A morte do trema
Era comum na União Soviética, durante o regime comunista, o alto comando mandar apagar de fotos oficiais a figura de algum dirigente que houvesse caído em desgraça. Apagava-se seu registro em fotos e se fazia igual expurgo em documentos, memoriais e quaisquer outros lugares onde seu nome constasse. O indivíduo em questão deixava de existir. Normalmente para sempre e, em alguns casos raros, era ressuscitado pela nomemklatura quando, milagrosamente, passava a “viver” novamente.
Pois é, inspirados nos sábios dirigentes soviéticos, alguns vetustos filólogos e outros sabichões donos da verdade resolveram mudar algumas coisinhas na língua portuguesa com declarado fito de unir gramaticalmente todos os países que se expressam nesse idioma. Demitiram de suas funções os acentos circunflexos quando colocados em palavras com vogais duplas como “ee” e “oo” de veem e voo, por exemplo. Dessa forma não se veem mais voos usando chapéus chineses por aí. Confesso que acho os voos bem menos charmosos e elegantes a partir de então. Parece que os doutos gramáticos não se deram conta que os “ee” e “oo”, por serem gêmeos idênticos, faziam o uso do chapéu em um deles a maneira de definir um do outro para não haver confusão de quem era quem.
Expurgaram os acentos agudos nas joias, de modo que elas já não mais apresentam aquele brilho anterior, ficaram meio opacas. No rastro das joias as jiboias também perderam aquele único ornamentozinho que podiam ostentar, agora estão lisinhas, cilindros animados sem graça e sem sabor. Feias jiboias!
Entre outros pequenos acertos, fizeram o favor de reconhecer cidadania aos símbolos gráficos “k”, “w” e “y”. Já não era sem tempo, essas pobres letras, consideradas estrangeiras, já moravam nos países de língua portuguesa há muito tempo, mas não constavam na relação de cidadãos chamada alfabeto, de modo que viviam na semi clandestinidade só se arriscando aparecerem em algumas palavras ditas estrangeiras, e assim mesmo correndo risco de serem expulsas a qualquer momento por algum purista de maus bofes com assento na ABL, ou nalgum ministério desses muitos que não tem o que fazer, então ficam procurando pelo em bola de bilhar, isso quando não estão enxugando gelo.
Mas o que mais magoou foi a extinção pura e simples do inocente trema. Veja bem, os demais acentos, agora proibidos de freqüentar certos ambientes, digo, palavras, continuaram com o antigo status em termos como você, café, paralelepípedo e proeminência, mas o trema não. O pobre trema, tal como as figuras soviéticas caídas em desgraça, deixou de existir, foi apagado da história e sua memória deixará de existir algum dia também. Daqui há algumas gerações ninguém saberá que esse humilde e discreto acento freqüentou nossa gramática e enfeitou palavras grandiloqüentes e até meio metidas como qüinqüênio, por exemplo. Mas, dirão alguns ungidos, ele sobrevive sobre “us” de palavras estrangeiras com Müller. Grandes coisas! Para um acento que já brilhou na lista vocabular da “última flor do Lácio”, aparecer em vocábulos estrangeiros donde nunca havia saído, não é nem prêmio de consolação. Vão se catar, bobões!
E, muito mais solidário que outros acentos, o trema era um companheiro confiável, um colega solícito que só queria ver a alegria das outras letras. Ele fazia de seu uso um gesto de cortesia para com o "i". Vejamos então, lá ficava o já meio complexado "i" por ser tão magrinho, aliás, a letra mais esbelta do alfabeto, equilibrando aquela bolinha como um cabeceador em treinamento, solitário, pensando com seus botões: quando será que sua arte de equilibrar vai ser apreciada, ou mesmo aplaudida? Sua única alegria era quando encontrava aquele irmão atlético plantando bananeira: “!”, mas isso só nos fins frases exclamativas como “vivi!”. Então chega a lingüiça com tranqüilidade e coloca um companheiro “ü” ao lado dele partilhando a mesma habilidade. O “i” já não se sentia sozinho, curtia a companhia e o vocábulo tornava-se ornamentado com mais bolinhas saltitando sobre suas letras, era quase um espetáculo circense, enchia os olhos dos leitores.
O trema também costumava aparecer com certa freqüência em vocábulos com esse “ê” que, parecendo turista vindo da Ásia, estava sempre de chapéu chinês para impressionar aqueles não tão viajados. Sua presença ao lado do “ê” meio exibido, dava-nos a dimensão de seu desprendimento, não vivia só em companhia de “is” solitários com suas bolinhas equilibradas sobre a cabeça, ele também freqüentava a companhia de letras cultas que conheciam até o Oriente. Essa atitude fazia parte de sua natureza.
Só que agora ele se foi para sempre, mas eu, em nome da amizade e do companheirismo, continuarei colocando trema onde me aprouver e estou me lixando para esses patrulheiros gramaticais que, em nome de não sei o quê, tornaram inexeqüível um acento tão simpático e inofensivo.
