Luís de Camões e Almeida Garret (questões)
USP - F.F.L.C.H - Universidade de São Paulo.
Literatura Portuguesa II
Professor: Paulo Motta Oliveira
Aluno: Paulo Henrique Coelho Fontenelle de Araújo
n. USP: 3710046
Avaliação individual: questões sobre a obra de Luís de Camões e Almeida Garret.
São Paulo
Dezembro de 2003
Questão 01 – Tanto em O auto da Índia como em Frei Luís de Sousa temos uma situação semelhante: a de maridos que retornam a Portugal. Analise comparativamente as duas peças, tentando verificar as semelhanças e diferenças que apresentam, apontando, também, as imagens que cada um compõe sobre Portugal, e os motivos históricos que poderiam explicar as semelhanças e diferenças. Em sua análise confronte, ainda, a imagem de Portugal presente nessas obras com a construída em Os Lusíadas.
Resposta:
Em um nível de análise superficial as duas peças tratam de maridos que retornam as suas casas em Portugal. Dentro dessa condição ainda podemos afirmar que as peças envolvem aspectos da história de Portugal (A viagem de Tristão da Cunha em 1506 e A batalha de Alcacer Quebir em 1580). Pode-se também afirmar que, aparentemente, o personagem central de cada uma das peças é uma mulher - embora haja um tratamento diferenciado para ambas . Detecta-se, por fim, na superficialidade, dos primeiros significados, que as peças discorrem sobre traições femininas, sendo que a primeira peça “O auto da índia” trata o tema de forma jocosa e “Frei Luís de Sousa” de forma trágica, onde a mulher D. Madalena, é vítima das circunstâncias que trouxeram o seu ex-marido de volta, vinte anos depois da batalha de Alcacer Quebir, quando ela já era casada .
Em uma medida intermediária, podemos chegar a conceitos mais abstratos e fixar uma característica marcante para cada uma das personagens centrais: a personagem denominada “Ama” em “O auto da Índia” é leviana e D. Madalena em “Frei Luís de Sousa” é fatalista, o que pode resultar em situações de conflitos que envolvem, nas duas peças, o amor versus fidelidade, dignidade versus origem social, respeito às convenções sociais versus hipocrisia. Tais características das citadas personagens femininas e os conflitos decorrentes, inseridos em um contexto histórico que não foi omitido em nenhum momento, podem significar, através de uma leitura mais profunda, que é a própria índole do povo português que está sendo demonstrada.
Em análise profunda, as suspeitas do nível intermediário são confirmadas. As contradições das personagens – principalmente a “Ama” e “D. Madalena” - só se justificam se inseridas no contexto histórico, o que torna consequente a análise que coloca as peças como detectores profundos da verdadeira alma do povo português. Em “O auto da Índia” como não relacionar o comportamento interesseiro e leviano da “ama” com a frase do marido “Fomos ao rio de Meca pelejámos e roubámos...” e o momento em que Portugal passava na expansão marítima do século XVI. Em “Frei Luís de Souza” como não relacionar o comportamento de D. Madalena - que via como indício de uma desgraça eminente, a coincidência de estar no mesmo dia em que casara pela primeira vez, que se perdeu El-rei D. Sebastião e que viu pela primeira vez Manuel de Souza – com a própria condição de perplexidade do povo português que, na época em que passa a história via o seu país dominado pela Espanha, como não relacionar o personagem com o momento histórico em que a peça foi escrita, em meados do século XIX, quando o povo português buscava uma saída para a decadência que vivia com o fim do império. Por fim, é sintomático que a personagem feminina na peça “Frei Luís e Sousa” seja representativa da alma do povo português, pois o próprio D. João, metáfora de uma pátria que já não mais existia, a confirma quando diz na cena V “Na hora em que ela acreditou na minha morte, nessa hora morri ”
Todos os outros personagens também representam o povo português, embora sem a significação das personagens femininas acima. Na peça “Frei Luís e Sousa” o mais representativo é o personagem “Telmo”, absolutamente perplexo diante da realidade que vivencia e totalmente preso ao passado, porém acredito que não possa ser considerado o “centro trágico da peça” , pois a sua presença não foi determinante para a volta de D. João.
A segunda parte da questão pede que seja considerada a imagem de Portugal presente nas duas peças com a inserida em “Os Lusíadas”. De fato, são imagens diferentes. As duas peças citadas acima partem de momentos de instabilidade: no “O auto da Índia” registra uma instabilidade quanto ao futuro de Portugal tendo como referência negativa as conquistas territoriais então em andamento; em “Frei Luís e Sousa” a instabilidade resulta do medo do futuro pela perspectiva do que Portugal perdeu. Em “Os Lusíadas” , ao contrario não há incertezas, porque o momento vivido na época da criação do épico, era da grandeza consolidada por uma história de conquistas, cujos efeitos positivos ainda poderiam ser sentidos, principalmente por Camões, que fez parte dessa história. Não obstante, Camões manifesta no final do poema, um medo quanto ao futuro de Portugal, medo confirmado com o domínio espanhol durante sessenta anos.
