SOM E FÚRIA (OU DA SUBLIME ARTE DE PENSAR)

Nos anos 80, uma das grandes bandas de rock que despontava no cenário nacional era o RPM. Dentre tantas músicas que consagraram o sucesso do conjunto, uma delas, revoluções por minuto, destacava a panaceia de mudanças pelas quais o mundo daquela época estava passando. A letra ressaltava “novidades”, como o fato de se beber Coca-Cola na China, ou o consumo de biodegradantes.

O contexto mudou de lá pra cá (apesar das coisas que ouvimos de Brasília serem, mais ou menos, as mesmas). 30 anos se foram e a sensação de mudança para pior, em qualquer cenário, é inevitável. As revoluções por minuto, agora, são revoluções por segundo; ou, caso queiram manter a sigla, RPM, revoluções por mensagens (de texto, de voz, em vídeo).

Esse pequeno ensaio não visa tratar das tão evidentes revoluções por que passa o mundo contemporâneo. Estamos vivendo uma época de transição: não se iludam, já saímos da Era digital. Estamos entrando na Era Pós-digital. E somos testemunhas de toda a avalanche de repercussões que esta transição, inexoravelmente, provocará, seja para o bem ou para o mal, uma vez que, retrocessos e progressos são peculiares à marcha da História.

Trato, aqui, sobre uma tênue e sutil característica que molda boa parte do comportamento humano, neste início da Era Pós-digital. Trata-se do que convenho chamar de “paradigma som e fúria”. E, para desenvolver a ideia, devo, primeiro, esclarecer sobre a pré-compreensão do tema: uma análise sobre a cultura do “assimilar sem pensar” e “agir sem medir consequências”. Sendo direto (e utilizando uma metáfora tosca): engolir sem mastigar, e, se for o caso, vomitar com virulência, caso não se tenha gostado do sabor. Mas, o que isso tem a ver com som e fúria? É o que se tenta responder a seguir, sempre mantendo em mente que se trata de uma crítica à postura de aceitar sem questionar.

O pensamento crítico é uma tendência natural daqueles que se permitem enveredar pelos caminhos da cultura e da erudição. Um problema inicial é, exatamente, o fato de que tais veredas deveriam ser um lugar-comum para todas as pessoas. Mas, razões inúmeras levam o ser humano a se afastar da sublime arte de pensar. E, no mundo pós-digital, o instrumental disponível que leva à alienação é imensamente maior, mais deglutível e mais acessível do que os árduos e densos caminhos do pensamento.

Além disso, as atrações materialistas que fustigam o espírito humano, levando-o a uma busca incessante pelo dinheiro e pelo poder, impinge uma textura sórdida nesta nossa era contemporânea, manchando-a da cor nefasta da mera e vazia realização financeira. Não se trata de negar a essencialidade dos bens materiais. O que não posso admitir é assistir passivo a degradação do traço cultural mais distinto do ser humano, a arte de pensar. O dinheiro é importante. Mas, é objeto. Para não me prolongar, faço minhas as palavras do personagem Mitya, em Os Irmãos Karamázov – “um daqueles que não querem milhões, mas uma resposta a suas perguntas”.

O pensamento crítico como traço cultural de uma sociedade, assim como a própria cultura, está prestes a desaparecer. De um modo geral, dentre os vários motivos que contribuem para este nefasto desaparecimento, apenas um será aqui destacado: a era das revoluções por mensagens impõe a submissão a uma enorme quantidade de informações e estímulos, a maioria inúteis, de modo a deixar transparecer que existem necessidades que devem ser supridas, a qualquer custo, sob pena de ser deixado para trás e de perder a oportunidade de conquistar o seu lugar ao sol. Por isso, paradoxalmente, em vez de questionar sobre a utilidade/necessidade de tanta informação, é preferível e mais fácil ceder lugar à alienação e, sem se debruçar criticamente sobre uma situação ou contexto, simplesmente, aderir a seus preceitos (engolir sem mastigar).

Resultado disso: alienação e angústia.

Alienação (a maior doença do século XXI), porque essa postura acrítica retira do espírito humano sua condição de ser culturalmente pensante, deixando apenas uma conduta que o faz aceitar conceitos, costumes e comportamentos que em nada lhe agregam valor, ou, sequer possuem qualquer afinidade com seus intentos. Aceita-se tudo, sem se questionar sobre os valores.

