Desumanizar-se
Desumanizar-se a intolerância, a fome, a gente de rua, eis o grande salto! Eis o mais alto passo para que a sociedade da igualdade se estabeleça. Não conformar-se com a menina sem lar, abusada e humilhada na sua infância. Ao menino, igualmente, não se conformar com a falta de oportunidade, mais escolas para essas crianças, mais abraços, não bombas!
Desumanizar-se aqui, não tem o viés de perder-se em atitudes e comportamentos animalescos, nem mesmo, a busca em saciar uma constatação de que o humano está se tornando efêmero e, porque não dizer, insensível com o próprio humano. Dar ao próprio homem o leme do seu destino; não entregá-lo aos mitos, superstições, nem, tampouco, eis a causa de sua desgraça, a entidades que se alimentam da cega fé dos incautos que compõe o rebanho da salvação.
Desumanizar-se aqui, segue a linha de que não devemos nos deixar conduzir por cenas que se tornam cotidianas, e por isso mesmo, nos acostumamos com o menino sem comida, o bebê sem cuidados, a mãe a suplicar socorro, os velhos jogados para o túmulo como se fossem coisas sem importância.
É preciso desumanizar-se. Sim, é disso que se trata: desumanizar-se com essas coisas é resgatar o Humano que estamos perdendo. É possibilitar o surgimento de um novo homem. Um homem que se deita e dorme o sono dos justos. Um homem que, ao olhar-se ao espelho, não se sinta imperador ou mesmo dono de vidas. É preciso que esse tempo chegue logo; é preciso que cada dia, assim que o sol dê seus primeiros raios, e o colibri cante a aurora, se renove nesse homem, em cada homem, o sentimento para que a vida tenha sentido. Que esse homem venha, tomado de si e para si, sem intermediários, para que entre ele e outro homem a conversa se dê em pé de igualdade.
É preciso, para que esse novo homem ressurja, a conversa franca e sem mecanismos de defesa. É preciso que se aprenda e apreenda que antes de tudo é o Humano que deve importar. Que esses acessórios institucionais e hierarquizados, todos eles, e só por isso, não atendem aos preceitos do Humano, na medida em que dão a eles, em prejuízo do Humano, demasiada importância.
Assenhorar-se do poder como arma de destruição, eis a decadência, eis o rompimento em que nos metemos quando cercamos o primeiro pedaço de terra e contratamos homens para nos proteger de outros homens. O sinal civilizatório, pautado sobre esses indícios, - tão logo se descobriu que a cerca separa e classifica uns perante outros -, não indicou o caminho do Éden. Então, é preciso desumanizar-se para que um novo Homem rompa com o projeto que explora e acaba com os recursos naturais. É preciso que os rios e mares voltem a ter caudalosas correntes e possibilitem que peixes ressurjam em cardumes. Pois, quando esse dia chegar, esperado por muitos e muitos homens, de diferentes origens e gostos pessoais, não restará nada mais além do próprio homem em comunhão com a natureza que lhe é fundamental.
Que esse homem saia à caça da presa para se alimentar, que plante e cuide da terra como parte de seu corpo. Que olhe as estrelas com olhos de apaixonada e não com ganância de domar o espaço para declarar guerras e promover a destruição.
E então, quando, esse novo homem olhar ao espelho e não chorar pelo que destruiu, mas, sorrir pelo que constrói, nesse dia, Deus estará morto. Assim já nos disse o filósofo. Assim, os mercadores da fé não se enriquecerão e o rebanho, quando descobrir que a morte de Deus fará surgir um novo Homem, saberá que virtudes, vícios, miséria e fartura, são situações provocadas por outros homens.
Quando ficar claro que o poder divino se constrói sobre a fé cega do rebanho, todos os percalços da vida, mesmo com desilusões, serão superados porque somente ao homem cabe a solução pelos problemas humanos. E, repetindo para que eles não prosperem, os mercadores da fé não enriquecerão.