O UNIVERSO DA LINGUAGEM

“Amigo e Mestre: tenho acompanhado, com encantamento, as tuas postagens. Questiono qual o papel do poeta na atualidade? E se nós estamos conseguindo ser lidos, interpretados e mais do que isso, se nossa a mensagem central e, portanto, existencial, tem sido minimamente absorvida? Mudar a direção? Parece paradoxal... Deveríamos ser poetas de uma simplicidade franciscana abolindo o uso de metáforas, a exemplo do nosso Mário? Não sei. Dúvidas persistem. Talvez muitos leitores não estejam dispostos a um exercício de reflexão a um nível tão profundamente abstrato. O problema situa-se na decodificação. Um saudoso abraço.”.

Cassiano Gilberto Santos Cabral, poeta, via Facebook, em 30Ago2017.

Salve poetamigo Cassiano! Todas as tuas perguntas são de difícil resposta, porque para chegar a uma boa conclusão pessoal para cada uma delas, em regra teríamos, no mínimo, que contar com pesquisas de opinião, de modo a que se pudesse adentrar a uma veracidade responsável, possivelmente utilizando dados reais com tabulações estatísticas. Este seria um caminho, apenas. Por certo haverá outros. Quanto ao problema da "decodificação" que o poeta-leitor terá de fazer, também é um fato veraz e o teu questionamento geral contém o exercício da sabedoria. Abolir o uso das figuras de linguagem, em especial a utilização da metaforização, chega-me como impossível, porque tenho que sem a metáfora profunda (porque existe a rasa ou superficial) não se consegue chegar à poesia, no máximo à prosa poética. Ter-se-á, portanto, sem a metáfora, uma composição poética sem o comparecimento da Poesia como gênero literário. Vale dizer: apenas um derramamento verbal provindo da intuição e do sentir, assentado no intimismo lírico, o qual, por ser a consolidação verbal momentânea do que o autor deixa fluir sobre tal ou qual assunto, não chega à utilização da palavra no sentido CONOTATIVO e, sim, enclausura-se e se basta com a utilização do sentido DENOTATIVO. (São versos, somente versos, sem que a Poesia compareça esteticamente, e isso é muito comum de ocorrer em nosso meio, porque o ingênuo autor não sabe, tecnicamente, em que gênero ou espécie literária está a se comunicar.) Os dois tipos de metáforas, a de palavra e a de imagem têm este condão: dar ao conjunto de palavras do poema, através da subversão do sentido original dos vocábulos utilizados, criando conotações que levam ao patamar estético do Novo (daí o estranhamento) em ideias e em linguagem. Quanto ao Mário Quintana, muito cuidado, não há nenhuma "simplicidade franciscana" em sua poética. As peças poéticas referentes à sua maturidade em Poesia (a partir dos seus 70 anos, em 1976) não são, a meu ver, assim tão simples, e comparecem em seu espírito como resultado da utilização da ironia como pedra-de-toque utilizando certa singeleza verbal que constrói, repentinamente, uma metáfora de imagem utilizando vocábulos sem a pretensão de complicar a cuca do poeta-leitor. no entanto, concordo que tanto Manuel Bandeira quanto Quintana não foram ‘rebuscados’ (quanto à utilização de vocábulos de difícil entendimento) como parece ser o caso de João Cabral, Drummond ou Murilo Mendes; de Fernando Pessoa (que cria o poema pensando a partir dos conceituais léxico-morfológicos do idioma de Shakespeare, mesmo quando transpõe essas ideias e temáticas para o idioma português) ou Ezra Pound, Elliot e Blake, na poesia de língua inglesa. Por último: cada autor escolhe o perfil de seu leitor, se culto, mediano ou primário. Há público para cada composição poética. A Poesia nasce em decorrência de como o autor do poema observa os fatos da realidade e o traveste como proposta verbal, porque cada qual vê o mundo segundo o vê ou o concebe individualmente. Ao demais, não é o autor quem dá vida ao poema, e sim o poeta-leitor, quando se apossa do poema e o traz ao mundo dos fatos como se fora verdade plena. E todos nós sabemos que o "poeta é um fingidor" que se locupleta do inconsciente coletivo e trabalha – para forjar o poema – utilizando-se da farsa, da fantasia e do sonho presentes no seu estro criador. Tudo depende de sua capacidade inventiva. Enfim, todo poema é abstração pejada de inverdades, pois não pertence aos territórios do mundo real, mas o leitor dará a este o sentido que a ele aprouver, segundo o seu patamar de conhecimentos e de leitura do mundo, fazendo dele a sua verdade salvadora. Se bem que não é o autor que escolhe o seu público, e sim o leitor quem escolhe o seu poeta, por entender que ele fala a sua linguagem. Portanto, o importante mesmo é escrever e publicar. O porvir dirá quem agradou a quem e o que por eles foi absorvido para possíveis aplicações no universo individual da sensibilidade e da consciência. Escreve sem medo. Parece-me ser esta a única escolha consciente que pertine ao escriba. Quem sabe fosse útil trazer ao plano da realidade pensamental o aforismo de William Blake: “Quem nunca altera a sua opinião é como a água parada e começa a criar répteis no espírito.”.

– Do livro OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/17.