Labirinto Matrix III - Espiritismo
"Fora da caridade não há salvação... Submetei todas as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá. Não só ela evitará que pratiqueis o mal, como também fará que pratiqueis o bem, porquanto uma virtude negativa não basta: é necessária uma virtude ativa."
Allan Kardec (Instruções dos Espíritos, livro O Evangelho segundo o Espiritismo)
Costumo me referir ao Espiritismo ou Doutrina Espírita, como Kardecismo, e embora não exista religião kardecista, ganha-se tempo ao evitar as especulações que surgem, afinal, são tantas vertentes espiritualistas que têm os fenômenos espíritas como base e nada a ver com a Doutrina... Allan Kardec foi o codificador do Espiritismo; foi pedagogo, francês nascido no ano de 1804 e sempre buscava confrontar esse conhecimento e testá-lo à luz da ciência.
Há muitos anos, de súbito me surgiu profundo interesse por questões espíritas. Logo comecei a estudar esse assunto fascinante em todos os momentos livres, dia e noite. Para espairecer, entre um livro de estudo e outro, lia famosos romances psicografados.
De fato, houvera um pequeno gatilho que me levou ao interesse, pois certa vez, senti que estivera sob a influência de um poder sobrenatural contrário à minha vontade, fato que, primeiro me gerou aborrecimento, depois, vontade de entender se isso poderia realmente ocorrer ou seria mera impressão.
Apesar de ler muitos autores, mantinha como diretriz os ensinamentos de Kardec. Estudava sozinha e depois de certo tempo, senti a necessidade de interagir com outros do mesmo interesse.
Assim, busquei uma Casa Espírita tanto para me desenvolver mais quanto para praticar meus conhecimentos.
Na época, apesar de estar morando no Japão onde não se tem tanto acesso a isso, havia uma Casa cujo presidente contava com boa experiência de trabalho de uma Casa bem estabelecida em São Paulo.
O médium principal era o próprio presidente que incorporava um famoso médico, realizando consultas e cirurgias espirituais (sem corte), conforme a necessidade.
Apesar de neófita, logo me tornei membro efetivo, realizando diversas funções. Comecei a ministrar aulas de Evangelho segundo o Espiritismo, depois de certo tempo me entregaram as chaves para cuidar da organização geral e abrir nos dias de trabalho, até que me colocaram na supervisão dos trabalhos.
Embora eu não incorporasse, era médium passista, ou seja, aplicava passes magnéticos com a ajuda de um Espírito superior. Esse realmente era um trabalho com o qual eu me dava muito bem, pois, interessada em cura espiritual, vinha estudando bastante o assunto. Poder contribuir para com o equilíbrio energético e bem-estar de outrem era muito gratificante.
Outra função minha era receber cada visitante que quisesse se aconselhar ou consultar, aí, em privado eu realizava a anamnese, um pré-diagnóstico físico-emocional para poder direcioná-los aos trabalhos que a Casa podia oferecer.
Alguns membros representantes da Casa prestavam assistência aos sem-teto da cidade de Nagoya nas noites de sábado. Preparávamos sopa e outros alimentos ali mesmo, na rua e distribuíamos roupas, agasalhos, calçados, etc. A esposa do presidente sempre buscava limpar e cuidar de ferimentos, e eu me dispunha a lavar e cortar cabelos.
Apesar de extenuante, pois varávamos a noite após uma semana de trabalhos na Casa e nas empresas, que geralmente tinham longas jornadas, era gratificante, pois segundo nosso entendimento, a prática da caridade era a base da Doutrina Espírita, na qual depositávamos nossas crenças.
Allan Kardec sempre buscou o estudo e sua obra incentiva o estudo tanto para o aperfeiçoamento moral como para se precaver dos espíritos enganadores e mistificações. Mas fui percebendo que uma grande parte dos que buscavam a Casa, visava mais a manifestação dos fenômenos espirituais, com pouco ou nenhum interesse nos estudos, principalmente, nem na prática da caridade ou em fazer orações.
A questão é que, quando se aceita a teoria da reencarnação, o motivo cármico dela, a existência dos espíritos superiores e dos inferiores em termos de evolução, sabe-se que os fenômenos são uma decorrência natural do mundo espiritual. Essa curiosidade que muitos demonstram implica tanto no desconhecimento do mundo espiritual quanto na falta de entendimento da obra de Kardec.
