O duplo caráter da cultura e a emergência da semiformação
Comentários ao texto “Teoria da Semicultura” de Theodor W. Adorno
Para Adorno, o problema da semiformação é extremamente complexo e exige um grande esforço teórico para que se possa vislumbrar sua gênese e as condições que tornaram possível a ascensão da semiformação à “forma dominante da consciência atual” (Adorno, 1996, p.2 – tradução modificada). A Cultura, segundo Adorno, permanece sempre em um conflito entre o excessivo distanciamento em relação à realidade por um lado, e completa absorção na prática por outro. O equilíbrio ou mediania em relação a esse conflito é raro e, quando conseguido, tênue.
O primeiro dos extremos entre os quais a dinâmica cultural oscila é o da crescente espiritualização e idealização da cultura, representada de maneira mais veemente pela “cultura do espírito” alemã. Nesse extremo, a cultura tende a tornar-se cada vez mais descolada da realidade, alheia ao mundo da práxis, ensimesmada, encastelada na metafísica. É essa cisão entre cultura e sociedade que torna a cultura inócua, incapaz de transformar o real. A formação torna-se assim, mero aparato erudito, acúmulo de um saber sem objeto. No limite, esse tipo de formação, que abstraí do real, degenera em semiformação, em mero adereço intelectual.
No outro extremo, há uma concepção de cultura, e de formação, que procura assimilar-se de maneira quase completa à práxis; à “estruturação da vida real” (Adorno, 1996, p.3 – tradução modificada). Essa concepção se cristaliza no conceito de adaptação, e poda, de certa maneira, a possibilidade de elevação do homem através de sua capacidade especulativa, aprisionando-o, desse modo, no que Adorno chama de “mera história natural darwinista” (Adorno, 1996, p.4 – tradução modificada). Também esse extremo, no limite, converte-se em semiformação.
Tanto a hiperespiritualização quanto a submissão de tudo à “sobrevivência do mais adaptado” darwinista caminham pari passu em direção à fetichização. A cultura do espírito tem, no entanto, uma característica que a torna condição de possibilidade para a própria crítica cultura e, consequentemente, para o entendimento dos conceitos de formação e semiformação. Essa característica é o distanciamento estabelecido em relação à práxis cotidiana, componente fundamental para uma compreensão abrangente do processo.
Quando, no entanto, a concepção idealizada do real vê-se frente a frente com os problemas da práxis cotidiana, só lhe resta buscar refúgio em uma “pureza” da reflexão teórica, tornando-se ideologia. Ou, ao contrário, abrir mão de sua faculdade crítica e diluir-se no ideal de adaptação. Como diz Adorno:
"Sem dúvida, na ideia de formação cultural necessariamente se postula a situação de uma humanidade sem status e sem exploração, e tão logo ela se deixa contaminar com isso e se imiscui na práxis dos fins particulares dignificados como trabalho socialmente útil, ela comete sacrilégio a si mesma. Ela, no entanto, não se torna menos culpada por sua pureza, que se torna ideologia". (1996, p.5 – tradução modificada)
Desse modo, a semiformação não é um fenômeno enxertado na Cultura a partir de fora, mas sim que surge a partir da própria dinâmica da Cultura e da formação cultural. Porém, na perspectiva de Adorno, também não é possível dizer que a semiformação esteja para a formação assim como, por exemplo, um jovem está para um homem maduro. Entre a semiformação e a formação, a diferença é substancial e não apenas de grau. Ou seja, “a semiformação não é uma etapa construtiva rumo a uma formação plena, que faça jus ao princípio da cultura como promessa de liberdade para o ser humano, mas sim uma degradação sua” (Freitas, inédito, §1). Tanto a semiformação quanto a semicultura aparecem como simulacros que buscam ocupar o lugar da formação e da cultura, estas sim, substantivamente superiores.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. “Teoria da Semicultura”. Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira,
Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. Revista “Educação e Sociedade” n. 56, ano XVII, dezembro de 1996, pág. 388-411. Tradução revista por Verlaine Freitas, inédita.
FREITAS, Verlaine. "A dialética negativa da cultura". Inédito.
FREUD, Sigmund. “Psicologia de grupo e análise do Ego”, 1921. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18, 2006.
FREUD, Sigmund. “Sobre o narcisismo: uma introdução”, 1914. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 14, 2006.