Ensaio Sobre a Mentira

Sócrates já refutara Céfalo, na República, sobre seu conceito de justiça, que seria, também, o não mentir; a refutação daquele consistira basicamente na afirmação de que existem situações em que a mentira cumpre uma função benigna, ainda que isso não qualificasse propriamente o conceito de justiça. Mas tal observação não enfatiza a inexorável necessidade da mentira para existência da coesão social, ou seja, para a própria sobrevivência da sociedade.

Na obra de Marcel Mauss, Ensaio Sobre a Dádiva, ele estuda o comportamento ritualístico da troca de presentes entre as tribos e seu significado sócio-estrutural. Marcel nos mostra como o ritual, independente da real intenção dos participantes, mantém a coesão social entre as tribos, e sua perpetuação, através da obrigatoriedade de dar um presente, assim como sobre o recebedor em restituir outro.

Esse escambo vai muito além de trocas físicas; ele abrange todos os âmbitos da psique humana e dá condições para que se dê a sociabilidade. A troca de carinhos, elogios, impropérios, amabilidades, empatias, desafetos, etc., são ações ligadas a todas as formas de relações que têm por fundamento uma troca de algo por algo, seja este algo físico ou abstrato, interesseiro ou autêntico; a troca subjaz essa relação, e somente se ela for justa a relação permanece.

Lanço o desafio a qualquer um que duvide; exponha sempre aquilo que entende por verdade sobre todos a sua volta, sem restrição; depois me diga se as relações permaneceram as mesmas, tão satisfatórias quanto antes.

Do seio familiar ao corporativo, a mentira mantém todos unidos nas relações de boa conduta, isto enquanto interessados em manter a engrenagem funcionando e a coesão social. Podemos chamá-la de educação, mas o uso da educação respeita o mesmo princípio do “dar e devolver”. Os afetos, independente de sua origem na deficitária auto-suficiência, anseiam por manter o status quo afetivo, por isso a constante troca de elogios, carinhos e presentes.

Temos respaldo filosófico, antropológico, e certamente psicológico. A mentira é a argamassa das relações sociais, é o presente dado e retribuído, tão verossímil que realmente acredita-se nela, tão útil que se torna indispensável. A própria verdade é por demais efêmera, instável, insustentável. Para ser enfático, não há vida social, logo, individual, sem a mentira.

Seus usos inadequados e efeitos perniciosos não anulam sua essencial necessidade.