A MAÇONARIA E A CONEXÃO ROSA-CRUZ

 
A antiga Maçonaria
 
     É comum á muitos maçons entrarem para os quadros da Maçonaria, freqüentar suas reuniões, ás vezes assumir todos os cargos em Loja, inclusive a venerança, galgar todos os graus do aprendizado maçônico e chegar ao fim dessa escalada com uma série de dúvidas sobre o que é, e o que significa, de fato, a Maçonaria.
     Isso é um fato, e do ponto de vista da própria história da Maçonaria se justifica que seja assim. Isso porque sua história, por si mesma é uma amálgama das diversas conformações que a sociedade tem assumido desde que ela se organizou em grupos, depois em povos, nações e estados. De todas as estruturas sociais, desde as mais remotas, até as mais modernas, a tradição maçônica tem emprestado temas e incorporado ideias, as quais, se não analisadas no seu devido contexto, e colocadas no seu exato sentido, acabam mais por confundir do que esclarecer.
     Historicamente, todo maçom sabe que a Ordem á qual ele pertence tem sua origem nas antigas corporações de ofício da Idade Média, especialmente aquelas que congregavam os pedreiros profissionais, construtores de igrejas e obras públicas. Esses profissionais, conforme informa Jean Palou em sua obra, eram homens livres, sábios formados no exercício de uma profissão que combinava a técnica operatória manual do ofício com o conhecimento da ciência das formas (geometria), e a mística do número (o pitagorismo).[1]
     E assim, somente eles, detentores de um conhecimento considerado sagrado, poderiam construir as grandes catedrais, de acordo com a idéia que se tinha desses monumentos, ou seja, que deveriam ser construídos de uma certa maneira, ao mesmo tempo mística (capaz de atrair os influxos da benevolência divina) e prática, que era a de servir a uma finalidade social, catalisando e aglutinando as forças da comunidade. Por isso Fulcanelli, ao se referir á catedral medieval, diz:  “Santuário da Tradição, da Ciência e da Arte, a catedral gótica não deve ser olhada como uma obra unicamente dedicada ao cristianismo, mas antes como uma vasta coordenação de idéias, de tendências, de fé populares, um todo perfeito ao qual nos podemos referir sem receio desde que se trate de penetrar o pensamento dos ancestrais, seja qual for o domínio: religioso, laico, filosófico ou social. Se há quem entre no edifício para assistir aos ofícios divinos, se há quem penetre nele acompanhando cortejos fúnebres ou os alegres cortejos das festas anunciadas pelo repicar dos sinos, também há quem se reúna dentro delas noutras circunstâncias. Realizam-se assembléias políticas sob a presidência do bispo; discute-se o preço do trigo ou do gado; os mercadores de pano discutem ai a cotação dos seus produtos; acorre-se a esse lugar para pedir reconforto, solicitar conselho, implorar perdão. E não há corporação que não faça benzer lá a obra prima do seu novo companheiro e que não se reúna uma vez por ano sob a proteção do santo padroeiro[2].
     Esses profissionais da construção civil, construtores de catedrais eram conhecidos como pedreiros-livres, ou na gíria da época, maçons, ou seja, o artesão do maço e cinzel, que registravam na pedra bruta os ideais ascéticos de uma sociedade que tinha no misticismo de suas tradições os principais alicerces de suas crenças.
     Mas um recenseamento das tradições, usos e costumes da velha Maçonaria operativa (se isso fosse possível), não seria suficiente para esclarecer como essas antigas corporações de oficio medievais se transformaram em clubes de cavalheiros, filósofos e agitadores políticos, que em fins do século XVI e pelos séculos seguintes iriam escrever, principalmente pela ação de seus membros, importantes capítulos da história da sociedade ocidental.
 


