Deus e o universo: conversa com um astrônomo
– Quem é “Deus” para você?
– A questão está incorreta.
– Como assim? – João ficou surpreso.
– A questão está incorreta porque há uma incompatibilidade entre quem ou o quê seja Deus e o atual alcance do conhecimento dos seres humanos. Então, o correto é perguntar: o quê significa Deus? Além disso, outra coisa que as pessoas confundem: não parece correto alguém questionar-se sobre qual seria o sentido da vida. Por necessidade, devemos fazer um caminho distinto, mas que nos leve a esta questão. Assim a questão se inverteria e passaria a ser a seguinte: nossa existência é boa a ponto de justificarmos o fato de estarmos existindo? Se entendermos que nossa existência é boa o suficiente a ponto de não darmos fim a ela, mas sempre buscarmos fontes para continuarmos mantendo nossa vida, então a resposta já está dada: o fato de estarmos existindo, por si próprio, já é o suficiente para justificarmos o sentido de nossas vidas.
João ficou bastante confuso. Nunca tinha pensado deste ponto de vista. Parecia correto compreendermos a possibilidade ou impossibilidade de um Deus a partir de seus significados para as pessoas. As religiões são dessa forma - todas que ele conhecia. Se fosse o caso poderíamos afirma que temos a possibilidade de encontrar Deus dentro de nossa própria individualidade, para isso bastaria sondarmos seus significados. Não precisaríamos ir para uma igreja, nem ler a bíblia, nem escutar algum religioso ou pregação religiosa para compreendermos que Deus tenha seus próprios significados e de alguma forma o conheceríamos sem influências externas.
Tudo indicava que João tinha cometido certos exageros nestas observações. Ele percebendo isso refez a pergunta:
– “Deus” tem algum significado para os métodos de estudo da astronomia?
– Todos nós temos uma ideia do que seja Deus. Isso é tão intenso que divide as religiões de tal forma que cada uma acaba atribuindo um significado diferente para o conceito de Deus. Assim, cada religião diferente pinta um Deus diferente. Por isso, todo ser humano tem o direito de entender o conceito de uma divindade conforme sua própria visão de mundo. Os significados do que seja Deus são individualizados porque, embora possa haver alguns padrões de comportamentos, cada indivíduo tem sua própria visão de mundo.
O método de estudo adotado pelos astrônomos é o método científico. Vou te explicar: quando Albert Einstein publicou a teoria geral da relatividade a comunidade científica achou surpreendente uma nova teoria que revia muitos aspectos da teoria mais aceita que era a da gravidade de Isaac Newton. Mas, para que fosse aceita era preciso que se observasse um eclipse para que fosse aplicada, fato este que poderia ser comprovada ou negada. Assim o fizeram e constataram que a gravidade exercia uma deformidade no tecido espaço tempo a ponto de ao ofuscarmos a luz do sol poderíamos ver que a luz de estrelas ou galáxias atrás dele faz uma curva ao passar pelo seu campo gravitacional. Foi preciso uma primeira tese ou hipótese, para depois a comprovarmos. Resumidamente este é o método científico.
Qual o significado de Deus para este método? Eu poderia dizer que enquanto a ciência vai em busca de comprovações ou negações de suas afirmações, as religiões influenciam as pessoas a aceitarem afirmações sem comprovações. O movimento é inverso. A única relação entre Deus e o método utilizado por alguns astrônomos ocorre no campo da imaginação. Muitas vezes o desenvolvimento da ciência permite esta exploração de nossa faculdade de imaginar, de fantasiar. Deus é cada vez mais forte, quanto mais forte for a capacidade de imaginação de uma pessoa. Se não fosse esta capacidade de imaginação certamente nem Newton, nem Einstein chegariam tão longe.
– “Deus” é um conceito humano?
– Sim. Não quero dizer que os outros animais da natureza também não sejam dotados desta faculdade (de imaginar). Acontece que o ser humano é uma espécie que não só produz conhecimentos, mas que também o organiza. O que muitas vezes não pode explicar, por causa de suas incertezas e de sua imaginação ele busca respostas que estão além de seus conhecimentos.
