Ciência empírica X ciência semeada (e sobre"meras histórias")
Costuma-se distinguir entre dois tipos de ciência, as empíricas e as formais, a lógica e a matemática, conhecimentos que não se baseiam no mundo real, mas correspondem a construções baseadas exclusivamente em regras e na coerência entre elas.
Gostaria de contrapor um outro tipo a essas, as “ciências semeadas”, aquelas construídas, ou cultivadas a partir de sementes e que se contrapõem às empíricas. Ciências empíricas constituem-se em conjuntos de conhecimentos usualmente conexos mas desarticulados, cujas afirmações exigem testes para cada uma das asserções propostas, podendo cada teste, refutar asserções independentes sem prejuízos para a credibilidade de outras afirmações.
Em contraste, as ciências semeadas, a exemplo das ciências formais, que, aliás, lhes auxiliam a elaboração, padecerão da refutação em bloco, total, caso um teste refute alguma de suas afirmações. A diferença se dá em decorrência da estruturação das teorias semeadas, cujas afirmações são inferidas lógica, ou matematicamente, de outras, construindo um campo, de fato, estruturado, composto por sentenças conectadas umas às outras, como peças de lego, o brinquedo de armar. Estando encaixadas umas às outra, a refutação de uma de suas partes afetará todo o bloco conectado a ela.
Contrariamente, nas ciências empíricas tradicionais, as afirmações encontram-se como se dispostas lado a lado, mas sem encaixe entre as peças, de maneira que as refutações de quaisquer partes não contaminam o sistema, podendo-se, pura e simplesmente, substituir a suposição refutada por outra sem qualquer resultado significativo no “sistema” que, de fato, não existe, ou melhor, não possui estruturação. Não há, nessas ciências, uma conexão firme entre as partes, como no lego, havendo apenas contiguidade entre elas.
Note que Karl Popper tratava apenas das ciências semeadas (sem dar esse nome e sem fazer essa distinção), enquanto Thomas Kuhn, que parecia se lhe contrapor, tratava, quase sempre, das outras, cujas construções se assemelham ao que foi descrito como “ciência normal”. Tanto a elaboração, quanto o teste das ciências semeadas resultam em “ciência revolucionária” expressão que Popper considerava pleonástica devido ao escopo resultante de sua concepção de ciência.
Histórias e meras histórias
As ciências semeadas correspondem a imensas tramas que se desenvolvem a partir de sementes, como árvores ou redes de raízes. Uma, ou muito poucas definições centrais, acabam por gerar um sistema, eventualmente, extremamente complexo, seguindo um desenvolvimento análogo ao de uma semente que se transforma em árvore. Ferramentas matemáticas podem ser usadas para isso, o que costuma atribuir enorme credibilidade ao desenvolvimento teórico resultante. O uso da lógica também permite a construção dos diversos ramos que compõem a teoria.
Tanto a lógica, quanto a matemática têm, nessa construção, o mesmo papel: o de conectar os diversos ramos compondo uma entidade estruturada. O resultado da aplicação de desenvolvimentos lógicos a um determinado postulado, uma semente, será um ramo de conhecimento estruturado, que terá a forma de uma história, ou seja, um discurso estruturado relatando determinado conjunto de relações ou fatos.
Mas, qual a diferença entre as histórias criadas por um cientista e as inventadas por um ficcionistas? Podemos dizer que umas são histórias, enquanto as outras são meras histórias. Mas, o que distingue umas de outras? O que permite que umas delas postulem credibilidade, enquanto outras devam ficar resignadas ao status de sonhos, ou alegorias inverossímeis?
O que torna um argumento qualquer mais que uma mera história?
A diferença entre um bom argumento e uma mera história é que essas últimas podem ser substituídas por muitas outras tão críveis, ou incríveis, quanto elas mesmas. Quando um ficcionista inventa uma história de bruxas, por exemplo, ele se permite propor enredos tresloucados, fantasiosos, conectados eventualmente apenas por elos mágicos, injustificáveis por argumentos racionais.