O legado da alquimia
 
     Poucos episódios da história universal foram tão decisivos em termos de mudança de conceitos e comportamentos quanto o movimento desencadeado pelo frade alemão Martinho Lutero, conhecido como Reforma Protestante. Esse movimento, não só gerou radicais mudanças no pensamento dos povos ocidentais, como também ensejou profundas modificações sociais e políticas na sociedade, liberando o pensamento humano para a criação de institutos e práticas que antes o pensamento religioso oficial reprimia e condenava.
     Uma dessas práticas, cujo apelo místico, e ao mesmo tempo romântico e utópico, causava forte atração aos espírito investigativo dos intelectuais medievais era a alquimia. Os trabalhos de René Alleau e Mircea Eliade demonstraram com muita propriedade que a alquimia, desde a mais remota antiguidade, sempre foi uma arte iniciática, associada aos mistérios da natureza.[3] Por isso era praticada pelos sacerdotes egípcios e hindus em seus templos, não só como forma operativa de produção de artefatos preciosos, mas também como disciplina do espírito para atingir o êxtase espiritual.  Mais tarde, os filósofos taoístas e gregos a elevaram á nível de disciplina acadêmica, organizando-lhe uma epistemologia própria, fazendo dela uma arte especulativa e empírica ao mesmo tempo. [4]
     No Egito essa arte era própria dos ourives, mestres na fabricação do “ouro falso”, como eram chamados os artefatos fabricados com metais comuns, submetidos a banhos dourados para imitar o ouro. Essa atividade era praticada sob a supervisão direta dos sacerdotes e tida como “arte sagrada”, comparável á arquitetura.       
    Durante muitos séculos os gregos tentaram descobrir o segredo de tais banhos, e foi no curso dessas tentativas que eles desenvolveram a forma operativa da alquimia, especulando primeiro e depois realizando experiências de laboratório, anotando e analisando os resultados. Com isso deram á essa prática, em princípio uma arte empírica, um caráter de ciência experimental.
    Trazida para a Europa pelos árabes, a alquimia se tornou uma ciência experimental, praticada por filósofos naturalistas, em sua maioria, monges confinados á Ordens religiosas e mosteiros, que no processo de fabricação dos produtos que necessitavam para suas vidas diárias, acabavam misturando a mística de suas crenças com as descobertas naturais que faziam em suas experiências práticas. Daí o caráter religioso-científico que a alquimia assumiu na Idade Média e a desconfiança que essa prática provocava nas autoridades religiosas.
 

A Reforma protestante
 
    Com a reforma religiosa desencadeada por Lutero, a alquimia foi uma das práticas que escapou das amarras que a Igreja medieval lhe colocava e ganhou adeptos entre os espíritos esclarecidos da época, provocando uma verdadeira febre espiritual nos meios culturais da sociedade ocidental. Em toda a Europa, não havia príncipe, nobre, autoridade eclesiástica ou mesmo cidadão abastado que não tivesse um alquimista entre os integrantes do seu mecenato. Para todos esses cidadãos, financiar os trabalhos de um “mestre” nas artes herméticas, era a esperança de obter riqueza (transformando metais comuns em metais nobres) ou de realizar outros sonhos quiméricos como descobrir o elixir da longa vida, ou remédios e poções milagrosas capaz de curar doenças, ferimentos de guerra, ou ainda outros produtos que pudessem realizar lucro para seus financiadores.
     Para muitos praticantes e financiadores de alquimistas, porém, era o apelo espiritual que a arte de Hermes continha que atraia a sua atenção para essa prática. Era um apelo que tinha muito a ver com as ideias e as esperanças trazidas pela Reforma Protestante, de um mundo melhor, livre da dogmática limitadora da Igreja de Roma. E foi na esteira desse pensamento liberalizante que nasceu o movimento que ficou conhecido como Rosa- Cruz.
 