Portugal , nas duas peças, é um país indefinido tanto para o bem quanto para o mal. Em “Os Lusíadas”, Portugal é a grande potência da Europa, aquela que passou muito além da Taprobana.
Questão 02 – Pudemos notar que Camões, em alguns poemas de sua lírica, incorpora e problematiza alguns conceitos platônicos e/ou neoplatônicos. Confronte um dos poemas trabalhados em sala com um outro que não tenhamos trabalhado, em que as concepções platônicas e/ou neoplatônicas estejam presentes, indicando como, em cada um deles, essas concepções aparecem. Em sua análise você deverá utilizar como apoio crítico os ensaios existentes em Poesia e metafísica de Eduardo Lourenço.( Não esqueça de entregar, junto com suas respostas, uma cópia do poema escolhido).
Poema escolhido:
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
É força que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
Assim, de erro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano ou fingimento
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa própria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de um certo modo ser presente.
Ditosa é, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa dela em mim se sente
Um bem que, inda sem ver-vos, reconheço
Luís de Camões
Resposta:
No diálogo de Platão “O Banquete” , diversos oradores discursam sobre o que consideram ser o amor. A partir dessa discussão, Platão, pela boca de Sócrates estabelece a relação entre Eros e a filosofia (pois só o filósofo deseja conhecer). Eros é a ânsia de ajudar o eu a realizar-se e essa realização tende para o Bem e para o Belo; subordina a beleza física à beleza espiritual e desliga-se da paixão por um determinado ser na realização de contemplar a beleza. Platão subjuga as paixões à razão. O amor sensível deve estar subordinado ao amor intelectual.
A concepção de amor platônico acima é imperturbável em seu conceito e Camões, já no primeiro verso do soneto “Transforma-se o amador na coisa amada”, direciona o poema para a assimilação desse conceito platônico (o que inclusive atesta o racionalismo característico da época). O soneto, contudo não é a defesa de ideias e já no verso seguinte Camões – que era um poeta e não um filósofo – interrompe a certeza platônica do verso inicial e o amor manifestado pelo eu lírico passa à esfera do ilusório “Por virtude do muito imaginar” e termina com uma matéria simples na busca da forma.
O soneto “Transforma-se o amador na coisa amada”, do inicial conceito platônico passa a esfera dionisíaca, ou melhor, fica a um passo do barroco conceptista. A contradição é justificável se estabelecermos que dentro do universo poético supõe-se, antes da coerência, um sistema metafísico, a experiência vital do autor que, no caso de Camões, foi intensa e dilacerada, o que torna a obra analisada a manifestação de uma consciência poética.
O soneto “Quando a suprema dor muito me aperta”, apresenta também a contradição que revela não o modelo platônico, não obstante, há o toque dionisíaco e dilacerado do autor. A diferença está apenas no fluxo criatório invertido do soneto acima, pois, se em “transformasse o amador na coisa amada”, o eu lírico parte de uma ideia de solução da dor do amor – conceito platônico - que não logra alcançar pois o mesmo permanece no ilusório e no vir a formar-se; no soneto escolhido a mesma dúvida perpassa todo o texto, com a diferença de que a dor resolvida em esquecimento logra em alguns momentos receber “a luz do bem regido entendimento”, que é o início da solução tanto para o esquecimento quanto para a dor que aperta o eu lírico: “um bem que inda sem ver-vos, reconheço”. Este verso final corresponde ao verso inicial do primeiro soneto estudado - a visualização de um conceito platônico de que a razão subjuga às paixões – e corresponde também, em um grande poder de síntese manifestado, ao último verso, pois se ali o amor busca forma; aqui o bem que a razão representa, ainda que não formado, é reconhecido pelo autor.
Questão 03- A lírica de Garret possui uma clara intertextualidade com a obra camoniana, e , ao mesmo tempo, apresenta uma forma distinta de ver o amor e os seus efeitos. Analise o poema “Cascais”, indicando não só como ele se correlaciona com certos aspectos da épica e da lírica camoniana, mas também como a visão de amor nele presente se articula com a de dois outros poemas de Folhas Caídas anexos a esta avaliação ( “Gozo e dor” e “Este inferno de Amar”) Utilize, como apoio para a sua análise, os textos críticos sobre Garret trabalhados ao longo do curso.
