PEDRA DE TROPEÇO

Vi uma fotografia e um texto, no mural de uma amiga, e achei-os lindos. Ambos me fizeram (re)lembrar momentos da minha infância, adolescência e juventude.

A fotografia me fez lembrar de dona Laura, a "loicêra" do vilarejo. Suas mãos negras, curtas, de dedos achatados, pele fina e enrugada, moldando o barro escuro. Modelando jarros, frigideiras, chaleiras, caldeirões, moringas, potes, “purrões”, tachos, todos com seus respectivos “textos”. Eu ficava horas olhando-a trabalhar. Após o “cozimento” as peças escuras adquiriam uma cor róseo-dourada. As moringas ou “quartinhas”, como dona Laura e todo o vilarejo chamavam, eram pintadas com motivos florais, ou apenas um tracejado bonito, que não sei de onde ela os tirava. Ficavam muito bonitas e eram disputadas pelos compradores. Bem assim os potes e “purrões”.

Já o texto me fez lembrar do quanto fui injustiçada e do que isso causou em minha vida, para sempre: MEDO! Medo de perder a oportunidade de ser diferente daqueles que me judiaram. Medo de não ser capaz de desistir de desferir o golpe, de guardar a “espada”, de calar quando o meu silêncio seria a melhor oferenda. Medo de deixar que me transformassem naquilo que mais temi na vida: O OPRESSOR. Medo de não conseguir amar com a mesma insistência com que tentaram me ensinar a odiar. Medo de não saber perdoar. MEDO... MEDO... MEDO.

Com o passar do tempo, comecei a perceber que Jesus perdoava, mas, impunha condição. A mulher adúltera ele disse que “seus pecados estão perdoados, que ela fosse embora, mas não torne a pecar!” Ao ladrão arrependido, ele disse: “em verdade te digo, hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Entretanto o corpo físico daquele homem ficou na cruz, para sofrer uma morte ignominiosa e violenta. Então percebi o quanto me era difícil perdoar! Pior ainda, eu não poderia impor condições a quem me feria.

Uma raiva medonha começou a crescer dentro de mim. Tomou-me de uma forma que muitas vezes fiquei sem me alimentar, aguardando que o inimigo caísse e viesse até mim, rastejando me pedindo perdão. O que inevitavelmente acontecia, sempre, sem falhar.

Questionadora até a raiz dos pixains, não me conformava com aquilo. A dor do outro me machucava mais que sua ofensa contra mim. Chorava e ficava ainda mais zangada. Desde que me lembro, minha irmã adorava me bater, sem nenhum motivo justo. Rasgava minhas bonequinhas de pano, batia nos meus animaizinhos, comia meu lanche. Vestia minhas roupas intimas. Usava meu perfume preferido até a última gota, me deixando sem nada.

Claro que eu, às vezes, “virava bicho” e avançava pra bater nela. Ela sempre acertava meu estomago com um soco e eu caia como dizia ela “____ de chucai tampado!” Mas, desde então me lembro que minha mãe ao descobrir a safadeza de minha irmã, dizia “____Chore não Neno, entregue a Deus que ele vinga você!”

Até que um dia, mais uma vez, ela aprontou comigo. Era meio dia a pino. Na época, eu era ainda só uma menina (15 anos) e estava ajudando minha mãe a fazer argamassa para reparar o reboco da casa do meu irmão, quando a ouvi me “rogar” uma praga estúpida, sem nenhum motivo... quer dizer, eu tomara suas dores contra a traição do meu cunhado, seu marido! Não falava mais com ele. Eu a amava como se ama um Deus! Mas, ouvindo-a pronunciar palavras que me arrepio até hoje ao lembrar, senti uma onda de revolta tomar conta de mim. Irada e chorando, me ajoelhei e pedi ao G.E. Que se eu merecesse aquilo ELE podia “bater” com força que eu aguentaria, mas, se eu não merecesse que ELE enxugasse meus olhos.

O grito silencioso parecia vir borbulhando do meu útero e morria na garganta. Minha mãe ouviu tudo e percebeu que minha irmã corria perigo, tentou avisar. Tarde demais. Menos de 10 minutos haviam se passado, quando presenciei a vida de minha irmã quase ser destruída totalmente. Senti-me um monstro, mas, sabia que nada mais podia fazer por ela, a não ser pedir perdão ao G.E. pelo acesso de fúria que me tomara! E aquela não fora a primeira vez que minha irmã esteve por um triz.

Um outro incidente terrível, aconteceu com a Marili, uma desmiolada jovem mãe, não mais jovem que eu, nos idos de 1976. Na época ela já era mãe de três crianças. Eu havia dado a luz a duas. Talvez por eu ser uma pessoa muito calada e de poucos amigos ela resolvera pegar no meu pé.

