DA MORTE EM VIDA
"A morte não existe. Não há diferença entre aqueles que estão 'vivos' e os que estão 'mortos'. Estamos todos vivos e viveremos para sempre". (Yoiti Okada)
Às vezes visitamos os mortos, outras, eles é que nos visitam. A morte sempre foi um tema para a filosofia, a morte e os mortos, para a teologia. Além disso, são temas fundamentais para a antropologia e as demais ciências sociais. Neste ensaio faremos um pequena “miscelânea”, dialogando com autores de diferentes tradições. Veremos que o tema da morte, e dos mortos, pode ser abordado de modo bastante plural.
Comecemos pela filosofia clássica. Lembremos que na Apologia de Sócrates, o filósofo ateniense lá está a encarar a morte, tema que reaparece no Fédon. Sócrates não teme a morte, pois ou ela é o nada, ausência de tudo, e, portanto, fim de qualquer sofrimento e angústia, ou ela é transição para outra vida, na qual podemos reencontrar os “mortos”. No Fédon o filósofo concebe a imortalidade da alma. O corpo é mortal e transitório, mas aquilo que o anima, é eterno:
“E o que não recebe a morte, como denominaremos?
Imortal, foi a sua resposta.
Ora, a alma não recebe a morte.
Não.
A alma é, pois, imortal?
Imortal”.
Sócrates pensa em uma alma imortal, alma que não se reduz a experiência corpórea do indivíduo. A filosofia de Sócrates nos convida a pensar a morte, a tomá-la como objeto filosófico a partir da perspectiva dialética da mortalidade do corpo e da imortalidade da alma.
Outros filósofos nos convidarão a pensar na morte a partir dos mortos, daqueles que se foram. Visitar os mortos, eis o chamado que Søren Kierkegaard nos exorta em “A Obra de Amor”:
“Se então tudo se torna confuso para ti, quando observas os numerosos caminhos da vida, vai então encontrar os mortos "lá para onde convergem todos os caminhos" – e assim facilmente terás a visão global”.
Ao visitar os mortos percebemos, nos diz Kierkegaard, que se em vida é tão difícil reconhecermos o parentesco que une toda a espécie humana, na morte tal visão profunda se torna claríssima, posto que constatamos que todos retornam ao mesmo pó. Não na vida, mas na morte, prossegue o filósofo, a verdadeira comunhão se estende a todos: a mesma parcela de terra, o mesmo sol a brilhar em proporções iguais. O mesmo pó como fim. Para Kierkegaard, a lembrança dos mortos revela um profundo e sublime amor:
“A obra do amor que consiste em recordar uma pessoa falecida é uma obra do amor mais desinteressado. Se quisermos garantir que o amor é completamente desinteressado, podemos então afastar toda possibilidade de retribuição. Mas é isto justamente o que está excluído na relação com uma pessoa falecida. Se então o amor permanece, é que ele é verdadeiramente desprendido”.
Temos então uma gama de temas que se perpassam e se misturam, e que se estendem da nossa relação com a morte até a nossa relação com os mortos. Há uma pluralidade de modos de relação. O culto aos mortos é um elemento central em diversas culturas. Em outras, conforme Freud em “Totem e Tabu”, há verdadeira interdição em falar e lembrar-se dos mortos. A comunidade nutre a crença de que falar dos mortos impede que os mesmos encontrem a paz. Spencer pensara que a crença religiosa derivava do culto aos ancestrais e antepassados. No entanto, em “As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália”, Durkheim demonstrou que em entre tribos australianas a fé totêmica era derivada de um “senso do sagrado”, e não diretamente de um culto aos antepassados. Embora não seja universal, e tampouco a causa da crença religiosa, a relação de uma cultura com seus mortos é um fenômeno religioso marcante em muitas tradições.
A relação com os mortos é um modo de cultivo da relação com a morte. Uma maneira de visitar nossa própria miséria e condição precária, de saber que vamos todos morrer. A morte, todavia, pode ser de dois tipos: morte como renascimento em vida e morte como aniquilamento da vida.