Resposta:
A primeira parte da pergunta é uma afirmação que procede. Há uma clara intertextualidade entre a lírica de Garret e a obra camoniana no que diz respeito à concepção do amor e, ao mesmo tempo, Garret apresenta uma diferenciação que o define em sua originalidade, uma distinção que pode ser melhor captada se concebermos o produto final de cada poema de Garret como sendo a culminância de um processo de assimilação de conceitos camonianos, que se desenvolveram de um modo peculiar, acentuando certos aspectos até se distinguirem totalmente de sua origem. A imagem de uma grande figueira ajustasse ao conceito acima: partiu Garret em cada um dos seus poemas de uma raiz comum a Camões, contudo no crescimento desta árvore lírica o que surgiu - dos galhos que se curvaram e enterraram-se no solo - foi outro vegetal lenhoso que devia grande parte da sua existência mais ao ambiente onde crescera do que a semente que o originou.
Vamos à semente: no poema Cascais, (sua maior árvore e portanto escolhida para a análise) há um grande oxímoro, se assim podemos chamar o conceito de amor que ali se apresenta. Garret estabelece para o sentimento a idéia de que sua realização se dá diante da sua negação ou, para que o amor tenha um sentido ele não pode ser eterno, apenas intenso, apenas vivenciado. Ora, o que é isso senão uma característica camoniana que na revelação de oxímoros, (como nos poemas “Amor é fogo que arde sem se ver” ou “Transforma-se o amador na coisa amada”) pretende definir o amor dentro de uma impossibilidade que lhe é imanente. Contudo, aproveitando-me da imagem de um vegetal lenhoso, há em Cascais uma natureza bravia, a intensidade de “ventos despregados” que vai reelaborando a visão do sentimento amoroso para algo além do racional que o estilo camoniano inicialmente sugeria; reelaborando para uma idéia do amor, como Helder Macedo definiu: produto de “excessos partilhados” , onde o caráter épico - também influência camoniana – manifestaria-se dentro de um novo modo, uma experiência vital - intensa à semelhança de uma grande viagem – que transmite prazer e conhecimento revelado a poucos.
Esta revelação ( o caráter épico da experiência amorosa ) indicado por Garret, que na época da criação do poema testemunhava um contexto histórico de tentativa de afirmação do povo português, não deixa de apresentar uma saída – ainda que individual - para esse contexto histórico, saída essa que, paradoxalmente, volta a Camões, como na imagem da figueira acima que verdadeiramente se transforma em outra árvore, cujo tronco permanecerá para sempre ao lado da raiz da árvore que lhe originou.
A pergunta prossegue pedindo que se esclareça como a visão de amor no poema “Cascais” se articula com a de dois outros poemas de Folhas Caídas. Ora, tanto em “Este inferno de amar” como em “Gozo e dor” manifesta-se já nos títulos, a ideia presente em “Cascais” de que o amor só se sustenta na negação dos seus próprios fundamentos e esta negação lhe legitima porque é da natureza do amor preservar sua contradição.
Notem-se as tentativas de definição do amor em si antagônicas, embora explicativas, presentes nos poemas “Este inferno de amar” e “Gozo e dor” : “O excesso de gozo é dor” ou “Sinto que a vida exaure em mim/ Ou a vida – ou a razão” ou “Que é a vida – e que a vida destrói”. Note-se a mesma estrutura em Cascais ao explicar a natureza, aqui deflagradora do eu lírico e da sugestão amorosa: “Inda ali acaba a terra/ mas já o céu não começa”.
O amor é o amor poderíamos captar dos três poemas. O sentimento amoroso, pela visão de Almeida Garret, só pode ser vivenciado e não explicado por categorias lógicas.
BIBLIOGRAFIA:
MACEDO, Helder . Almeida Garret e as ambiguidades do Romantismo - SCRIPTA – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC – Belo Horizonte- Minas Gerais – Brasil – págs. 80 a 88.
OLIVEIRA, Paulo Motta . Camões e Garret: navegações do Restelo a Cascais - SCRIPTA – Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC – Belo Horizonte- Minas Gerais – Brasil – págs. 173 a 184.
LOURENÇO, Eduardo. Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa Editora, págs. 11 a 30.
FIORIN, José Luiz e SAVIOLI, Francisco Platão. Para Entender o texto: Leitura e Redação. 3 ed. São Paulo: Edit. Ática, 1992.
CANDIDO, Antônio Na sala de aula – caderno de análise literária, 5a ed. SP: Editora Ática, 1995.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires Filosofando – Introdução à Filosofia – São Paulo:Moderna, 1986.
GARRET, Almeida . Frei Luís de Souza: viagens na minha terra. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1965.
VICENTE, Gil. Satiras Sociais – Auto da India, Publicações Europa América – pág 27 a 52.
CAMÕES, Luis de. Versos e alguma prosa de Luís de Camões Lisboa: Moraes Editores, 1977.