Vidas Secas: leituras que se complementam
VIDAS SECAS – LEITURAS QUE SE COMPLEMENTAM
Graciliano Ramos, escritor alagoano, é, sem dúvida, um dos maiores mestres da Literatura Brasileira da geração de 30. Em sua obra “Vidas Secas” retrata a condição do homem do interior e sua vivência numa região hostil e árida.
A saga do homem nordestino e sua luta pela sobrevivência, onde além do meio ambiente estéril, as relações humanas se esvaem no desamparo e na exploração da miséria.
Em carta datada de julho de 1944, Graciliano explica a João Conde como nasceu sua obra “Vidas Secas”:
“No começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos.Transformei o velho Pedro Ferrero, meu avô, no vaqueiro Fabiano: Minha avó tomou a figura de Sinhá Vitória, meus tios pequenos, reduziram-se a dois meninos... Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo. Escrevi “Sinhá Vitória”. Depois apareceu “Cadeia”. Aí me veio a idéia de juntar as cinco personagens numa novela miúda – um casal, duas crianças e uma cachorra, todo brutos.”
A obra “Vidas Secas” é uma narrativa em terceira pessoa que conta a saga de uma família de retirantes nordestinos. Fabiano, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cadela Baleia. Dividida em treze capítulos, a narrativa faz uma fusão de elementos que caracterizam o cenário desolador da seca nordestina: homem, paisagem, sentimento, bicho, terra, seca e humilhação. A opressão do homem pelo homem, e pelo poder público são denúncias de uma realidade triste e desesperançada.
O vaqueiro Fabiano e sua família perambulam pelo sertão inóspito em busca de sobrevivência. A cadela Baleia considerada um membro da família é companheira de peregrinação até o momento em que adoece e é sacrificada pelo dono (Fabiano). O homem dentro da natureza estéril vai perdendo sua auto-estima e se animalizando. A falta de perspectiva e o isolamento remetem os humanos a uma espécie de regressão, onde o homem se animaliza e regride intelectualmente a ponto de esvaziar a sua capacidade de comunicação. Gestos e sons animalescos tomam o lugar das palavras e dos sentimentos em Fabiano. Graciliano Ramos descreve de maneira concisa o drama vivido pela família de retirantes, o sofrimento e as injustiças são perceptíveis através da realidade narrada.
A obra de Graciliano Ramos, “Vidas Secas” foi adaptada para o cinema em 1963 pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos e fez parte da primeira fase do Cinema Novo.
Nelson Pereira dos Santos, diretor, produtor, roteirista, montador e ator, nasceu em São Paulo em 28 de outubro de 1928 e foi um dos idealizadores e criadores do Cinema Novo, cuja primeira fase apresenta uma temática voltada para o Nordeste e todos os problemas da região. “Vidas Secas” faz parte dessa fase que mostra os trabalhadores rurais, a miséria da região, a marginalização econômica, a fome, a violência e a opressão. Sob a direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, o filme “Vidas Secas”, do livro de Graciliano Ramos, representou o Brasil no Festival de Cannes de 1964, onde dominou a temática do campo.
Em entrevista à Revista E, o cineasta Nelson Pereira dos Santos conta o que o levou a filmar “Vidas Secas”:
“Em princípio não estava pensando em fazer uma adaptação de “Vidas Secas”. Estava querendo escrever um roteiro original. Na época eu fazia documentários e fui filmar uma grande seca em 1958, a chamada seca do Juscelino. Fui para Juazeiro da Bahia e vi os flagelados chegando, sendo abrigados em escolas, hospitais, mercados. Eu só conhecia aquela realidade pela leitura, e vi com meus olhos o impacto da fome – crianças ganhando cuias de farinha pura para comer. Naquele momento decidi que iria fazer um filme e comecei a escrever roteiros – um mais superficial que o outro (risos). Mas eu tinha um livro de consultas, o Vidas Secas, que utilizava a todo momento para saber como era o sertanejo, seu jeito... De repente me dei conta de que o filme já estava escrito.”
A partir das declarações do escritor alagoano Graciliano Ramos sobre sua obra “Vidas Secas”, e da entrevista do cineasta Nelson Pereira dos Santos sobre a adaptação de “Vidas Secas” para o cinema, analisa-se as duas leituras feitas sobre a obra. À medida que, a riqueza de descrições na obra de Graciliano é transformada em imagens pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos, percebe-se a preocupação com a fidelidade da segunda leitura para com a primeira, de forma que as leituras se complementam.
