O mecanismo narcísico e psicótico da semiformação
Terceira parte dos comentários ao texto “Teoria da Semicultura” de Theodor W. Adorno
Adorno identifica na dinâmica da semiformação a estrutura de um narcisismo coletivo. O indivíduo, diante de sua impotência em relação à participação no mecanismo de criação da Cultura, contenta-se em absorver certos vestígios dos bens culturais e colocá-los no lugar que deveria ser ocupado por aquela. Esse processo funciona pela identificação que gera entre os indivíduos que partilham da semicultura, criando um vínculo através do pertencimento a grupos específicos. A “cultura” absorvida pelo sujeito a partir do processo de semiformação adquire uma forma cristalizada e regressiva que inviabiliza a crítica acerca de tal conteúdo. Ela aparece de maneira supervalorizada e idealizada, característica do narcisismo*.
Dispensados de sua parte na construção da Cultura, os indivíduos passa a usar o simulacro que é a semicultura como signo de vinculação a grupos. Como é, por natureza, esvaziada de substância, a semicultura compensa esse vazio através da glamourização excessiva, uma espécie de pirotecnia que busca, com suas luzes ofuscantes, tornar invisível a sua face usurpadora. A cultura, que envolvia uma concepção do mundo na qual o indivíduo se integrava e na história da qual participava de maneira ativa, é substituída, enfim, por alguns ritos esvaziados de seu significado, pela pertencimento a instituição já caducas e pela força agregadora do grupo. Ao mesmo tempo em que “o semiculto dedica-se à conservação de si mesmo sem si mesmo” (Adorno, 1996, p.25 – tradução modificada), ele também tem a satisfação narcísica de identificar no outro aquele mesmo ideal (os ritos esvaziados, etc) seu.
Adorno chama também a atenção para o caráter psicótico da dinâmica da semicultura. Para ele, esse caráter é dado pelo fato de a semicultura assumir sempre uma postura defensiva que busca ao máximo ensimesmar-se e evitar o contraditório, realimentando-se de seus próprios esquemas.
Acerca dos últimos pontos expostos, vale à pena comentar um trecho de um texto de Freud escrito em 1921, “Psicologia de grupo e a análise do Ego”, no qual Freud diz que um grupo "não possui faculdade crítica e o improvável não existe para ele. Pensa por imagens, que se chamam umas às outras por associação [...], e cuja concordância com a realidade jamais é conferida por qualquer órgão razoável. Os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e exagerados, de maneira que não conhece dúvida nem a incerteza. [...] .
Inclinado como é a todos os extremos, um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer que deseje produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes". (FREUD, 1921, p.88-89)
Ora, o que Adorno diz não é outra coisa senão que a indústria cultural, em sua ânsia de abarcar a todos, utiliza o mesmo mecanismo que Freud já dizia que deve ser utilizado para produzir efeito sobre um grupo, a saber: as cores fortes, o exagero e a repetição. É disso que se trata quando se coloca uma repetição de palavras para facilitar a memorização dos temas principais de sinfonias famosas, ou quando, em um filme, cada cena concentra o máximo de estímulo para um determinado sentimento; tudo na semicultura é saturado a tal ponto que sua exposição não comporta sequer a dimensão da leitura do indivíduo. Tudo ali já está dado, lido e visto. Tal saturação não é gratuita, mas faz-se necessária, na medida em que é a única forma que a semicultura tem para esconder sua substancial fragilidade.
O semiculto, além de tornar-se completamente dependente do fato de pertencer a grupo, também dedica um grande ódio a qualquer um que ouse criticar o registro formativo no qual ele se insere ou que mostre possuir a Cultura da qual ele só conhece o simulacro. Nessa perspectiva, o semiculto é, também, um ressentido, que se imiscui na turba com o objetivo de, em maior número, vencer àquilo que não poderia subjugar sozinho, a saber, a Cultura e o indivíduo verdadeiramente culto. O gozo narcísico de pertencimento ao grupo exime o indivíduo do confronto com o real, retira-lhe a capacidade crítica. Um processo que Adorno caracteriza como semelhante à estrutura psicótica.
*No texto “Sobre o narcismo: uma introdução”, Freud diz: “O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor.” (Freud, 1914, p.100)
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. “Teoria da Semicultura”. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira,
Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. Revista “Educação e Sociedade” n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411. Tradução revista por Verlaine Freitas, inédita.
FREITAS, Verlaine. "A dialética negativa da cultura". Inédito.
FREUD, Sigmund. “Psicologia de grupo e análise do Ego”, 1921. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18, 2006.
FREUD, Sigmund. “Sobre o narcisismo: uma introdução”, 1914. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 2006.