O afirmar-se LGBT: conversa sobre resistência e contra-dominação
(LGBTs = lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros)
Muitos textos são publicados nas redes sociais e em diversos domínios da Internet desenvolvendo temáticas relacionadas aos LGBTs pelas próprias pessoas que se identificam como integrantes desses grupos. Considero que a grande maioria são bons, na medida em que aponta para o ponto de vista de uma considerável parcela de seres humanos cujas experiências relatadas, do erótico ao denunciativo, representam formas de percepção e experimentação do mundo talhadas pelo estado de marginalização e subjugação a que são submetidas tais pessoas no interior de uma cultura homofóbica. Assim, esses mesmos textos que são produzidos por pessoas LGBTs, ao se constituírem como textos culturais identitários, tornam-se no seu conjunto expressões de uma contra-hegemonia que solidifica a cultura de luta, de resistência e de afirmação desses grupos humanos. Este ensaio faz parte desse conjunto. Pretende, porém, falar para todas as pessoas, pois a contra-hegemonia nem sempre fala para co-iguais e deve atingir também aqueles que dominam. Nesse sentido, propõe uma conversa sobre o que considera ser o núcleo da "saída do armário" ou do "assumir-se LGBT": o ato de resistência e de contra-dominação, desde o individual até a sua forma coletiva.
Se não é uma verdade que pessoas transexuais, homossexuais femininas e masculinos, travestis e bissexuais compartilham o mesmo arcabouço ideológico, religioso, mitológico, de preferências gastronômicas e artísticas ou mesmo as posições nos estratos sociais, pois os indivíduos também se compõem e se realizam em suas particularidades e é muito bom que seja assim, há porém um dado de realidade, do meu ponto de vista, dificilmente questionável que oferece aos LGBTs uma experiência comum, suficiente para fomentar certa coesão de resistência ao que alguns costumam pensar como "hegemonia da heteronormatividade". Trata-se do modo como as identidades de gênero e sexualidades circulantes entre LGBTs são representadas pela ideologia dominante nas sociedades modernas: o vestir-se, o sentir-se, o imaginar-se, o ser diferente daquilo que é consensualmente reconhecido como a "sexualidade natural" (a atração pelo sexo oposto) e a "natural bicompartimentação dos gêneros" (homem e mulher) é costumeiramente visto sob a ótica do destoante ou, quanto muito, do repugnante.
Em que pese a aparente atmosfera de tolerância esvoaçante sobre a atualidade, concernente à convivência pública mais ou menos civilizada entre as diversidades e ao reconhecimento legal de alguns direitos sociais para as ainda chamadas "minorias", as nossas relações sociais e de poder marcam-se fundamentalmente pela normatização dos "modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade" dentro de "uma perspectiva biologicista e determinista" que contempla "duas - e apenas duas - possibilidades de locação das pessoas quanto à anatomia sexual humana, ou seja, feminino/fêmea ou masculino/macho" (MEYER e PETRY, 2011, p. 195). Este seria o conceito mais básico de "heteronormatividade" ou, como aqui tem sido referido, de "hegemonia da heteronormatividade". Hegemonia não porque é simplesmente aceito através de um consenso social qualquer, mas sobretudo porque se constrói no processo de enculturação conduzido historicamente por estruturas materiais e ideológicas dominantes (religiosidades, divisões sexuais do trabalho, poderes políticos etc.) que se apropriam do sexo e da sexualidade para costurar um discurso padronizador. A consequência mais imediata é a marginalização de pessoas que não se enquadram nos tais signos normativos. O reflexo mais dramático pode ser encontrado nas fobias sociais e no descaso do Estado em relação à essas pessoas.