Uma boa história de detetive, por outro lado, pressupõe uma semente fictícia, e um desenvolvimento racional coerente decorrente dela, resultando em uma composição análoga a uma árvore que brotasse de semente cujos ramos, necessariamente, apresentam-se sempre conectados coerentemente, uns aos outros. Permite-se ao ficcionista propor situações surpreendentes compondo as “condições iniciais” que ensejarão o enredo que o solucione. Tal solução, no entanto, deve, em nome da boa ficção, no caso de histórias de detetive, em especial, manter a coerência tecendo uma trama conectada harmoniosamente; desconexões, ou remendos na trama revelarão, de imediato, a inverossimilhança do enredo, a implausibilidade do argumento.
Histórias de bruxas permitem soluções mágicas, inverossímeis, que poderiam ser substituídas por inúmeras outras, igualmente incríveis, sem que as diversas substituições introduzissem desconexões em um sistema inexistente, nesse caso. Por outro lado, a tentativa de substituir a solução de uma boa história de detetive por outra resultará, quase certamente, em um remendo desconexo, cujas costuras não poderão ser ocultadas. Pressupõe-se que boas histórias de detetives tenham uma solução coerente e única, “a solução” do caso, não meras propostas igualmente plausíveis. Ao finalizar a leitura de uma boa história de detetives o leitor deve sentir ter elucidado “a trama” que satisfaz o enigma proposto no início da história, não uma solução qualquer, substituível por outras.
As ciências semeadas, tão similares às histórias de detetives, conectam lógica, ou matematicamente, uma solução a um enigma. Boas soluções devem ser coesas, não podem conter “partes móveis” que possam ser trocadas por outras. Nem a teoria pode ser trocada por outra, é a única que se encaixa nos fatos.
O mito da observação
A palavra “ciência” aparece, frequentemente, associada a “observação”, evocando o mito de que a ciência decorre da observação. As sementes das teorias mais bem construídas, contudo, pouco devem a observações: a primeira lei de Newton, por exemplo, parece até negá-las ao asseverar que “na ausência de forças externas, um corpo permanece em sua condição de repouso ou de movimento retilíneo e uniforme”, fato nunca observado. Também não existiam muitas observações capazes de sugerir a relatividade, ou a mecânica quântica, na época de sua criação.
Tenho apenas uma ideia extremamente vaga da maneira como se desenvolvem as teorias semeadas. A observação, no entanto, ao contrário da crença comum, parece ter um papel insignificante nessa geração. Suspeito que as teorias semeadas se desenvolvam como joguinhos na mente de seus criadores, brincadeiras interessantes decorrentes de sementes, ou postulados, que acabam por se encaixar em fatos. A exemplo dos desenvolvimentos matemáticos, em geral, o apelo à observação parece irrelevante para sua criação, tendo um papel significativo apenas a posteriori.
Ciência e ficção
Ao contrário do mito moderno, a ciência tem um parentesco muito maior com a ficção do que parece aceitável. Apesar do incômodo causado pela inconveniência de tal ideia, a construção de uma teoria se assemelha muito mais à elaboração de uma obra de arte que a um manual de uso de um artefato.
Teorias científicas são delírios (fato bastante óbvio, confira), mas não quaisquer tipos de delírios. Correspondem a sonhos loucos que se encaixam aos fatos (esse comentário parece completamente disparatado, mas, confira!) e não a uma loucura desvairada e solta. São ficções encaixadas, assim como as histórias de detetives, que não permitem uma solução qualquer, disparatada, mas que exigem a solução adequada, aquela que se molda às condições de contorno. (Vem-me à mente a imagem de raízes, oriundas de uma semente original, assumindo a forma de um vaso). A diferença entre ciência e ficção não decorre da fantasia, extravagância ou inventividade dessas produções, longe disso; a ousadia dos grandes físicos teria causado rubores em quase todos os ficcionistas de suas épocas. A ciência corresponde à ficção de tipo especial que se encaixa nos fatos reais, tornando-a assim, não apenas uma mera história, mas a história necessária à explicação dos fenômenos tratados.
Tais invenções, as teorias científicas, são limitadas, entre outras coisas, pelo vocabulário da época, exigindo, frequentemente, tanto a construção de novos conceitos, quanto a reelaboração de antigos. A invenção de novos conceitos permitirá, no futuro, uma abordagem dos fatos mais fecunda que a atual, resultando na substituição das teorias contemporâneas por outras melhores.
Assim, as ciências semeadas são constituídas por histórias bem construídas, estruturadas e análogas a histórias de detetives; são histórias necessárias, diferentes das meras histórias que constituem a ficção ordinária, aquelas que podem ser substituídas por outras, conforme os caprichos do autor.