“ Na verdade, duvido que haja para o ser pensante momento mais decisivo do que aquele em que, caindo-lhe a venda dos olhos, ele descobre que não é um elemento perdido nas solitudes cósmicas, mas que é uma vontade de viver universal que nele converge e se hominiza.”
Teilhard de Chardin
Teilhard de Chardin
Houve um tempo na existência do universo, em que as estruturas da terra e do céu eram ligadas entre si de forma tal que não se podia distinguir umas das outras. Foi uma época em que homens e deuses partilhavam dos mesmos atributos, cada um cônscio de suas funções e responsabilidades para com a manutenção da ordem e do equilíbrio no cosmo.
Naquele tempo, tudo estava em tudo, não havia distinções de espécie alguma, o que existia no céu era igual ao havia na terra, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o dentro e o fora eram indistinguíveis, o sagrado e o profano, o bem e o mal, a luz e as trevas, todos os contrários eram apenas verso e reverso de uma moeda única.
Num universo assim composto, a dialética universal aparecia apenas como uma forma pela qual a Energia dos Princípios podia agir para a construção do real existente, unificando pela ação dos contrários a força interativa que dá vida ao cosmo. A idéia inscrita no vocábulo universo queria dizer exatamente o que o termo indica, ou seja, o único, o indivisível, a versão singular e original do pensamento divino, manifestado como realidade em multifacetadas formas, infinitas identidades, mas todas ligadas, indistintamente, ao seu Principio Criador.
Os livros sagrados das diversas religiões e as tradições de todos os povos da terra evocam essa época mágica em que os deuses falavam com os homens face a face. Do Extremo Oriente nos vem a lenda dos Senhores de Dzyan, iniciadores da civilização humana, e dos gigantes de cabeça redonda, detentores de outro saber, que viveram na terra antes do dilúvio. Restos dessa civilização ainda podem ser encontrados nas crônicas bíblicas e nas lendas e tradições dos hindus, dos tibetanos, dos incas e dos astecas, e em muitas outras memórias, nas mais diferentes culturas que existem e já existiram sobre a face da terra.
A Bíblia também nos fala desse tempo em que os homens viviam centenas de anos, tinham estaturas imensas e suas filhas se juntavam aos anjos para gerar guerreiros audazes; evoca também a lembrança do paraíso terrestre, onde a criação celeste e humana convivia sob os olhares de deuses benignos e protetores. Do Egito á Mesopotâmia, da Índia á China, dos indígenas da Polinésia aos esquimós, todas as tradições recordam, de certa maneira, a memória de um mundo que vivia em paz, unificado por dentro e por fora, indistinto entre suas estruturas, perfeito em todos os sentidos, obedecendo apenas ás leis da constituição universal, posta na natureza por obra e graça do Grande Arquiteto do Universo.
A Atlântida e a Lemúria, a Tule sagrada das lendas, o Jardim das Hespérides, o Éden bíblico e o mítico país de Xangrilá, todos esses mitos grandiosos serão apenas desejos inconscientes, resultantes da ansiedade humana de encontrar, em algum lugar algures, ou até dentro de si mesmo, um refúgio onde se possa descansar da árdua tarefa de viver, ou terá mesmo existido em algum tempo, como realidade física, esse reino de tranquilidade e paz? Jamais o saberemos, mas, para que tal experiência tenha sido registrada na memória coletiva da humanidade, e de tempos em tempos reapareça como uma esperança utópica, é preciso que, de alguma forma, tal lugar tenha de fato existido.
Os homens, em todos os tempos, sempre sonharam com utopias. Do Egito dos faraós, governado pelo Principio da Maat, á República de Platão, governada pelos sábios, ao império de Açoca, com sua política orientada pelos Nove Desconhecidos, ás utopias de Thomas Mórus e Tommaso Campanella, governada pelos Notáveis, a mente humana sempre convergiu para a idéia de um estado perfeito de ordem, harmonia e felicidade, onde o divino não conflita com o humano e o sagrado e profano se harmonizam.
As utopias sempre frequentaram os sonhos da humanidade como esperança de implantação, na terra mesmo, daquele paraíso que as religiões prometem para o outro mundo. Para realizá-las os homens geralmente se reúnem em grupos, cujos elementos são cooptados pela convergência de interesses comuns ou de atributos pessoais. Dessas uniões acabam por surgir castas, guildas, associações, clubes, confrarias, partidos.