– Então “Deus” não pode ser conhecido?
– Se Deus existe ou existisse ele certamente não seria compreensível para a mente humana. Assim como o universo também não é completamente conhecido. É incompreensível a ideia de que um ser infinito poderia ser alcançado por um extremamente finito e perecível.
– Então isso não condena as religiões e as ciências ao fracasso?
– De forma alguma. As religiões já provaram seus fracassos. Basta olharmos para a história da civilização. Do contrário, se não fosse o desenvolvimento da ciência, nossa civilização estaria condenada a um primitivismo permanente e trágico. Ao fazermos o percurso da medicina para o ponto mais distante do espaço entendemos que muito ainda há para se conhecer e isso acaba nos motivando como seres humanos que busca entender o universo.
– Poderíamos resumir o conceito de “Deus” e do universo?
– Poderíamos. Eu diria que: Deus é um conceito capaz de produzir diversos significados para as pessoas, sobretudo, que acreditam. O universo é uma imensidade de tempo e espaço marcada principalmente pela confluência entre matéria e energias.
– Como surgiu o universo?
– Eu poderia utilizar a imaginação e te dar uma explicação extremamente criativa e, se você fosse muito ingênuo, eu poderia te fazer acreditar em minha explicação. Acontece que sempre falo de acordo com aquilo que posso constatar pela minha observação e entendimento. Assim, eu diria que o universo surgiu de um provável choque muito intenso de energias distintas, muitas se repelindo. Tudo que você observar tem energia. Se você, por exemplo, fizer uma caixa e fechá-la sem nada dentro e disser: não existe nada dentro desta caixa seria uma definição falha, pois se utilizarmos alguns aparelhos tecnológicos já existentes poderemos observa que onde acreditava-se que não existia alguma coisa, na verdade há energia, portanto não existe o nada. Por isso Deus não criou o universo do nada, como afirma o criacionismo. E se tivesse criado alguma coisa precisaria ter a sua disposição uma imensidade de energias para tornar esta coisa possível. Se isso fosse o caso, ele não teria criado algo do nada, mas de energias já existentes.
– Quando surgiu o universo?
– Cronologicamente você pode perceber o seguinte: através de dados matemáticos e de experimentos envolvendo diversos campos de estudos o universo surgiu a cerca de 13,5 bilhões de anos. Nosso planeta e nosso sistema solar surgiram a 4,5 bilhões de anos. As formas de vida mais antiga eram microorganismos e surgiram a aproximadamente 3,4 bilhões de anos. A maior parte da diversidade de vida surgiu a cerca de 540 milhões de anos. E a espécie humana surgiu a apenas 200 mil anos. Isso faz da espécie humana uma espécie relativamente nova sobre a terra.
– Isso quer dizer que haveria a possibilidade e existir vida em outro planeta?
– Assim como não podemos afirmar que exista vida em outro planeta, igualmente não podemos negar tal afirmação. Para você ter uma ideia, durante muitos anos acreditou-se que a terra era o centro do universo, depois que só existiam algumas estrelas, alguns planetas, depois descobrimos, sem a imposição dos fundamentos religiosos, que isso tudo estava errado, pois na verdade estamos localizados em uma galáxia e que existem outras galáxias. Esta última descoberta só em 1923 – muito recente. Depois disso descobrimos que não só existem outras galáxias, mas números incalculáveis delas, com números incalculáveis de estrelas em cada uma delas, que ao redor destas estrelas há, também, incalculáveis números de planetas. Não só descobrimos isso, mas também que o universo está em expansão e as galáxias estão ficando cada vez mais distantes umas das outras.
Para você ter uma noção da grandeza, nosso sistema solar está localizado na extremidade de um dos braços espirais de nossa galáxia, a via-láctea. A distância entre nós e o centro (núcleo) dela é de aproximadamente 30 mil anos luz. São necessários 200 a 250 milhões de anos para o sol completar uma órbita ao redor do núcleo da via-láctea. A distância entre nossa galáxia e a mais próxima – a M-31 – é de aproximadamente 2 milhões de anos luz. Um ano luz equivale a 9,5 trilhões de quilômetros. A nossa galáxia tem um diâmetro de 100 mil anos luz e aproximadamente 200 bilhões de estrelas. Além disso, ao redor de nossa galáxia, acima e abaixo do disco, numa aureola, existem aproximadamente 200 aglomerados que podem conter até 1 milhão de estrelas cada.