Ou, de modo diametralmente oposto, esse modus operandi acrítico acarreta a violência decorrente da intolerância em relação ao que se tem por diferente, simplesmente pela falta de se debruçar, de forma pensante, sobre o contexto ou a situação. É o surgimento do preconceito.

A angústia decorre da incapacidade de gerenciar tanta informação e de transformá-la em algo que seja estimulante, interessante. O que importa é não perder o bonde da história, mesmo que, para tanto, a viagem se dê em condições insalubres, dentro de um vagão abarrotado de pessoas que, da mesma forma, também não sabem para onde vão, e, sequer, por que embarcaram. O que conta é estar ali. E essa falta de sentido somente aumenta a sensação de vazio.

Na realidade, a angústia é o resultado do processo em que a alienação atua como instrumento. Quanto mais alienante um determinado contexto, maior a probabilidade de sentimento de apatia, já que a alienação castra as possibilidades de se investigar, por meio do pensamento, as possíveis soluções para os problemas que afligem o ambiente do ser alienado.

À obviedade, essa sensação de apatia, que pode levar a uma angústia generalizada, somente se manifesta naqueles que buscam “fugir da Matrix”. Caso contrário, o mundo alienante passa despercebido aos olhos do alienado. E, assim, tem gente que prefere canonizar a ignorância. Para esses, amém.

Na luta contra a alienação, ao contrário do que se pensa, a informação, por si só, não é garantia de felicidade. Informar-se sem critérios previamente definidos e reflexivos não leva ao conhecimento.

Na Era Pós-digital, o acesso à informação nunca fora tão amplo, permitido e proliferado. Inobstante, isso não garante a aquisição de conhecimento. Sem o pensamento crítico, a imensa quantidade de informação disponível pode se transformar numa quimera de conhecimento inútil. A internet, por exemplo, permite o acesso a praticamente qualquer tipo de informação. Contudo, um simples “para quê”, já seria o suficiente para barrar o processo alienante que é iniciado por meio de um simples “click”. O mesmo acontece no mundo volátil dos smartphones e das redes sociais.

O problema reside, justamente, no mecanismo que impede que nos façamos esta simples pergunta: “para quê”? Porque é preciso estar atento às conjecturas que a informação pode agregar àqueles que dela se valem e, para isso, o pensamento crítico é fundamental. É por meio dele, por este simples “para quê” que a informação, criticamente selecionada, pode ser transformada em conhecimento. Mas, para tanto, é necessário ter “tomado a pílula vermelha”, ter optado pela fuga da alienação.

E aqui reside o âmago deste ensaio: infelizmente, em vez de buscar conhecer o valor e a perspectiva das coisas passageiras e, assim, sair do turbilhão das formalidades cotidianas e das informações desnecessárias, é cada vez mais comum a escolha subserviente ao conformismo, sem crítica, esvaziado de esperança, e recheado de inconsequências. Orbita-se em volta do globo das informações inúteis, sem se buscar aterrissar no campo seguro do conhecimento.

E, como todo artista que fica satisfeito com sua obra falta à vocação, acontece que a busca pelo conhecimento, como forma de fugir deste mundo alienante, também é um processo inacabado. Depois do “para quê”, indispensável para se chegar ao conhecimento, falta completar o processo por meio do “por quê”. Passa-se a um nível mais sofisticado de questionamento, em que o conhecimento já não é o bastante. Busca-se a sabedoria. E, agora, o filtro é o mais perfeito mecanismo decorrente do pensamento crítico: a filosofia.

Analisar os fatos nos permite chegar ao conhecimento, principalmente se, utilizando-se dos métodos adequados, buscarmos as suas vertentes teleológicas, por meio da indagação “para quê”. O conhecimento daí extraído, indubitavelmente, marca o progresso da humanidade. A ciência é a maior prova disso. Não obstante, deve-se buscar um refinamento neste processo, e, por meio da vertente axiológica, buscar o valor de cada coisa, de cada fato analisado. É onde a ciência ganha sentido. É onde o pensamento crítico se eleva à seara do sublime.

