Ensaio sobre o problema da música
Viver é buscar musicalidade. Música é panaceia, S.O.M.A., a pílula azul, gozo; sem ela não vivemos. Este é o verdadeiro fado do homem, viver em um mundo de música finita – não obstante, de infinitas melodias. É impulso primal, este desejo de canção; o buscamos em cada ação, cada pensamento, cada sonho, cada lapso. E cada gesto nosso, implica uma reação – e, por que não? Uma punição! Isto porque inebriar-se deste impulso é, entretanto, o mais censurado ato. E tudo o que a humanidade fez até aqui, mirou suprimir a música. Pura tolice – uma vez que a musicalidade a priori já realiza esta tarefa – a música tende a findar par excellence.
Com isso, podemos confabular um caminho curioso: vivemos de música, nosso prazer; mas esta nos escapa, é instável, inconstante e principalmente externa, isto é, independe do individual e, essencialmente, não pode ser forjada adentro. Assim, a grande saída da humanidade (“O Problema de Sócrates”) foi trancafiar a música – niilismo daqueles que “prefiram um nada seguro a um algo incerto para deitar e morrer”. Estabelecendo-se o silêncio como sagrado e mais alta virtude. Deste modo, o homem se viu livre desta busca agonizante. Ao menos assim lhe disseram...
Esta “solução” insidiosa, no entanto, resultou, senão uma série de sintomas. E logo se alastrou uma perene histeria coletiva, pessoas vagavam pelas ruas desorientadas por uma melodia insinuante que lhes ressoava abafada em um canto obscuro da mente (vide epidemia de 1518). Assim, um novo – e mais severo – mal-estar impregnou-se sobre a civilização. O que tornou a moléstia mais austera do que no passado, foi o fato de havermos esquecido o que significava aquele som. Porquanto, acreditava-se que a música era, então, algo condenável – reprimido! Analogamente, criou-se – através do silêncio – uma resistência sobre nossa concupiscência musical.
O último-homem (o mais ressentido niilista) inferiu, afinal, que a sociedade abdicou a música, mas o indivíduo não. Era preciso atuar ativamente sobre a mente particular e seus respectivos desejos. O modo como se operou a situação foi o mais monstruoso – e paradoxalmente natural – possível: fixou-se o conceito (música igual mal) na supervisão interna, no panóptico pessoal que, ao mesmo tempo, regulava, vigiava e punia os impulsos à musicalidade de cada um.
Finalmente, ecce homo: polido como se deve.
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É ilusório pensar que este é o fim. Trata-se do início: "Incipit tragoedia"! O declínio que nos levará a transcender – transvalorar. Se ao fundo ainda se ouve algum som, não temam a nenhuma proibição. Sendo a música o nosso alvo, e o silêncio a moral; que sejamos imorais! Assim vivemos. E se a música retorna amor fati, se ela finda, o mesmo. “Se já não tens felicidade a me dar – Vamos, ainda tens tua dor.”
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“(Meio-dia; momento da sombra mais curta; fim do equívoco mais longo; auge da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA.)”.