Mircea Eliade pontua que em muitas culturas o mesmo indivíduo deve morrer, não uma, mas duas vezes. A primeira morte é provocada por um rito de passagem, por meio do qual a pessoa busca renascer em vida: “O quadro iniciático – quer dizer, morte para a condição profana, seguida do renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses – também desempenha um papel importante nas religiões evoluídas”. Assim, o indivíduo morre como ente profano para renascer como ser sagrado:
“O nascimento iniciático implicava a morte para a existência profana. O esquema conservou se tanto no hinduísmo como no budismo. O iogue ‘morre para esta vida’ a fim de renascer para outro modo de ser: aquele é representado pela libertação. O Buda ensinava o caminho e os meios de morrer para a condição humana profana – quer dizer, para a escravidão e a ignorância – e renascer para a liberdade, para a beatitude e para o incondicionado do nirvana. A terminologia indiana do renascimento iniciático lembra, às vezes, o simbolismo arcaico do ‘novo corpo’ que o neófito obtém graças à iniciação. O próprio Buda o proclama: ‘Mostrei aos meus discípulos os meios pelos quais eles podem criar, a partir deste corpo (constituído pelos quatro elementos, corruptíveis), outro corpo de substância intelectual (râpim manomayan), completo com todos os membros e dotado de faculdades transcendentais (abbinindriyam).’”
A ideia de uma morte em vida está presente em outras tradições. Na filosofia grega Sócrates afirmava que é “filosofar é aprender a morrer”. Morremos como seres aprisionados pela doxa (nossas opiniões) para então renascermos como filósofos. Em João 3:3:
Jesus diz a Nicodemos:
"Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus".
O filósofo e líder religioso japonês Yoiti Okada diz que todo homem traz em si uma essência divina, que é o seu verdadeiro ser. Deste modo, deve entregar, devolver para Deus o seu ego limitado, sua natureza humana, e então renascer:
“(...) nós precisamos confirmar que não só nascemos nesse mundo apenas por intermédio de nossos pais, mas que precisamos renascer de novo como filhos do Supremo Deus que é o pai da verdadeira vida”.
E ainda:
"A morte não existe. Não há diferença entre aqueles que estão 'vivos' e os que estão 'mortos'. Estamos todos vivos e viveremos para sempre. Portanto, nossos ancestrais não estão mortos, como normalmente acreditamos. Dentro de nós, eles estão clamando:
'Não pensem que estamos mortos! Estamos vivos dentro de vocês!'."
A morte também foi tema para Schopenhauer, que em “Da Morte” analisa, dentre outras coisas, como os brâmanes e os budistas pensaram a questão do Ser. Uma primeira assunção que sintetiza tais culturas é a da indestrutibilidade do ser-em-si:
“Disso que existimos agora, segue-se, pensando bem, que devemos ser em todos os tempos [tal argumento nos remete à prova da imortalidade da alma de Kurt Gödel (1)]. Pois nós mesmos somos o ser que o tempo recolheu em si para preencher sua própria vida: por isso esse preenche a totalidade do tempo, tanto o presente e o passado quanto o futuro, de igual modo, e nos é tão impossível sair da existência quanto do espaço.”
A morte nos vedas e no budismo, prossegue Schopenhauer, é “o momento de libertação de uma individualidade estreita e uniforme, que, longe de constituir a substância íntima de nosso ser, se apresenta bem mais como um tipo de aberração”. Morrer, pois, é deixar de se identificar com o ego particular e renascer como Eu Universal. Em “A variedade da experiência religiosa” o filósofo pragmatista norte americano William James relata inúmeros casos de pessoas que disseram passar por uma experiência de “iluminação” e renascimento. Em um deles o indivíduo declarou:
“(...) me sobreveio uma sensação de júbilo, de imenso prazer acompanhado ou imediatamente seguido de uma iluminação intelectual impossível de descrever. Entre outras coisas, eu não passei a acreditar apenas, mas vi que o universo não é composto de matéria morta, mas é, pelo contrário, uma Presença viva; tornei-me consciente da vida eterna em mim”.