O Filme “Vidas Secas” é um longa-metragem de 103min, 35mm, com roteiro e direção do cineasta. O drama fielmente adaptado tem como elenco: Átila Iório (Fabiano), Maria Ribeiro (Sinhá Vitória), Jofre Soares (fazendeiro) e Orlando Macedo (Soldado Amarelo).
As cenas iniciais do filme “Vidas Secas” mostram a peregrinação de uma família de miseráveis retirantes que chega a uma fazenda abandonada, onde se desenvolve a maior parte da história. O filme mantém fidelidade ao texto de Graciliano e usa em substituição ao narrador em terceira pessoa, a câmera. A história vai sendo narrada pelos movimentos da câmera que dão origem a imagens que falam por si só. Nelson Pereira dos Santos, através de sua lente, mostra com fidelidade e neutralidade o drama criado por Graciliano. Em preto e branco, o filme apresenta uma fotografia impecável, onde o sertão nordestino é retratado sem realce de cores, ganhando apenas uma claridade ofuscante que nos remete ao meio ambiente estéril e escaldante. A luminosidade intensa e quase insuportável revela a transfiguração da paisagem de forma que a sensação de calor proveniente do sol abrasivo nos atinge.
A escassez de diálogos reflete o reduzido mundo mental em que vivem, Fabiano e sua família, onde as palavras são praticamente inexistentes, ou são substituídas por exclamações, onomatopéias e se restringem a resmungos e gestos. A caracterização dos personagens não foge à obra original, pois transparecem a miséria e a desesperança com fidelidade.
A trilha sonora é substituída por rangidos de carro de boi que nos reportam à melancolia e ao isolamento dos personagens em relação ao meio-ambiente desolador. A lentidão na sucessão de imagens gera uma sensação de monotonia. O marasmo, a vida lenta, mostrada pela câmera do cineasta nos transporta à realidade desesperançada e à falta de perspectiva da família de retirantes. A idéia do isolamento, que faz com que os humanos regridam, é captada por imagens de imensos espaços vazios, sem vegetação e sem cor. A amplitude do sertão e a claridade excessiva retratam a esterilidade da terra, a solidão e o desamparo do homem.
O monólogo interior da cadela Baleia, antes da morte, se contrapõe a animalização do homem, e impressiona pela carga de sentimentos humanos que a caracterizam. O contraste entre o bicho humanizado e o homem animalizado, regredindo à condição de selvagem, mostra a eterna luta pela sobrevivência, onde o fluxo do flagelo da seca é ininterrupto. As cenas finais passam idéia clara do “adiar a morte”, onde Fabiano e sua família retomam o caminho sem esperança e sem alternativa.
Livro e filme usam linguagens distintas que narram a saga dos retirantes nordestinos, enquanto no primeiro o leitor constrói as imagens a partir de uma visão individualizada, no segundo, as imagens prontas e construídas através dos mais diversos recursos parecem mais reais. A câmera que ocupa a posição do narrador retrata com fidelidade e realismo a história de Fabiano e sua família.
As imagens revelam a saga dos retirantes pressionados a fugir da seca, dos donos da terra, das autoridades, da incapacidade de reagir e verbalizar o sofrimento em revolta. As imagens de Sinhá Vitória com um baú na cabeça e, o menino mais moço no colo, as da sombra de Fabiano caminhando no solo ressecado, as imagens dos passos inseguros e desanimados do menino mais velho, traduzem com veracidade a miséria e o sofrimento dos habitantes do Nordeste brasileiro. O ruído constante de uma roda de carro de bois soa como a música da seca. Uma cachorra só pele e ossos que através da lealdade se reveste de sentimentos humanos, são imagens implacáveis que se bastam.
A adaptação da obra de Graciliano Ramos para o cinema, por Nelson Pereira dos Santos, tem um resultado tão clássico quanto à obra original. O filme em seu conjunto transporta o expectador ao cenário “sertão nordestino” com raro realismo, através da lentidão das cenas que retratam a vida dos retirantes e do desânimo ante e natureza morta que se transformam em componentes reais e explicam a solidão do homem sem alternativas, que teima em viver.
BIBLIOGRAFIA
RAMOS, G. Vidas Secas: posfácio de Álvaro Lins, ilustrações de Aldemir Martins. 48ª ed. Rio, São Paulo, Record, 1982.
Filme, Vidas Secas,103min. Sino Filmes,1963,produção e roteiro Nelson Pereira dos Santos.
www.contracampo.he.com.br (15:27) 19/11/2005.
www.navedapalavra.com.br (15:30) 19/11/2005