DONA DOIDA: Adélia menina
DONA DOIDA
Adélia Prado
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Texto extraído do livro: "Poesia Reunida", Editora Siciliano - 1991, São Paulo, página 108.
O poema “Dona Doida” de Adélia Prado, através de imagens e de múltiplos elementos sinestésicos, é uma revisita, um resgate do eu lírico do universo de criança. O próprio título da poesia – Dona Doida – mostra a divisão entre a dona, a mulher adulta e madura, e a menina permanente que nela habita. A mulher dividida entre a maturidade que lhe foi imposta pela passagem do tempo e a criança que traz em si, atitudes e comportamentos doidos e lúdicos, denotando uma espécie de luta interna do eu lírico entre o presente e o passado, ou seja, as contradições entre a realidade presente e a infância perdida.
No primeiro verso, a expressão: “Era uma vez...” denuncia uma linguagem tipicamente infantil, remetendo ao universo que povoa o imaginário da menina. Outra expressão, também presente no primeiro verso do poema: “choveu grosso”, denuncia uma criança divida entre o medo e o encantamento provocado pela chuva forte.
Há uma constatação explícita da presença da menina no tempo presente, no verso: “exatamente como chove agora”- pois, a chuva que cai é exatamente igual, vista pelos olhos da menina. Ao abrir a janela e ver o mundo lá fora, as poças que tremem com os últimos pingos, a poeta resgata a capacidade de observação da criança e seu jeito próprio de ver e sentir o mundo, através das imagens guardadas na memória da menina.
A recuperação da figura materna, do lar como ambiente seguro e protetor, cheio de alegria e sabores típicos da infância, são trazidos nos gestos maternos e na escolha do cardápio: chuchu novinho, angu, molho de ovos. A menina feliz busca os chuchus, e ao voltar, trinta anos depois, não encontra mais a mãe, mostrando a implacável passagem do tempo, trazendo perdas irreparáveis, pois fica para trás o tempo feliz da infância.
Ao voltar e não encontrar mais a mãe, ocorre uma retomada da realidade, onde o eu lírico se percebe “dona tão velha”, trazendo em si ainda, as marcas e lembranças da infância, como a sombrinha infantil; e da adolescência, como “as coxas à mostra”, que denunciam uma menina-mulher, carregada da sensualidade e erotismo, típicos da juventude.
Na posse da realidade presente a dona tão velha supõe chocar os filhos, e entristecer de morte o marido, quando a menina que guarda em si se manifesta. Confusa entre a menina e a velha, se auto-denomina uma doida na luta entre o passado e o presente.
Por fim, na constatação feita no verso: “só melhoro quando chove”- percebe-se que a chuva á um elemento mágico, que transporta a poeta para a infância sem as culpas que a passagem do tempo imprimiu na mulher adulta.
O poema “Dona Doida” explicita um “eu lírico” vivenciando e conciliando a dualidade entre o passado e o presente, entre a infância e a fase adulta, a implacável passagem do tempo e as perdas trazidas por ele, mas constantemente, resgatadas por momentos e elementos mágicos presentes na memória da mulher que melhora quando chove.