força são femininas e, fêmeas que são, procriam o som da voz que, em mim, é feminina. E isso de ser mais do que a si mesmo quase normalmente, esse normalmente, normalmente não é outra coisa senão o que se diz a partir e limitado por normas e convenções, o que esconde o eu, o eu em si, o eu sem revestimentos, só acessável sob as bases do egoísmo.

A edição a partir de onde tudo isso me acontece – toda leitura é um acontecimento espacial e temporal -, da Nova Fronteira, em sua nona edição, faz uma apresentação do romance dizendo que Clarice não leu Joyce, invocando, no con-texto, uma fala de Clarice de que nunca o teria lido, assim como a Woolf, mesmo depois. Talvez, por certo, em um determinando sentido, pouco importa saber se Clarice leu ou não leu Joyce, porque toda escrita já é, em si mesma, sobreposta. Em grande medida, o que acontece são rasuras por cima de outros textos que são contra-assinados.

Lado outro, uma epígrafe nunca é um texto avulso. Uma epígrafe, qual preâmbulo dos textos normativos, é parte integrante do texto, delineia um caminho, traça um pano de fundo a partir do qual se pode interpretar um texto. Em matéria de direito dir-se-á: a partir do qual se deve interpretar um texto. Em literatura, todavia, e toda-vida, e desde sempre, desde que é e seja literatura, o texto é aberto e a epígrafe, neste caso, indica uma infinitude de caminhos possíveis. Não resta, pois, senão caminhar pelo abismo do infinito.

Mas ouçam. Tin-dlen. Tin-dlen. Tin-dlen. O relógio acordou.  Preciso interromper minhas mãos, mesmo que eu sequer tenha começado. Isso de caminhar faz com que o caminho sempre importe mais do que o ponto de chegada. Eu voltarei. Pés a mãos. O relógio vai desempoeirar. Por ora, ora-ora, preciso é inventar um poema: Eu e a chuva.