A conexão Rosa-Cruz
 
     Uma das melhores explicações dos motivos de alquimia ter se casado tão bem com as expectativas dos intelectuais reformistas nos foi dada pelo médico e filósofo Carl Gustav Jung. Um de seus mais importantes trabalhos tem por tema exatamente a alquimia. Nessa obra, o famoso psicanalista suíço desenvolve a idéia dos arquétipos, fazendo uma ponte entre o delírio alquímico e as ansiedades do inconsciente humano para alcançar a realização de seus sonhos. Para Jung, a alquimia seria uma técnica que procura desenvolver, operativamente, o mesmo processo que o inconsciente humano se utiliza para promover o desenvolvimento psicológico do homem. Com esse trabalho ele estabeleceu um elo entre o pensamento mágico e a psicologia, mostrando que existe uma clara interação entre esses dois domínios cerebrais, que só podem ser entendidos se estudados em conjunto.
    Dessa forma, segundo Jung, a arte dos “filhos de Hermes”, como tais eram chamados os alquimistas, provinha de um conjunto de conceitos universais, compartilhados pelo Inconsciente Coletivo da humanidade desde tempos imemoriais, pois se fundamentava em mitos, símbolos, alegorias e sensibilidades que sempre existiram no psiquismo da espécie humana, e que se revelava em sonhos, intuições, crenças, superstições e folclores, muitas vezes inexplicáveis pelo crivo da razão, mas muito fortes nas bases estruturais do nosso espírito.
     A alquimia era a arte das transmutações. Através da manipulação de certo tipo de matéria prima, os alquimistas pensavam poder descobrir o segredo que permitia á natureza realizar a transformação física dos metais. Daí a alquimia ficar conhecida como a técnica que permitia a transmutação de metais comuns, como o estanho e o chumbo, em ouro. Ao mesmo tempo, o operador alquímico, ao penetrar na intimidade da natureza e desvelar os seus segredos, ia também adquirindo uma consciência superior que lhe permitia uma elevação espiritual ao nível de uma experiência transcendental. Foi essa ideia, trabalhada em forma de crença, que os fundadores do movimento Rosa-Cruz divulgaram pelo mundo intelectual da época, causando uma grande ebulição espiritual, pois essa era exatamente a esperança que acalentava a alma da maioria das pessoas que sonhavam com utopias, e viam nas novas ideias que o Renascimento cultural e a Reforma religiosa haviam trazido.
 
A Maçonaria e a Rosa-Cruz
 
     A fraternidade dos Irmãos da Rosa-Cruz foi um movimento formado por um grupo de pensadores herméticos que em fins do século XVI e início do século XVII causaram uma grande comoção nas estruturas do pensamento ocidental com suas construções especulativas utópicas, fundamentadas no seu saber alquímico.[5] Serge Hutin, escrevendo sobre esses místicos filósofos da utopia alquímica , diz que “eles constituem a coletividade dos seres elevados ao estado superior á humanidade vulgar, possuindo dessa forma os mesmos caracteres interiores que lhes permitem reconhecer-se entre si”.[6]           
     É, portanto, na esteira do pensamento Rosa-Cruz que podemos encontrar as sementes da Maçonaria moderna. Ambas são fruto da Reforma religiosa, pois saíram da mesma árvore que procurava integrar a espiritualidade do labor humano na sua luta para ganhar a vida com a ciência que ele adquire na interação do seu pensamento com a natureza que lhe fornece os meios para esse resultado.  
     A idéia de uma sociedade internacional, circunscrita a alguns homens puros e de bons costumes, ligados pelo amor á virtude e a beleza, transformados por uma prática iniciática, era a proposta dos Rosa-Cruzes, como se depreende dos textos de seus dois mais importantes manifestos, Ecos da Fraternidade e Confessio Fraternitatis. [7]
     Essa é, igualmente, a pregação de todos os doutrinadores maçons. A ciência maçônica, tal como a alquimia, também é a ciência das transmutações. Ela permite a transformação do próprio espírito do iniciado no sentido de se atingir uma etapa mais desenvolvida, seja no terreno da moralidade exotérica, seja no domínio da plenitude espiritual, esotérica. Essa transmutação, a nível filosófico, é a mesma experimentada pelo alquimista, na sua busca pela pedra filosofal, ou pelo cientista moderno na sua procura por uma explicação racional dos fenômenos da natureza. Como dizem Pawels e Bergier, “estamos numa época em que a ciência, no seu termo máximo, atinge o universo espiritual e transforma o espírito do próprio observador, situando-o num nível diferente do da inteligência cientifica, tornada insuficiente. Aquilo que acontece nos corações dos nossos atomistas é comparável á experiência descrita pelos textos alquímicos e pela tradição rosa-cruz.[8]
      Isso é o que os nossos antigos irmãos, que transformaram a Maçonaria dos pedreiros medievais em um movimento filosófico-ativista, estavam esperando que acontecesse no espírito do maçom que realmente compreendesse o valor e a finalidade da sua Arte. Ou seja, se para os alquimistas o corolário da sua obra era a pedra filosofal, para o maçom, a pedra filosofal seria o seu próprio espírito aperfeiçoado e pronto para realizar uma revolução social que transformasse o mundo imperfeito da época (metal impuro) em um mundo perfeito (a utopia social). Em outras palavras, uma verdadeira alquimia social.

