A Cozinha e a Tradição
O viajante ao viajar busca entende-se melhor a si mesmo e a olhar o mundo em outras perspectivas. O autoconhecimento é ainda uma das facetas do longo processo que e a viagem em si.
Trata-se de uma fuga não declarada dos problemas familiares e cotidianos que azedam semanas e dias, e a fuga serve para isso, cada viajante parte em busca de uma aventura que possa viver em paz e tranquilidade durante alguns dias da sua vida.
A busca por aventura ou experiências agradáveis deve também fazer parte do pacote, é uma parte importante de todo o processo, é um esforço para sair da rotina, e requer planejamento e outros detalhes como preparar malas. Nessa última viagem, visitei minha tia Delci como de costume, e passei a observar algumas coisas nesta visita, notei assim que ela ficou surda.
Isso a princípio, me deixou abatido, mas fiquei ali por alguns dias e vi que muitas coisas tinham mudado radicalmente, mudanças nunca tardam a chegar a qualquer lugar, são necessárias ainda que sejam rudes.
Ela jamais se afastou de sua cozinha, é sua marca uma ligação fenomenal e mesmo com a idade avançada e um pouco cansada, jamais se desligou dessa cozinha.
Qual a razão dessa profunda ligação?
A pergunta pode ser respondida em duas etapas: a primeira ela sempre esteve disposta a manter a tradição de origem portuguesa ainda que fosse anualmente a ocasiões festivas.
Manter a tradição viva indica uma preocupação com a posteridade, apesar da idade avançada, essa preocupação revela um ardor em coexistir com a Pós-Modernidade de forma pacífica e compartilhar isso com seus netos e filhas. Ela propõe recuperar o tempo perdido falado por Marcel Proust em sua obra atual Em busca do Tempo Perdido.
Ao se reportar ao grande Marcel Proust como um romancista, segundo ele o tempo perdido deve ser recuperado com a memória ao longo do tempo , pois o tempo da memória é diferente do tempo cronológico, a ideia escondida promove a visão de um corpus de ancestralidade.
Na segunda etapa, ela entende que todas as mulheres da família devem conservar viva essa tradição não importa o tempo da existência, e define em regras claras como tudo deve ser feito, ou melhor, cozido.
Esse processo de transmissão por intermédio das panelas indica uma ideia precisa sobre o mundo atual , um resgate pleno do mundo do passado em que seus pais viviam, equivale a buscar reter o que foi bom em tempo oportuno. A tradição recorrente traduz a preocupação em manter tudo na devida ordem e funcionamento cuidadoso.
As panelas podem muito dizer acerca de nós mesmos, dizer muito até e segundo Claude Lévi-Strauss fala acerca de nossa identidade no meio de uma sociedade de diversas etnias ou nacionalidades, o antropólogo dimensiona isso há um tempo primitivo e um tempo moderno. O antropólogo trabalha em cima das definições clássicas de cru e cozido, e dimensiona isso na intersecção do tempo.
Essa dimensionalidade é considerada mediante a relação entre civilizados e nativos no processo de colonização anterior, mas ocorre também na relação entre urbanos e camponeses, com a proposta de manutenção de inúmeras tradições, e declara o rompimento de círculo vicioso que impede o advento do progresso quer em uma nação e quer numa família.
Os dois escritores referidos nessas linhas refletem a ideia da relevância da cozinha e do tempo para se mantiver tradições, mas poderia citar inúmeros outros escritores no tocante a tradição.
Retornando ao tema proposto e a intervenção da vida da minha tia Delci como um exemplo clássico da relação da cozinha e as tradições que são mantidas ao longo do tempo, numa reconstituição da memória eventualmente apagada por algum acontecimento.
O esforço desmedido para manter uma tradição esboça uma mentalidade ainda lúcida, apesar da velhice recém-chegada, remove também a importância nunca abandonada que o mundo necessita delas para pode existir, pois sua existência depende da tradição.
A sabedoria de Marcel Proust esta vinculada nessa incessante busca de um tempo que se foi, ou seja, um tempo já perdido que somente a memória pode resgatar em outro tempo que ainda não foi. E Claude Lévi-Strauss define em uma ideia bem clara sobre o cru e o cozido que são plenamente trabalhados em uma cozinha.Os dois conjugam bem uma ideia que a tradição e a cozinha estão ligadas em todos os momentos, pois se trata de uma ligação ancestral que acompanha a humanidade ao longo dos séculos. Essa demanda quase antropológica e ideológica e por sua vez é um processo que se mantém como uma forja que faz inúmeras ferramentas.
Em via de conclusão , observo a importância absoluta de se assentar a mesa e apreender assuntos de relevante profundidade e convido a você caro leitor a refletir sobre o mesmo, e não deixe de ler Em busca do Tempo Perdido de Marcel Proust.