No antigo Egito, os principais santuários abrigavam diferentes castas de sacerdotes, reconhecíveis por seus graus de iniciação nos mistérios da religião. Eram esses Mestres que detinham, praticamente, o poder, pois no estado egípcio não havia uma separação entre o político e o religioso. Da mesma forma, vamos encontrar esse tipo de organização no estado que Moisés organizou para os israelitas. Entre aquele povo havia os Levitas, classe sacerdotal que detinha o monopólio do exercício litúrgico, e, em razão disso, acabava também por exercer o poder político, pois este, como no Egito, se confundia com a religião. Na Índia conta-se a história do Imperador Açoca, monarca que no século III a. C., reinou num vasto território que ia desde as atuais cidades de Calcutá a Madrasta. Esse rei, após ter sido convertido ao Budismo, desejou fazer de seu reino um lugar onde todas as pessoas pudessem desfrutar de segurança, paz, liberdade e felicidade. Para isso imaginou um meio de fazer com que os homens fossem impedidos de usar suas inteligências para o mal. As ciências e todo conhecimento técnico existente na época eram controlados pelo Estado, através de uma sociedade secreta conhecida como os Nove Desconhecidos. Essa sociedade ainda hoje orientaria a pesquisa e a utilização do saber naquele país, com ramificações em todo o mundo. Liberando uns e ocultando outros, agindo sempre de forma a impedir que determinadas descobertas, prejudiciais á humanidade, sejam divulgadas, essa Comunidade de Sábios exerceria uma espécie de controle sobre o saber humano, evitando que o equilíbrio mundial se rompa pela sua má utilização.
Na Grécia clássica os filósofos sempre arrogaram para si o monopólio da sabedoria, e nessa condição se tornavam preceptores de príncipes, reis e outros potentados. Com isso se colocavam sempre próximos ao poder político, e mesmo não o exercendo diretamente, acabavam por fazê-los nos bastidores. Com raras exceções, todos esses sábios eram iniciados nos Mistérios de Elêusis, da mesma forma que no Egito a elite se formava nas disciplinas dos Mistérios de Ìsis e Osíris.
No inicio do cristianismo se desenvolveram as seitas gnósticas. Ora formando seitas religiosas, ora desenvolvendo grupos de pensamento semelhantes ás antigas escolas gregas, esses filósofos heréticos legaram á história do pensamento universal algumas das concepções mais originais acerca da tradição iniciática que sempre acompanha a idéia da utopia. Desses cultores do cristianismo esotérico, certas Ordens de Cavalaria, especialmente os Templários, os Hospitálários e os Cavaleiros Teutônicos herdaram a aura de misticismo e mistério que sempre acompanhou as sagas desses “Cavaleiros de Cristo”. Se pesquisarmos a história oculta dessas instituições, encontraremos sempre uma idéia, conectada de um lado á uma tentativa de realização política, e de outro á uma esperança de ascensão espiritual; e que uma e outra podiam ser alcançadas através da segregação do saber em pequenos grupos e da prática iniciática para a sua divulgação.
O reino ideal do espírito nunca pode ser separado da ordem social perfeita, e a idéia da utopia integra essas duas estruturas organizacionais, sendo impossível a realização de uma sem que a outra também seja buscada. Na Renascença, filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus e Tommaso Campanella, entre outros, compartilharam dos mesmos sonhos que alimentaram o espírito do Imperador Açoca, dos sacerdotes egípcios e dos filósofos gregos. O primeiro criou um grupo de pensadores dedicado ao estudo das ciências ocultas, chamado os Novos Atlantes, que segundo ele, deveria manter, desenvolver e transmitir, de uma forma segura, a verdadeira sabedoria; o segundo imaginou uma sociedade ideal, confinada numa ilha imaginária, livre de dogmas religiosos e preconceitos de classe, onde os cidadãos viveriam virtuosamente, cultivando a justiça, a moderação, a sabedoria e a tolerância. Campanella imaginou a Cidade Mágica do Sol, onde ele seria sumo sacerdote e profeta, e o governo exercido por uma plêiade de sacerdotes detentores da totalidade do conhecimento universal. Campanella chegou mesmo a lutar por seu sonho, organizando uma revolução na Calábria, em 1598, com a intenção de implantar ali a sua utopia.