Afinal, o conhecimento trouxe a humanidade até essa Era Pós-digital, marcada pelo mundo das revoluções por mensagens, alienante por natureza. É o questionamento sobre os valores que cercam esta nova Era que nos permitirá alcançar o próximo estágio da nossa vã evolução.

Para melhor esclarecer, utilizo o pensamento de Will Durant, que nos deixou palavras que merecem ser pronunciadas: “Observar processos e construir meios é ciência; criticar e coordenar fins é filosofia; e porque hoje os nossos meios e instrumentos se multiplicaram além da nossa interpretação e da nossa síntese de ideais e fins, nossa vida está cheia de som e fúria não significando coisa alguma. Porque um fato nada é em relação ao desejo; não é completo, exceto em relação a um propósito e a um todo. Ciência sem filosofia, fatos sem perspectiva e avaliação não podem nos salvar da devastação e do desespero. A ciência nos dá o conhecimento, mas só a filosofia pode nos dar a sabedoria”.

Eis o objetivo excelso: alcançar a sabedoria. Esse é o estágio final e mais difícil do processo de fuga do mundo alienante e angustiante que caracteriza essa Era Pós-digital.

Som e fúria é o paradigma a ser quebrado. Significa que a alienação chegou a uma fronteira de dominação das consciências, em que tudo que se mostra fora do padrão do mundo alienante, deve ser combatido. Tudo que venha a proporcionar questionamentos como “para que”, ou “por que” deve ser encarado como algo perigoso, pois tende a esvaziar a Matrix.

Som e fúria porque no contexto das revoluções por mensagens, o que vale é permanecer na confusão proposital causada pelo enorme emaranhado de informação inútil, que leva ao senso comum, à alienação e à angústia. Esse é o “som”, dos nossos tempos. Um barulho incessante e irritante, que contamina a alma humana e faz com que pareça ser normal, ou, pelo menos, aceitável, a ausência de critérios e questionamentos sobre as imposições do status quo.

As manifestações furiosas das sociedades contemporâneas, em que a intolerância se mostra como a mais alarmante das suas características, é a prova de que a alienação chegou ao grau máximo.

Nas circunstâncias em que o pensamento crítico prepondera, não se verifica a violência com que se tem notado os comportamentos e as reações das diversas camadas sociais, em relação a pontos de vista ou costumes exóticos ou diferentes. Isso porque na busca pela sabedoria, a mente e o espírito devem ser pautados pela coragem de assumir o eterno compromisso de ser humilde e entender que o intelecto que objetiva o conhecimento deve conduzir o ser humano a se comportar como uma criança, ansiosa por descobrir, sem preconceitos. E assim, por meio do pensamento, o som se transforma em música e contagia o ser pensante, tornando-o harmonioso. E assim, a fúria da intolerância diminui seu campo de incidência.

“Só sei que nada sei”. Essa perspectiva socrática é o pano de fundo e a mola mestra fundamental no árduo e prazeroso caminho para a sabedoria.

A harmoniosa sinfonia resultante da sabedoria é entoada por cânticos de paz e felicidade. O grande dilema é quebrar o paradigma som e fúria, que reveste, cada vez mais e de forma mais intensa, esta insana existência terrena. Sair da inércia da alienação, por mais atraente que seja o mundo das revoluções por mensagens, é uma questão pessoal e cultural. E, muitas vezes, é difícil enxergar o óbvio que está gritando bem na nossa frente. Uma sugestão é começar pelo mais fácil: seja sincero, quantas mensagens de texto (do whatsapp, por exemplo) você já leu hoje? Quantas foram úteis? Por outro lado, quantos livros você já leu esse ano?

A quebra de um paradigma começa pela adoção de um novo. Talvez seja a hora de menos facebook e mais livros (bons livros). De mais música e menos som. De mais Platão e menos fúria. E que as revoluções por mensagens (RPM) possam ser substituídas pelas revoluções por leituras (RPL). De fato, na alvorada voraz desse novo mundo que emerge da Era Pós-digital, que a única RPM que mereça ser lembrada, seja a banda dos anos 80.

Adriano Carvalho Souza
Enviado por Adriano Carvalho Souza em 12/03/2017
Código do texto: T5938334
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.