Brinde

para Stéphane Mallarmé

Macio branco

na noite escura.

Espuma escorre

entre as ondas.

O balanço do viajante,

tragado pela felicidade,

sente o vento frio

e o calor interior.

Ergue o cristal sem

medo de se perder.

Há estrela sobre a vela.

Permite a pura visão

para seguir a direção,

mesmo sob tensão.

O poema "Brinde" dedicado a Stéphane Mallarmé pode ser lido em três níveis de significado ou "isotopias", que estão internamente relacionados:

1) como um brinde, com uma taça de cristal e a espuma do champanhe, num jantar numa noite estrelada à luz de vela;

2) como viagem ao mar: espuma entre as ondas, balanço do viajante, vento frio, estrela sobre a vela do barco.

3) Alusão à própria poesia: o branco do papel, espuma entre as ondas da caneta (bico de pena), estrela do céu sobre a vela de cera que ilumina a noite.

A constatação de três níveis de significado move-se da esfera circunstancial para a construção das metáforas. É impossível distinguir as três camadas de significado. Os três níveis metafóricos ficam integrados numa intersecção. Temos a espuma do champanhe, a espuma do mar e a espuma do contato da caneta (bico de pena) com o papel. Temos o macio branco do pano da toalha de mesa, o pano da vela do barco e da folha de papel.

O balanço do viajante significa tanto o comensal tragado pela felicidade da ceia, como o viajante no convés do barco e o escritor envolto em seus pensamentos e ideias. O vento frio e o calor interior decorrem tanto da noite fria e do efeito interno do champanhe, como do vento do mar e o calor interno do corpo agasalhado, como do frio do papel e do calor das ideais.

Erguer o cristal sem medo de se perder e ver a estrela sobre a vela significa tanto erguer a taça de cristal para brindar à luz de vela, como segurar a luneta com lente de cristal para ver a noite e a estrela no horizonte, como os óculos (ou o monóculo) para escrever à noite, sob a vela de cera que ilumina o papel.

Por fim, a pura visão para seguir a direção, mesmo sob tensão, significa: ver a vida para continuar em frente, mesmo diante da incerteza; ver o horizonte para seguir a viagem, mesmo sob a tensão do escuro; ter a visão das ideais para escrever, para seguir a direção para continuar o trabalho, mesmo sob a insegurança do resultado final.

O poema "Salut", colocado por Stéphane Mallarmé (1842-1898) no início de sua coletânea de poemas, foi analisado por Ana Cristina Cesar nos Escritos da Inglaterra - que integra Crítica e Tradução (Companhia das Letras, 2016, pp. 466-469) - aponta um similar efeito de três camadas interpretativas. A versão original em francês (p. 474) e a tradução para português (p. 477), realizada por Augusto de Campos, permitem uma ampla visão sobre o poema original e sua tradução, aqui retrabalhado em intertextualidade no poema dedicado a ele e que abre o livro Brinde.

Salut

Rien, cette écume, vierge vers

A ne désigner que la coupe ;

Telle loin se noie une troupe

De sirènes mainte à l'envers.

Nous naviguons, ô mes divers

Amis, moi déjà sur la poupe

Vous l'avant fastueux qui coupe

Le flot de foudres et d'hivers ;

Une ivresse belle m'engage

Sans craindre même son tangage

De porter debout ce salut

Solitude, récif, étoile

A n'importe ce qui valut

Le blanc souci de notre toile.

Brinde

Nada, esta espuma, virgem verso

A não designar mais que a copa;

Ao longe se afoga uma tropa

De sereias vária ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos

Amigos, eu já sobre a popa,

Vós à proa em pompa que topa

A onda de raios e de invernos;

Uma embriaguez me faz arauto,

Sem medo ao jogo do mar alto,

Para erguer, de pé, este brinde.

Solitude, recife, estrela

A não importa o que há no fim de

um branco afã de nossa vela.