Os estudos históricos podem contribuir muito nas reflexões críticas, sejam elas teóricas ou políticas, sobre as questões de sexualidade e gênero, na medida em que desconstroem imaginários e posições naturalizados e hegemônicos. É importante trazer a compreensão de que as taxonomias sexuais são produtos de um tempo e de uma sociedade históricos, e em muitos casos balizam disputas entre discursos que configuram um campo de luta entre o dominador e o dominado. O historiador Daniel Barbo analisou algumas obras literárias e científicas do século XIX ocidental que representaram "o classicismo enquanto arma de luta na esfera erótica da Modernidade" (BARBO, 2013, p. 12). Barbo identifica os primórdios, nos tempos contemporâneos, da categorização das sexualidades através da intenção de certos eruditos europeus de denominar as relações homoeróticas e, assim, apresenta-nos o processo histórico da formação de classificações de sexualidade e gênero e, especialmente, formas iniciais de luta política pela valorização de direitos humanos, como as que o alemão Karl Benkert (1824-1882) travara no século XIX contrapondo-se "à opinião dominante na época de que o homem que praticava a 'sodomia' era imoral e mau-caráter" (BARBO, 2013, p. 13). (Leitura imprescindível, que indico à todas as pessoas que desejam compreender melhor essa questão). Estudos como o de Barbo servem-nos como ferramenta de desconstrução de imaginários arraigados referentes àquilo que se tem aprendido como o "natural" e o "biológico", pois desbarata a ideia dominante da "ordem natural das coisas", da "verdade imutável" e, principalmente, da "ilegitimidade" das experiências humanas mais profundas, ao mesmo tempo em que nos revela uma cultura de luta política que também é histórica e antecede à explosão da contracultura do segundo pós-guerra (1950-1960).
Giovanni Semeraro, ao trabalhar a questão das estruturas hegemônicas que forjaram o "ser oprimido" na América Latina, lançando mão de todo o processo histórico do continente marcado pela dominação colonial e das resistências populares que decorreram disso, afirma que a condição de oprimido é capaz de gerar uma consciência contraposta à ideologia dominante que aponta para a libertação do dominado. A conscientização do oprimido/dominado levaria ao surgimento de uma "filosofia da práxis", isto é, "a filosofia e a política (...) que não se limitam em criar teorias, mas se aliam permanentemente com os oprimidos, abraçando os seus projetos com um sentimento semelhante ao da kenósis, ou seja, com um movimento que leva à encarnação na realidade, ao contato profundo e à partilha de vida com as classes populares" (SEMERARO, 2009, p. 51). O autor prossegue afirmando que a conscientização do oprimido "quer dizer dar-se conta de ser subjugado e organizar-se politicamente para se libertar" (SEMERARO, 2009, p. 57). Seu texto é eminentemente político e dirigido à uma reflexão sobre a América Latina, mas acredito ser pertinente à esta reflexão nos termos da resistência LGBT à "hegemonia da heteronormatividade", pois as formas como Semeraro trata a questão da hegemonia e da libertação são caras a uma compreensão dos significados que regem os atos de afirmações identitárias de gêneros e sexualidades. Mas, afinal, o que define o "ser oprimido"? A resposta comporta diversas expressões que, mescladas, conformam uma definição espessa: marginalizado, descartado, que convive com o espectro da insegurança, da inferioridade e da discriminação, estigmatizado pela diminuição, desumanizado e alienado pelas estruturas da dominação colonial, escravizado, submerso, colonizado... O termo "colonizado" tem particular significado: nativos que "se sentem como se estivessem no exílio na própria terra" (SEMERARO, 2009, p. 17). E se trouxéssemos essas mesmas expressões aos LGBTs? E se ressignificássemos o termo "colonizado" segundo as condições penosas de vida e, em muitos casos, de morte que milhões de LGBTs enfrentam cotidianamente, conjugados a um quadro de desigualdades tremendas que marca regiões inteiras como a América Latina? O resultado seria a definição nada positiva de uma condição desumana que aos LGBTs fora imposta pela força, sem o consentimento dos seres humanos que fazem parte dessa sigla: vidas colonizadas pelo pensamento hegemônico da heteronormatividade; estigmatização encarnada na "ameaça homossexual" e na "peste gay", como diziam sobre a AIDS nos anos 1980 e como continuam afirmando naquela bizarra e controversa expressão médica "grupo de risco"; escravização pela farsante ideia do "desvio" e da "doença", como diziam até 1990 quando a Organização Mundial da Saúde resolveu excluir a homossexualidade de sua lista de doenças mentais; submersão em um conflito interno que afoga o homem por dentro, quando mergulhado nas águas profundas da violência psicológica de muitas instituições religiosas e políticas; exílio provocado pela rejeição familiar e social. A tomada de consciência da carga de significados que essas definições trazem é o fermento da resistência e da contra-dominação, que implica não apenas no reconhecimento de uma "condição oprimida e colonizada", mas sobretudo na afirmação da própria humanidade que reclama a dignidade, o respeito, o direito à vida e à felicidade.