Em 1622, uma Paris comovida tomou conhecimento da existência de uma fraternidade de magos, cujos membros se diziam detentores dos grandes segredos do universo. Essa fraternidade se intitulava Os Irmãos da Rosa-Cruz. Diziam ser membros de uma sociedade internacional e secreta, que reunia os homens de saber em todo o mundo, cooptados para trabalhar pela “libertação do homem de seus erros e vícios mortais”. Depois se descobriu que tudo não passara de uma farsa genial, perpetrada por um grupo de alquimistas alemães, talvez para atrair a atenção para seus trabalhos, ou para ocultar, sob uma capa de mistério, uma prática condenada e reprimida pelo pensamento religioso oficial. De qualquer modo, farsa ou não, a pretensa sociedade dos Irmãos da Rosa-Cruz inseriu-se na história do pensamento ocidental e nele exerceu enorme influência, dando origem á uma extensa atividade cultural com esse nome e servindo, inclusive, como núcleo arquetípico para o desenvolvimento de outra sociedade que marcou e ainda marca profundamente a História dos povos do mundo, que é a Maçonaria.
A formação seletiva de grupos para a realização de um ideal comum é uma prática que vem desde os primórdios da civilização. Esses grupos se formam por cooptação, escolhendo seus membros no seio da sociedade, justamente pela convergência que encontram entre seus interesses, sejam eles profissionais, religiosos, filosóficos ou mesmo econômicos ou políticos. A partir dessa reunião, formam-se sociedades que podem manter em segredo suas atividades ou não. É dessa forma que nascem partidos políticos, sociedades literárias, clubes de serviço, seitas religiosas, e também confrarias do tipo Maçonaria, que não se identifica com nenhuma delas, embora delas todas empreste características.
Como instituição, a Maçonaria só passou a existir no inicio do século XVIII, a partir da constituição que lhe foi dada pelos maçons ingleses, liderados pelo pastor anglicano James Anderson. Mas antes disso, os maçons já se reuniam em Lojas para praticar alguma coisa parecida com a ideia que anima todas as tradições de utopia. O que era essa Maçonaria anterior ás Constituições de Anderson? Como eram os maçons operativos que construíram as grandes catedrais medievais, e depois, os especulativos que os sucederam? As Constituições de Anderson apareceram em 1723 como exteriorização da Ordem maçônica, dando ao mundo a idéia de que a Confraria dos Obreiros da Arte Real era uma instituição universal, unificada em suas práticas, em sua filosofia e em seus objetivos. E como bem dizia Langlóis, essa visão da Maçonaria correspondia exatamente á estrutura política da Inglaterra dos inícios do século XVIII, onde a liberdade não era um mero anseio e o liberalismo econômico rompia as barreiras sociais, linguísticas e religiosas, alargando os horizontes geográficos e intelectuais. A Inglaterra do início do século XVIII era a pátria de todos os espíritos que sonhavam com a liberdade e com o fim das mazelas sociais. Por isso não é estranho que a secularização da prática maçônica tenha surgido exatamente entre os maçons ingleses, como forma de realização de um sonho que antes medrava apenas em alguns espíritos, como esperança de realização ascética do individuo, mas não como projeto de uma humanidade mesmo. O que terá acontecido para fazer com que filósofos racionalistas, como Voltaire e Montesquieu, por exemplo, ou religiosos ortodoxos, como os pastores Anderson e Désaguliers, se associassem com o jacobita André Michel de Ransay, amigo do Bispo Fénelon e da família de Godofredo de Boillon, o místico comandante da primeira cruzada, para disseminar pela Europa toda uma prática, considerada como herética pelas religiões oficiais?
A Maçonaria anterior ás Constituições de Anderson era uma prática para-religiosa que se confinava a alguns grupos de pessoas sensíveis ao apelo do esotérico, contido na mensagem da arquitetura, e da filosofia que ela inspirava. Com efeito, para os maçons que antecederam a fusão das Lojas londrinas, a arquitetura era uma mensagem dos deuses, inteligível apenas aos espíritos sensíveis que acreditavam na unidade do universo e se viam como “construtores do espírito”, repetindo na atividade especulativa aquilo que seus antecessores medievais haviam feito operativamente. Os maçons operativos, pensavam estes novos “pedreiros morais”, haviam deixado a mensagem divina na linguagem das pedras e nas formas estruturais da catedral gótica e dos grandes edifícios públicos. A sabedoria arcana (a sabedoria secreta) fora inscrita em símbolos, representados por ogivas, arcobotantes, estranhas figuras de anjos, gárgulas e vampiros, colunas, pináculos e abóbodas, tudo constituindo uma verdadeira enciclopédia do saber universal só inteligível aos iniciados.
