Eu deveria...

Mais uma noite escrevendo sozinho. Hoje eu já escrevi de tudo. Inventei histórias cheias de intriga, fiz algumas revelações, e deixei minha imaginação criar à vontade, sem censurá-la. Assim descobri outra pessoa dentro de mim, e imediatamente abri espaço para ela se manifestar. Ainda não estou convencido das coisas que escutei, não sei exatamente se estou sendo enganado.

Estou na dúvida do que devo fazer, cada dia que passa as decisões se tornam mais difíceis de serem tomadas. Por que ando pensando somente em problemas?

Onde está a solução? Há alguma solução? Devo ter esperança? Já não acredito em mais nada. Não posso esperar por uma mudança radical, ainda que a tragédia seja sempre uma possibilidade. Mas não é disso que estou falando. Refiro-me ao comportamento humano, às relações mais comuns, à realidade cotidiana.

Por quanto tempo ainda terei de fugir? A morte, os desejos, os sonhos, a realidade, a distância, o dinheiro, os preconceitos, a hierarquia, as formas de vida, o presente, a loucura, as artes, a filosofia, os meus cachorros, as drogas, as mentiras, os assassinatos, os suicídios, os conflitos, o perdão, la morale chrétienne, a imperfeição, o ódio, a força, etc.

Que vontade de me livrar de tudo isso, nem que fosse por um segundo. Que vontade de não pensar em mais nada, de poder viver todos os dias como se fosse o último dia da minha vida. Que vontade de estar ao lado dela, em uma praia distante, me deliciando com os últimos raios do pôr-do-sol, em plena harmonia, gargalhando e rindo durante a madrugada inteira, felizes um pela companhia do outro, se entrelaçando até os nossos corpos se tornarem apenas um, no limite mesmo do amor ideal.

O que eu estou escrevendo? Onde a minha imaginação está me levando? É sempre assim, eu começo a escrever sobre uma coisa e termino falando coisas que não precisam ser ditas.

O que mais eu poderia lhes dizer? Não quero passar a noite escrevendo coisas sem sentido. Preciso direcionar esse texto para algum lugar. Confesso que estou a ponto de desistir, e apesar da minha imaginação querer seguir criando, talvez o melhor seja calar-me. Nada que eu possa vir a escrever servirá para expressar o que eu não consegui dizer durante o dia inteiro. É perca de tempo continuar insistindo em algo que está condenado ao fracasso. Em certos momentos, devemos abdicar dos nossos sonhos, e correr em direção a um abrigo seguro. Além do mais, meus braços já não suportam o peso da caneta, e meu corpo está cansado demais para permanecer sentado escrevendo durante mais algumas horas. E tem outras coisas também, o texto está ficando longo e exaustivo, ninguém irá lê-lo até o fim; não há nenhum desenvolvimento de idéias, nenhum sentimento que possa tocar o leitor; e, para ser bem sincero, o texto é muito mal escrito, cheio de erros básicos de ortografia; enfim, não há nada de plausível, pura perca de tempo.

Consciente de toda essa critica acerca do meu texto, a única escolha inteligente é deixar de escrever e começar a fazer outra coisa da vida. Talvez trabalhar de verdade, em alguma linha de produção; ou talvez o melhor seja estudar para ver se consigo aprender alguma coisa antes de morrer. Não sei, mas qualquer coisa a não ser escrever, o melhor é ficar bem longe do caderno e da caneta, pois nem a imaginação – faculdade mais importante do artista – pode me salvar. Eu estou perdido, e meu caso é sério; devo reconhecer que todo esse esforço empregado no intuito de criar uma obra imortal foi em vão e a única coisa que aprendi com esse empreendimento é o quanto eu sou tolo. Como pude me enganar dessa maneira? Por que não dei ouvidos quando tentaram me alertar? Que cabeça dura! Eu deveria ter desistido, ou melhor, eu nem deveria ter me esforçado tanto por uma coisa que eu acredito e que – certamente! – eu daria a vida se assim fosse necessário. Eu deveria ter desistido de fazer o que eu mais amo na minha vida.

São Paulo, 6 de dezembro de 2017.

Carlos Gadamer
Enviado por Carlos Gadamer em 07/12/2017
Reeditado em 07/12/2017
Código do texto: T6193109
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