Apelidava-me, me xingava quando passava no “oitão” de sua casa. Passagem inevitável para quem morava dentro da Vila. Ameaçava me proibir de passar por ali, tudo com indiretas. Conversava com meu marido tentando me provocar ciúmes, o que nunca conseguiu, posto que nunca me senti dona de nada nem de ninguém, muito menos de um garoto que casara comigo por amor.

Certo dia ela derramou a última gota que fez a taça transbordar. Era uma sexta-feira, mais ou menos umas 11h10min. Chamou uma prostituta, metida a galo de briga, amiga dela, e falou assim: “Quando essa nanica metida à besta passar por aqui hoje, para ir para a escola (eu estudava a noite) vou “atocaiá” ela e vou dar tanta porrada que ela vai ficar feito mingau no chão.” Daí a outra mulher disse: “Pode contar comigo. Se tu quiser meto-lhe a faca!”

Quando acabei de ouvir aquilo, tudo começou a ficar vermelho como se um véu de sangue cobrisse meus olhos. Uma voz gritava em meu ouvido: “Escuta F... não fizestes nada contra elas duas. Vai, fala. Manda que eu acabo com as duas. Manda. Fala. Basta uma palavra tua. Diz o que desejas que eu faça que eu faço, com prazer. Diz!”

Lembrei-me dos ensinamentos de Minha Avó e de Minha Mãe. Instintivamente enchi uma tina com água, onde espalhei folhas de manjericão, pétalas de rosas, alecrim e pó de sementes de boninas. Tomei um banho demorado. Depois me enxuguei sem pressa. Peguei uma camisola preta e vesti. Forrei um pequeno tapete no meio da salinha do casebre onde morava, peguei um prato, uma vela, uma caixa de fósforos e um copo com água. Sentei-me sobre o tapete, onde coloquei o prato.

Risquei um fósforo e acendi a vela. Pinguei cera derretida sobre o fundo do prato e “assentei” a vela. Derramei metade da água do copo no prato e cobri a cabeça e os olhos com uma echarpe negra e disse: “Só me levantarei daqui quando Marili sentir em seu corpo tudo que ela planeja fazer comigo!” E “apaguei” completamente.

Pouco depois ouvi pancadas na porta de minha casa e a voz apavorada da minha vizinha Ilda me chamando “___F... F... F... acode, a Nazaré está matando a Marili, fala com ela!” A sensação era de que eu estava enroscada como uma “língua-de-sogra”, aquele brinquedo de festa de criança. Quando dona Ilda me chamou, foi como se alguém soprasse sobre meu chacra coronário, fazendo meu corpo se distender, me obrigando retornar numa velocidade que fez doer a planta dos meus pés. Vesti um vestido sobre a camisola, e abri a porta no exato momento em que Nazaré arrancou uma estaca da cerca e golpeou a cabeça da Marili, fazendo o sangue jorrar em borbotões.

Vi a mulher que me ameaçara virar-se para mim, revirar os olhos e cair, lavada de sangue. Justo no lugar onde ela disse que iria me matar, logo mais a noite. Nazaré estava enlouquecida. A blusa rasgada pondo a mostra um par de seios rosados e turgidos, chamando a atenção dos rapazes que correram para “desapartar” a briga. Tarde demais. Marili foi levada ao HPS desmaiada e sangrando muito. Fechei a porta, e ao ver minhas duas filhas dormindo calmamente, lembrei dos três filhos de Marili! Ajoelhei-me no chão e pedi ao G.E. que ela não morresse, que me perdoasse outra vez! Ela não morreu, por um triz.

Nazaré não foi presa por que todas as pessoas que viram a briga testemunharam que ela agira em legítima defesa. Marili e a prostituta tentaram, até hoje não sei por que, espancar Nazaré!

Quanto a Marili, ficou na UTI uns dias e depois voltou para casa toda machucada. A cara inchada. Os olhos roxos. A cabeça pelada, costurada (20 pontos).

Desse dia em diante, sempre que estou muito zangada costumo dizer: “G.E. tampe os ouvidos. Não ouça o que estou dizendo, não. Só estou desabafando. GRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRR...”

Vixeeeee. Alguns colegas meus brincam: “____X... quero morrer seu amigo, viu?” Ao que eu respondo, também sorrindo “____ Aprenda a não ofender. É mais fácil do que aprender a perdoar!”

Creio que é por ai. Se todos aprendermos a não ofender, talvez não necessitemos mais pedir perdão!

Eu continuo tentando não ofender, mas... não sou de ferro... vez em quando, esqueço o propósito e “enfio o pé na jaca”!

Adda nari Sussuarana
Enviado por Adda nari Sussuarana em 20/08/2017
Reeditado em 23/08/2017
Código do texto: T6089570
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