Era comum na União Soviética, durante o regime comunista, o alto comando mandar apagar de fotos oficiais a figura de algum dirigente que houvesse caído em desgraça. Apagava-se seu registro em fotos e se fazia igual expurgo em documentos, memoriais e quaisquer outros lugares onde seu nome constasse. O indivíduo em questão deixava de existir. Normalmente para sempre e, em alguns casos raros, era ressuscitado pela nomemklatura quando, milagrosamente, passava a “viver” novamente.
Pois é, inspirados nos sábios dirigentes soviéticos, alguns vetustos filólogos e outros sabichões donos da verdade resolveram mudar algumas coisinhas na língua portuguesa com declarado fito de unir gramaticalmente todos os países que se expressam nesse idioma. Demitiram de suas funções os acentos circunflexos quando colocados em palavras com vogais duplas como “ee” e “oo” de veem e voo, por exemplo. Dessa forma não se veem mais voos usando chapéus chineses por aí. Confesso que acho os voos bem menos charmosos e elegantes a partir de então. Parece que os doutos gramáticos não se deram conta que os “ee” e “oo”, por serem gêmeos idênticos, faziam o uso do chapéu em um deles a maneira de definir um do outro para não haver confusão de quem era quem.
Expurgaram os acentos agudos nas joias, de modo que elas já não mais apresentam aquele brilho anterior, ficaram meio opacas. No rastro das joias as jiboias também perderam aquele único ornamentozinho que podiam ostentar, agora estão lisinhas, cilindros animados sem graça e sem sabor. Feias jiboias!
Entre outros pequenos acertos, fizeram o favor de reconhecer cidadania aos símbolos gráficos “k”, “w” e “y”. Já não era sem tempo, essas pobres letras, consideradas estrangeiras, já moravam nos países de língua portuguesa há muito tempo, mas não constavam na relação de cidadãos chamada alfabeto, de modo que viviam na semi clandestinidade só se arriscando aparecerem em algumas palavras ditas estrangeiras, e assim mesmo correndo risco de serem expulsas a qualquer momento por algum purista de maus bofes com assento na ABL, ou nalgum ministério desses muitos que não tem o que fazer, então ficam procurando pelo em bola de bilhar, isso quando não estão enxugando gelo.
Mas o que mais magoou foi a extinção pura e simples do inocente trema. Veja bem, os demais acentos, agora proibidos de freqüentar certos ambientes, digo, palavras, continuaram com o antigo status em termos como você, café, paralelepípedo e proeminência, mas o trema não. O pobre trema, tal como as figuras soviéticas caídas em desgraça, deixou de existir, foi apagado da história e sua memória deixará de existir algum dia também. Daqui há algumas gerações ninguém saberá que esse humilde e discreto acento freqüentou nossa gramática e enfeitou palavras grandiloqüentes e até meio metidas como qüinqüênio, por exemplo. Mas, dirão alguns ungidos, ele sobrevive sobre “us” de palavras estrangeiras com Müller. Grandes coisas! Para um acento que já brilhou na lista vocabular da “última flor do Lácio”, aparecer em vocábulos estrangeiros donde nunca havia saído, não é nem prêmio de consolação. Vão se catar, bobões!
E, muito mais solidário que outros acentos, o trema era um companheiro confiável, um colega solícito que só queria ver a alegria das outras letras. Ele fazia de seu uso um gesto de cortesia para com o "i". Vejamos então, lá ficava o já meio complexado "i" por ser tão magrinho, aliás, a letra mais esbelta do alfabeto, equilibrando aquela bolinha como um cabeceador em treinamento, solitário, pensando com seus botões: quando será que sua arte de equilibrar vai ser apreciada, ou mesmo aplaudida? Sua única alegria era quando encontrava aquele irmão atlético plantando bananeira: “!”, mas isso só nos fins frases exclamativas como “vivi!”. Então chega a lingüiça com tranqüilidade e coloca um companheiro “ü” ao lado dele partilhando a mesma habilidade. O “i” já não se sentia sozinho, curtia a companhia e o vocábulo tornava-se ornamentado com mais bolinhas saltitando sobre suas letras, era quase um espetáculo circense, enchia os olhos dos leitores.
O trema também costumava aparecer com certa freqüência em vocábulos com esse “ê” que, parecendo turista vindo da Ásia, estava sempre de chapéu chinês para impressionar aqueles não tão viajados. Sua presença ao lado do “ê” meio exibido, dava-nos a dimensão de seu desprendimento, não vivia só em companhia de “is” solitários com suas bolinhas equilibradas sobre a cabeça, ele também freqüentava a companhia de letras cultas que conheciam até o Oriente. Essa atitude fazia parte de sua natureza.
Só que agora ele se foi para sempre, mas eu, em nome da amizade e do companheirismo, continuarei colocando trema onde me aprouver e estou me lixando para esses patrulheiros gramaticais que, em nome de não sei o quê, tornaram inexeqüível um acento tão simpático e inofensivo.