Só posso falar sobre a minha experiência, sem generalizar sobre centros espíritas "mesa-branca", como costuma-se distinguir esses de outros trabalhos, como a quimbanda, por exemplo. Mas percebi que, talvez até pela simplicidade da Casa, sem ornamentos e pelos trabalhos serenos e pacíficos, ou, talvez seja uma progressão natural, depois que aprendem o básico, muitos médiuns passam a ter interesses em trabalhos mais agitados, desejosos de conhecer o candomblé ou umbanda, por exemplo.
Embora eu entenda e respeite tais religiões, meus interesses, assim como o estatuto da Casa, sempre foi no Espiritismo codificado por Kardec, justamente pelo aspecto moral-filosófico, em detrimento dos fenômenos paranormais exuberantes.
Embora eu tenha lido várias obras do grande médium brasileiro, Chico Xavier, minha diretriz sempre foi a de Allan Kardec. À primeira vista, a maioria das obras espíritas podem até parecer iguais, mas não o são, chegando às vezes a ir contra o ensinamento contido na Doutrina Espírita.
O problema é que não é difícil idolatrar e até seguir cegamente o Chico Xavier por exemplo, a ponto de relegar ao segundo plano a orientação de Kardec, mesmo indo contra o próprio estatuto da Casa.
E corre-se um grave risco ao desvirtuar toda a orientação dos trabalhos quando se começa a incluir essa ou aquela linha de ensino diferente da prática usual...
Aos poucos, o presidente passou a demonstrar o interesse de incluir ritos da umbanda, uma vez orientou alguém a procurar o candomblé... Quando se percebe, a Espiritualidade da Casa está totalmente a mercê de entidades até então estranhas. Embora eu resistisse abertamente, a maioria não pensava assim...
Passei por uma tremenda luta interior para me desligar da Casa. O dilema moral que enfrentei quase me lançou à cama, doente. Finalmente, entreguei tudo a Deus e me afastei. Um desligamento desse porte, ainda que seja para melhor, é um baque físico perceptível. A minha força espiritual ajudava a manter a Casa e a Casa me mantinha espiritualmente.
Embora difícil de definir, foi como perder quilos de peso e sentir uma leveza desagradável.
Pouco tempo depois a Casa foi transferida para outro lugar, noutro estado. E logo após se mudarem, recebi uma noticia que me deixou chocada; o presidente havia se envolvido num relacionamento afetivo com uma outra mulher da Casa, indo morar com ela. Ele e a esposa formavam um dos casais mais perfeitos que conhecíamos e tudo fora tão rápido que mal podíamos acreditar. A esposa, muito querida por todos nós, extremamente devotada à obra e a ele, continuava trabalhando na Casa, com os dois, pois não acreditava que tinha perdido seu amado marido para sempre, achando que algum dia ele "despertaria".
Quando comecei a me sentir de certa forma responsável por esses fatos, lembrei-me de que eu havia colocado a minha vida à disposição de Deus, tamanho foi o meu sofrimento ao me desligar deles; que eu logo morresse nessa existência, se Deus me acusasse, mas eu seguiria a minha consciência.
A religião é apenas uma ferramenta que possibilita ao indivíduo crescer espiritualmente; ela não tem em si o poder de forçar uma transformação moral. Diante de uma desilusão religiosa que tenha resultado em mágoa, até que se entenda isso, dificilmente essa mágoa será dissolvida. E eu fiquei tão magoada como decepcionada...
"Os Espíritos vos vêm instruir e guiar no caminho do bem e não no das honras e das riquezas, nem vêm para atender às vossas paixões mesquinhas. Se nunca lhes pedissem nada de fútil, ou que esteja fora de suas atribuições, nenhum ascendente encontrariam jamais os enganadores; donde deveis concluir que aquele que é mistificado só o é porque o merece.
O papel dos Espíritos não consiste em vos informar sobre as coisas desse mundo, mas em vos guiar com segurança no que vos possa ser útil para o outro mundo. Quando vos falam do que a esse concerne, é que o julgam necessário, porém não porque o peçais. Se vedes nos Espíritos os substitutos dos adivinhos e dos feiticeiros, então é certo que sereis enganados."
Allan Kardec - O Livro dos Médiuns