Diante do exposto acima, o que pensar sobre o "afirmar-se LGBT"? Processo complexo, doloroso, perigoso em muitos casos, reconhecer-se LGBT, "sair do armário" e dizer publicamente quem você é confere um sentido de resistência à todo um conjunto de lutas sociais que objetivam a superação das apodrecidas e nocivas estruturas dominantes que ainda imperam e a construção de um mundo onde a humilhação e o assassinato não sejam rubricas em destinos individuais e coletivos. O esconder-se pelo pavor da homofobia é nada menos que a marca indelével e tenebrosa do discurso hegemônico da heteronormatividade, que desata problemas individuais e sociais infindáveis. O afirmar-se é, portanto, a resistência à dominação de uma ideologia que padroniza corpos e sentimentos, que coloniza pensamentos e estigmatiza para desumanizar, cujas consequências mais dramáticas podem ser medidas pelo alto nível das violências contra pessoas LGBTs e das graves violações aos direitos humanos.
A resistência e a contra-dominação são expressas sob as diversas formas, sendo a organização política a mais visível e, do meu ponto de vista, a mais preponderante. Entretanto, há resistência no batom da travesti, na decisão pela transformação do corpo, nos trejeitos afeminados e masculinizados, nas "divas do pop", nas demonstrações públicas de amor, nos vocabulários identitários, nas literaturas produzidas e consumidas pelo "público LGBT", nas participações em programas de rádio e televisão, nas colunas de jornais, nas mídias alternativas, nas boates e nos bares gays, na atividade intelectual, nas religiões não-ocidentais, nas práticas esportivas e em todas as formas culturais e espaços onde o afirmar-se LGBT constitua expressão legítima da beleza do humano, ensejando consequentemente a proposta de uma nova humanidade pela formação de um novo consenso em torno da valorização da diversidade.
O "afirmar-se LGBT" sintetiza a resistência e a contra-dominação na medida em que promove a visibilidade de experiências humanas que, longe de reclamarem apenas a mera equiparação no Direito, bradam sua legitimidade pelo simples fato de serem humanas e confrontem os pavores sociais (a "LGBTfobia"), os estigmas e os discursos padronizantes que excluem, e por vezes matam, através de vários mecanismos políticos e culturais.