O físico filósofo Erwin Schrödinger em “Minha visão de mundo”, no qual elabora uma interpretação da mecânica quântica conforme os Upanishads nos lembra de que, em última instância, nos vedas, o problema da morte é um falso problema. Se o que morre é o ego particular, que é uma ilusão, e nunca o Eu Universal, o ser-em-si, então a própria morte nunca ocorre. A morte é um não-ser impossível, e lembrando Parmênides, o Ser é, o Não-Ser não é.
No cristianismo místico a ideia budista e védica de indestrutibilidade do Ser encontra paralelo nos escritos de Mestre Eckart, São João da Cruz e Santa Teresinha. Na filosofia, Emerson, o filósofo norte americano, também a enfatiza:
“Caminhando por uma lareira, sobre poças de neve, ao crepúsculo, sob um céu nublado, sem ter em mente qualquer expectativa, sinto um júbilo perfeito. Fico feliz até às raias do temor. [...] Em pé sobre a terra nua – minha cabeça banhada pelo ar jubiloso e arrebatada ao espaço infinito – todo o egoísmo some. Torno-me um olho transparente; sou nada; vejo tudo; as correntes do Ser Universal circulam através de mim; sou parte integrante de Deus”.
Para alguns religiosos essas duas dimensões da morte formam uma dialética fina: “visitar os mortos” é visitar a morte. Quando o ser visita os mortos, lembra-se da própria morte. O chamado é para que não experimente somente a morte como aniquilamento da vida, mas como renascimento em vida. Nossa ida aos mortos, conforme Kierkegaard, e a vinda dos mortos a nós, são partes do processo por meio do qual aprendemos a morrer em vida, para então renascer. Aprender a morrer e renascer passa pela experiência de visitar os mortos e estar atento quando estes nos visitam. Yoiti Okada assim o defende quando diz que “nossos antepassados estão vivos dentro de nós”: “vamos, primeiramente, reconhecer que nossos ancestrais estão vivos dentro de nós neste exato momento”. Se nossos antepassados vivem em nós, nossos sentimentos, pensamentos e emoções não são notas emanadas de um único instrumento tocado por essa individualidade egoica que chamamos de “eu”. São como complexas sinfonias que emanam uma comunhão de múltiplos instrumentos simultaneamente. É preciso aprender a morrer como instrumento isolado para renascer como orquestra? Poderíamos dizer que essa é uma forma de compreender o que nos diz Yoiti Okada. Em sua teologia, entender que não somos existências isoladas, que nossa verdadeira identidade não está na limitação do ego, que cada um carrega em si toda a sua ancestralidade, é parte do processo de morte em vida, ou seja, de renascimento. Tal pensamento muito se assemelha àquele apresentado pelo religioso Sri Prem Baba:
“Muitas vezes, sem saber, somos assombrados pelos terrores dos nossos ancestrais. Somos influenciados pelas feridas de humilhação, de exclusão, de abandono que eles viveram.
A dor gerada por esses choques pode reverberar por gerações.
Então, às vezes, sofremos sem compreender o motivo. Não podemos compreender e nem fazer a relação de causa e efeito.
Essa dimensão do nosso psiquismo é chamada de ‘transpessoal’, pois está além do ego e da biografia, mas ela ainda nos influencia intensamente.
Muitas vezes, nossos ancestrais estão presos em quadrantes da consciência, sofrendo e aguardando cura através de nós.
Eles esperam que alguém da sua linhagem parental amadureça o suficiente para iluminar as dimensões do amor capazes de quebrar as correntes que os mantém aprisionados.”