 

A realidade e o sonho
 
     Esse era o sonho dos nossos antigos irmãos que deram corpo e vida á Maçonaria moderna. Porém, o apelo romântico e esotérico que tanto atraia os espíritos dos nossos antigos irmãos para o exercício de uma alquimia social desapareceu com as exigências do pensamento moderno, que exige mais ação prática no terreno da política, da economia, da sociologia e das ciências que garantem o nosso viver diário. Por isso a arte do maçom, antes umbilicalmente ligada a ideia utópica que ligava a ascese espiritual do antigo construtor de catedrais com a esperança mística do operador alquímico, transformou-se em uma cadeia difusa (e confusa) de ensinamentos temáticos que buscam fazer do maçom um homem preparado para as exigências da vida moderna. O que nem sempre ( e diríamos raramente) é conseguido.
     Assim é que encontraremos nos modernos rituais maçônicos uma profusão de alusões a padrões culturais antigos e modernos, encadeados, ás vezes, sem método ou direcionamento, mas que sempre podem ser recenseados em momentos importantes da história da humanidade. São resquícios de práticas e ensinamentos que deixaram marcas profundas na psique humana, e que constituem, como dizia Jung, um arsenal de arquétipos, que afinal, são a base do que chamamos de cultura humana. Tais são os conceitos de justiça, fraternidade, igualdade, liberdade, virtude, civismo, filantropia, compromisso e dignidade, que tanto aparecem nas cartilhas que veiculam o ensinamento maçônico. Padrões esses de interpretação variável ao longo dos tempos, e que são valorados segundo as necessidades e a vontade de quem detém o poder. Uma das funções da Maçonaria seria, portanto, funcionar como um filtro desses valores, conservando o seu padrão de pureza e virtude, o que, infelizmente, nem sempre consegue. Dessa forma, o sonho perde-se na realidade da vida, e o apelo emocional de uma prática que já encantou os espíritos mais nobres acaba se tornando uma tradição vazia de sentido que só continua atraindo pelos ecos de um passado glorioso.
      Historicamente, portanto, a Maçonaria hoje, nada mais é do que uma emulação do antigo pensamento Rosa-Cruz, adaptado ás exigências modernas e despido do romantismo e do apelo místico que lhe davam os nossos precursores. Embora alguns maçons ainda estejam imbuídos do velho espírito dos Irmãos da Rosa-Cruz, que acreditavam poder transformar o mundo pela luz dos seus espíritos e pelo poder dos seus conhecimentos, é de se reconhecer que essa virtude, hoje, é dificilmente encontrável em nossas Lojas.
    Mas tudo que um dia existiu pode ser recuperado. Como dizem Pawels e Bergier, quem sabe, um dia chegue um tempo em que os tempos se reencontrem.[9]  
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[1] Maçonaria Simbólica e Iniciática, pg. 2
[2] Fulcanelli- O Mistério das Catedrais, pg. 50.
[3] Mircéa Eliade - Ferreiros e Alquimistas – Ed. Flammarion,1977
[4] Bernard.Rogers- Descobrindo a Alquimia pg. 28
[5] Vide, a esse respeito, Giordano Bruno e a Tradição Iniciática e O Iluminismo Rosa-Cruz, de Frances Yates, publicados, ambos pela Ed. Cultrix. Na imagem, Francis Bacon, filósofo e alquimista inglês, (1561 1626) que é tido como o fundador da ciência moderna. Sua filosofia pregava o exercício da ciência em favor do progresso da humanidade. Sua principal obra filosófica, “Novum Organumé considerada uma das principais influências para o movimento intelectual que resultou na Maçonaria moderna. Foi participante ativo do movimento Rosa-Cruz.
[6] Serge Hutin . História da Alquimia. São Paulo, Cultrix, 1987.
[7] Bernard Gorceix- A Bíblia dos Rosa-Cruzes, Ed. Pensamento, 1970
[8] O Despertar do Mágicos, pg. 53.
[9] Idem -O Despertar dos Mágicos- pg 106