REFLEXOS

Fui criada aprendendo que a morte é a libertação da nossa Alma Imortal, prisioneira desse corpo corruptível, exilada neste Vale de Lágrimas e Sombras, que retornará livre e gloriosa ao seu lugar de origem: O TODO PODEROSO e INFINITO!

Com a morte, me ensinaram, deixaríamos de sofrer qualquer tipo de dor. Então, por que cargas d’água, lá, no mais íntimo do meu coração, uma dor se esconde e machuca como um espinho sob a mucosa do lábio, quando penso na transição de seres a quem amo muito e/ou nem tanto? Mesmo quando quem parte nunca demonstrou ser capaz de amar e sorrir... que eu percebesse, sinto como se uma parcela de mim fosse com ela(e)... me sinto mutilada, sempre!

Fui treinada desde criança para encarar, sem medo, a Potens Regina! Esse treinamento teve início na casa Materna (com M maísculo mesmo por que nunca vi meu pai), ao lado de minha Avó – Dona Agueda, ou vovó Iaiá. Ela recebia os bebês (era parteira), foi quem me recebeu no colo quando cheguei AQUI! Ao lado de minha Mãe, zeladora de enfermos e moribundos, acompanhando-os durante e após a agonia. Cuidando deles, banhando-os, perfumando-os, vestindo-os, enfeitando-os e rezando “incelenças”, recomendando-os à Virgem Maria, aos Anjos e Santos, até o sepultamento.

Minha Mãe sempre dizia que preferia me ver dentro de um caixão, do que sofrendo vida afora. Eu, querendo saber tudo, argumentava:

____ Mas Mina (era assim que eu a chamava), se você me trancar no caixão e me enterrar eu vou morrer sem fôlego e vou virar carniça feito o Jasmim (meu primeiro cordeirinho branco que morreu picado por uma serpente). Os cravos brancos e os bogaris vão murchar e... vou virar um monte de osso branco, seco e fedido!

Ela retrucava, convicta de que eu aceitaria seu argumento:

_____ Você vai é pros pés de Nossa Senhora das Graças, ser anjinho com asa e tudo!

Eu sabia que questioná-la quanto a veracidade de suas palavras, era certeza de tomar uma surra de “criar bicho no lombo”. Daí, esticava para ela os olhos de “peixe morto”, como dizia minha avó, e não falava mais nada. Entretanto não conseguia esquecer de que quando demoravam a enterrar os “anjinhos” eles começavam a cheirar mal, da mesma forma que os meus animaizinhos que morriam e que eu arrancava das garras dos urubus, na base da vassourada, e enterrava, apesar dos protestos de minha mãe.

____ Mas anjinho fede e vira carniça Iaiá? Nossa senhora vai aguentar o fedor? Tem de encher a casa dela com muita açucena, bogari e rosa branca, né não?

Minha avó tirava o cigarro, de palha, da boca, afagava minha cabeleira crespa e comprida e ensaiava um sorriso lindo, estreitando ainda mais os riscos de urucum que escondiam a safira de suas pupilas serenas.

____ Se aperrei não filhote de suçuarana, anjo não tem garra de navalha presa no fundo do olho, feito você não! Deixe sua mãe sonhar com anjinho de asa e arinho de luz na cabeça... deixa ela! Virar anjo... hummmm... pois sim... deixa está! Vá brincar com seus bichinhos, vá... pense nisso mais não!

As mãos em concha, na boca, chamava meu cãozinho negro que nem azeviche.

____ Tubarão. Tubarão. Tubarão.

E lá vinha ele correndo, alegre, abanando a cauda. E lá ia eu brincar “sozinha”. Havia todo um ritual. Conversava com “Tubarão” sobre a representação que íamos fazer. Ele, o “Tubarão” era o cavalo que levaria a princesa de Mont’Azul em passeata. Ele olhava para mim e seus olhos, de redemoinhos, sorriam. Então eu colocava sobre o seu lombo uma pequena cangalha que meu tio Leone fizera com palhas de coco catolé. Montava nele minha bonequinha de pano, presente de minha tia Du Santiago, juntava um bando de bichinhos e saia pelo “terreiro”, adentrava pelo reservo do gado, em procissão, cantando a plenos pulmões, desafinada...

____ “Do céu desceu a chuva, a gota entrou no chão. A vinha deu a uva, a espiga deu o grão... de todo canto vinde correi, foi posta a mesa do nosso rei! O homem com carinho curvou a rude mão, da uva fez o vinho, do trigo fez o pão. De todo canto vinde correi...”

Quando cansava, para sob a sombra de um umbuzeiro ou mulungu e findava “dormindo”, rodeada pelos meus amiguinhos e pelos outros animais do sitio. Não foram raras as vezes que senti minha avó me erguer nos braços e agradecer aos animais por tomarem, conta de mim.

Quase sempre eu estava ardendo em febre. Uma febre que deixava bolhas na minha pele como se houvesse sido queimada com fogo. Quando isso acontecia, minha mãe retomava a velha frase.

____ Se é de ficar sofrendo era melhor Nossa Senhora levar de vez!

Minha avó resmungava entre os dentes.

____ Vai sonhando... vai sonhando... só não esqueça que eu tô aqui e que ela é mais minha do que sua!

Adda nari Sussuarana
Enviado por Adda nari Sussuarana em 27/12/2016
Reeditado em 28/12/2016
Código do texto: T5864143
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