Se em história devemos evitar o presentismo e o anacronismo e em antropologia não podemos estabelecer conexões inexistentes entre culturas autônomas, em filosofia não podemos fazer comparações entre ideias que pressupõem contextos e crenças diferentes. Mas podemos, e quiçá devemos, traçar paralelos fecundos, de modo a demonstrar o diálogo subjacente entre diferentes tradições. Nesse sentido é salutar, para pensarmos as teologias de Yoiti Okada e Sri Prem Baba, lembrarmos do que nos dissera Carl Gustav Jung:
“O homem possui muitas coisas que ele não adquiriu, mas herdou dos antepassados. Não nasceu tábula rasa, apenas nasceu inconsciente. Traz consigo sistemas organizados e que estão prontos a funcionar numa forma especificamente humana e isto se deve a milhões de anos de desenvolvimento humano (…) esses sistemas herdados correspondem às
situações humanas que existiram desde os primórdios: juventude e velhice, nascimento e morte, filhos e filhas, pais e mães, uniões, etc. Apenas a consciência individual experimenta essas coisas pela primeira vez, mas não o sistema corporal e o inconsciente. Para estes só interessa o funcionamento habitual dos instintos que já foram pré-formados de longa data”.
De modos diferentes, em contextos diferentes, tais autores pressupõem um vínculo inquebrantável, além do evidente, entre os antepassados e seus descendentes: eles se visitam constantemente, ininterruptamente.
Apesar das particularidades de cada cultura, sistema de crenças, filosofia, e dos meandros das mais diversas teologias, o tema da morte, e dos mortos, por razões existenciais profundas e óbvias, é um horizonte fundamental para toda experiência humana.
NOTA:
[1] O matemático tcheco Kurt Gödel, autor do famoso teorema da incompletude, elaborou duas provas lógicas não publicadas em vida. A primeira, sobre a existência de Deus, e a segunda, sobre a imortalidade do self. Publicações de e sobre Gödel podem ser consultadas no The MacTutor History of Mathematics archive da School of Mathematics and Statistics, University of St Andrews Scotland, disponível em http://www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/index.html. Acesso em: 24/04/2015. Para maiores detalhes sobre a vida e obra de Gödel, ver o verbete escrito por Gregory H. Moore sobre o mesmo em Complete Dictionary of Scientific Biography, no qual acerca de sua personalidade, se lê: “Gödel’s personality was idiosyncratic. Shy and solemn, short and slight of build, he was very courteous but lacked warmth and sensitivity. Since he was very much an introvert (...)”. Disponível em: http://www.encyclopedia.com/topic/Kurt_Godel.aspx. Acesso em 24/04/2015.
“Since much on Gödel’s philosophical work remains unpublished, his philosophical influence will likely increase as more of his work becomes available”. (MOORE). Disponível em: http://www.encyclopedia.com/topic/Kurt_Godel.aspx. Acesso em 24/04/2015.
REFERÊNCIAS:
Fédon – Platão
http://portalconservador.com/livros/Platao-Fedon.pdf
As obras do Amor - Soren Kierkegaard
https://pt.scribd.com/document/57471638/A-Obra-de-Amor-Kierkegaard
As formas elementares da experiência religiosa – Émile Durkheim
http://www.nesua.uac.pt/uploads/uac_documento_plugin/ficheiro/b7ce361c64c727c9a974422515d9322de0ff7ea8.pdf
O Sagrado e o Profano – Mircea Eliade
http://gepai.yolasite.com/resources/O%20Sagrado%20E%20O%20Profano%20-%20Mircea%20Eliade.pdf
Sri Prem Baba
https://www.sriprembaba.org/
Orientações de Kyoshu Sama (Yoiti Okada)
http://www.messianica.org.br/home-destaque-04
Totem e Tabu – Sigmund Freud
http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000164.pdf
Referências sem link:
EMERSON, Ralph Waldo. The Selected Writings of Ralph Waldo Emerson. New York: The Modern Library, 1968.
JAMES, William. The varieties of Religious Experience. New York: The Modern Library, 1902.
JUNG, Carl Gustav. Obras completas de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1978.