Entre 1978 e 1982, circulou nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro o famoso jornal "O Lampião da Esquina". Símbolo da imprensa alternativa brasileira no período final da ditadura civil-militar (1964-1985), Lampião retirava suas forças de um grupo de intelectuais e artistas que resolveram se posicionar contra às pesadas estruturas patriarcais e heteromasculinas historicamente dominantes na sociedade brasileira, afirmando uma "cultura política homoerótica" e denunciando as violências cometidas pela própria ditadura às travestis que trabalhavam nas noites carioca e paulistana. A experiência histórica de Lampião, uma entre dezenas de outras semelhantes espalhadas pelo mundo, revela-nos outras faces da resistência e da contra-dominação, representadas pela tomada de espaços de poder, como a imprensa, para a divulgação de modos de vida que tentam ser silenciados pela estrutura dominante da heteronormatividade. Abre-se, a partir desse exemplo, outra forma de conceber o "afirmar-se LGBT": a conscientização do "ser oprimido" que encaminha uma "filosofia da práxis" realizada numa resistência em conjunto, pois, ainda nas palavras de Semeraro, a "conscientização, assim, é principalmente um acontecimento público, um corajoso "ato político" realizado junto com os oprimidos, uma ação que não se consuma no âmbito privado da consciência, mas na práxis que rompe o silêncio e a docilidade das massas" (SEMERARO, 2009, p. 57). Não vejo que a perspectiva de Giovanni Semeraro necessariamente invalida as resistências íntimas, como aquelas encarnadas no batom de uma travesti ou no corte de cabelo de um rapaz homossexual; porém, eleva-nos a um nível de compreensão mais alto: o da força que o "coletivo" pode ter no processo da contra-dominação. Nessa forma de concepção, o "afirmar-se LGBT" já não é mais um ato singular e individual, mas plural e grupal: é o ato da famosa "cultura gay"; das preferências políticas de um número considerável de gentes orientadas à projetos políticos libertadores e defensores dos direitos LGBTs; das professoras e dos professores de escolas e universidades que se colocam a historicizar e valorizar as práticas culturais desses grupos de pessoas, dando-lhes existências e formas nos tempos históricos; dos militantes políticos que marcham pelas mudanças em currículos escolares, reconhecimento legal do casamento igualitário e do direito à constituição familiar, da pressão por políticas sociais de equiparação. Agora, o "afirma-se LGBT" se derrama na sociedade, tornando-se cada vez mais coletivo e angariando forças entre as pessoas heterossexuais, caminhando na direção de um novo consenso, de uma nova hegemonia - a da liberdade e a do direito à existência do diverso -, de um novo projeto de humanidade.
Assim, concluindo este ensaio, proponho uma reflexão crítica erigida sobre três grandes pilares: 1) o império, a hegemonia da heteronormatividade se coloca em relação aos LGBTs como ideologia dominante e colonizadora, que desata toda a sorte de opressões encarceradas no sentido da palavra "colonial" acima ressaltado, devendo ser enfrentada pelas armas de luta correspondentes ao "assumir-se LGBT"; 2) o "assumir-se LGBT" costura-se por uma linha que se inicia no individual e termina no coletivo, sendo a expressão de um duplo fenômeno - a resistência e a contra-dominação: nesse sentido, deve contemplar os atos mais íntimos da auto-aceitação e dos gestos individuais, passeando pela demonstração pública de sentimentos, expandindo-se para as formas artísticas e as produções literárias, atravessando os debates intelectuais, tomando significativos espaços de poder como a imprensa alternativa, marchando pelas ruas em paradas de orgulho LGBT, sedimentando grupos políticos, até se tornar um ato de multidões, que injeta ânimo e forças no nível pessoal do "assumir-se" e, ao mesmo tempo, engrossa as fileiras combativas da resistência e da contra-dominação; 3) ao derramar-se pela sociedade, ao tornar-se coletivo para além dos muros da "comunidade LGBT", ao apresentar-se como fluxo de um projeto emancipador mais amplo, o "assumir-se LGBT" congrega heterossexuais, que assim não podem ser encarados como inimigos, mas como braços amigos na construção de uma solidariedade de luta, consumando uma libertação que é nossa e do outro, a libertação de toda a humanidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBO, Daniel. A emergência da homossexualidade: cultura grega, cientificismo e engajamento. In: BARBO, Daniel (org.); COSTA, Adriane Vidal (org.). História, literatura e homossexualidade. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
MEYER, D. E. E. e PETRY, A. R. Transexualidade e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 10, n. 1, p. 193-198, jan/jul 2011.
SEMERARO, G. Oprimido: ser colonizado; Conscientização: na raiz dos problemas. Libertação e Hegemonia: realizar a América Latina pelos movimentos populares. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009.