– Isso tudo é impressionante. Mas como posso acreditar nestas observações?
– Não são afirmações sem provas. Isso quer dizer que você próprio pode constatar com seus próprio olhos. Para isso basta você olhar o céu em uma noite limpa e escura, sem a luz da lua e sem muita interferência da luz da cidade. Você poderá ver de 2 mil a 3 três mil estrelas. Em momentos e tempos específicos você poderá até mesmo ver a grande maioria dos planetas do nosso sistema solar. Se isso não for o bastante, você pode ir em algum centro astronômico ou adquirir um binóculo ou uma telescópio com lentes adequadas e ver com mais detalhes até mesmo galáxias, luas, cometas, meteoros, etc. Ainda assim, se isso não for o bastante você pode se especializar e fazer seus próprios cálculos matemáticos ou estudar algum aspecto do universo como super-novas, buracos negros, etc. Quando Galileu aperfeiçoou o telescópio e constatou a existência de algumas luas em júpiter, chamou outras pessoas para confirmarem suas descobertas. O que aconteceu? Muitas pessoas não acreditaram no que elas próprias estavam vendo.
– Parece que você está certo. Anteriormente você estava falando sobre a distância em anos luz... qual é a velocidade da luz?
– A velocidade da luz é 300 mil quilômetros por segundo. Isso quer dizer que se fossemos percorrer a distância da extremidade de nossa galáxia à extremidade da galáxia mais próxima de nós voando em uma nave espacial a uma velocidade de 300 mil quilômetros por segundo demoraríamos 2 milhões de anos para chegarmos lá. A esta mesma velocidade rumo ao centro de nossa galáxia levaríamos aproximadamente 30 mil anos para chegarmos. Atualmente é impossível alcançarmos essa velocidade. Percebeu a grandeza do universo? Como o número de galáxias é incalculável, pela quantidade delas que existem, isso faz com que a probabilidade de que haja vida em outro planeta seja muito grande.
– Como ainda não foi descoberto vida em outro planeta, podemos dizer que estamos em um lugar privilegiado e incomum no universo?
– Se um lugar comum for zonas habitáveis – o que não é incomum – então digo que estamos num lugar comum. Mas, se eu entender lugar incomum como lugares extremamente difíceis como buracos negros e quasares então para mim estes lugares difíceis é que devem ser encarados como incomum no universo.
João agradeceu pelas informações e saiu ainda mais confuso. À medida que caminhou na calçada esta confusão foi dissipando-se, pois agora sua reflexão estava mais clara e mais profunda. Primeiro pensou na possibilidade de que “Deus” fosse o universo e não uma divindade específica e reducionista. Num segundo momento, pensou na possibilidade de “Deus” ser uma energia inexplicável que equilibra tudo que existe no universo. Ainda com uma terceira vertente, pensou na possibilidade de existirem muitos outros universos e um artífice único por trás de todos eles. Um pensamento acessório ofuscou sua mente ao levá-lo para um caminho nada confortável. É que num lampejo de dúvida pensou na hipótese de que o universo tenha sido obra do acaso, surgido daquele ponto quântico e que o ser humano, sendo apenas uma espécie entre inúmeras outras espécies de seres vivos, estava só no universo, jogados à sua própria sorte.
Com este último pensamento, João entendeu que a ausência de uma ideia de divindade não diminui em nada a responsabilidade dos seres humanos. Nem que esta ausência seja marcada pelo vazio sem sentido e sem perspectivas. O universo continua o mesmo tanto para os que têm fé em uma divindade, quanto para os que não têm.
(Fragmento do livro "Entre dois mundos: a saga de João para compreender a possibilidade de um (não) Deus".