Fulcanelli diz que a arte gótica (art goth) é uma deformação ortográfica do vocábulo argot, que significa “linguagem particular”, ou língua falada através de alegorias. Seria, outrossim, uma espécie de Cabala falada, derivada da tradição dos argonautas, os míticos caçadores do famoso Tosão de Ouro da lenda grega. Essa mensagem argótica continha uma sabedoria mil vezes milenária, que dizia, em seus meandros, que o espírito e a matéria constituem uma realidade só, que a luz se oculta nas trevas, que o universo é um edifício único que se constrói da mesma forma que o espírito humano é construído, e ambos se edificam pelo mesmo processo que as construções humanas são erguidas. Os maçons de antanho eram, portanto, os filósofos da construção universal, cuja mensagem era transmitida através da prática operativa, e quem conhecesse a língua argótica poderia aprendê-la estudando as estruturas dos edifícios sacros e profanos construídos pelos maçons medievais. Por isso, diz Fulcanelli, “ ainda hoje se diz de um homem inteligente e muito astuto: ele sabe tudo, entende o argot. Todos os iniciados se exprimiam em argot, tanto os vagabundos da Corte dos Milagres ─ com o poeta Villon á cabeça ─ quanto os freemasons ou franco-maçons da Idade Média, “hospedeiros do Bom Deus”, que edificaram as obras-primas argóticas que hoje admiramos”.
A Maçonaria que emergiu da Reforma religiosa é muito diferente da que era praticada nas antigas corporações de obreiros medievais. Ela é filha da necessidade política e do desespero filosófico de uma sociedade que procurava desesperadamente uma saída espiritual para o impasse que a religião, com o cisma da Reforma, a lançara. Com efeito, há muito que arte gótica e as grandes construções medievais, sacras e profanas, já haviam deixado de hospedar em suas curvas, nichos, abóbodas, ogivas, vitrais , figuras e capitéis, a antiga ciência dos freemasons. E há muito, também, que a mística tradição de buscar a ascese espiritual através da prática do oficio de construtor havia desaparecido. Os novos construtores, embalados no ideal da Renascença, haviam perdido o elo com o espírito, para se concentrar na beleza idealizada na razão, bela sim, harmoniosa sim, perfeita nas formas e nas estruturas, mas tão pouco espiritualizada em sua mensagem, pois ali não mais se percebia a mística dos antigos irmãos “hospedeiros do Bom Deus”.
Podemos dizer que a Maçonaria, a partir do momento em que ela foi secularizada (hospedando uma instituição civil com personalidade jurídica de âmbito mundial ), transformou-se numa idéia utópica tanto quanto o eram as criações de Platão, Campannela, Giordano Bruno, Thomas Mórus e outros. Conquanto suas ações tenham repercutido na história recente da humanidade, influindo sobremaneira na formação dos estados modernos e orientando o viver de muitas sociedades, a esperança que a anima, como a daqueles antigos filósofos, é a mesma: construir a sociedade perfeita, harmônica, justa, fundada nos ideais estéticos da antiga sabedoria grega e egípcia, temperada pelas virtudes do cristianismo e embalada na moral iluminista. Nesse sentido, as Lojas maçônicas deveriam funcionar como cadinhos de alquimista, onde a “matéria prima” dessa nova pedra filosofal seria artisticamente trabalhada para se obter “pedras de sustentação” angular, como aquelas que sustentavam os edifícios de antigamente. Não se contesta, neste trabalho, o fato de que a Maçonaria, dita especulativa, tenha nascido dentro das Lojas de maçons operativos. A respeito disso vamos colocar a nossa hipótese. Mas acreditamos que essa filiação não aconteceu de forma direta, como conseqüência da transformação das corporações obreiras medievais (as guildas dos pedreiros livres) em sociedades de pensamento.
Para nós, a Maçonaria especulativa não é mera adaptação da Maçonaria operativa, isto é, os “pedreiros morais”, como gostamos de chamar os maçons especulativos, não provém de uma herança direta dos pedreiros profissionais da Idade Média, mas sim de uma organização paralela que nasceu dentro das corporações obreiras dos profissionais de construção, porém com objetivos diferentes. A tese de que houve uma passagem pura e simples do plano operativo para o especulativo é uma simplificação que nunca nos satisfez. Acreditamos que vários grupos de pensadores esotéricos coexistiram concomitantemente com as Lojas dos maçons especulativos, e em dado momento se fundiram. Essa fusão deve ter acontecido ali pelos meados do século XVII, como resultado de uma aproximação de objetivos e uma similitude de pensamento, que á medida que a repressão religiosa ia aumentando, os ia forçando a se associarem para garantir suas sobrevivências.
As antigas tradições, presentes nas “Velhas Regras” (as Old Charges) não tratam de temas gnósticos e alquímicos, nem integram motivos cavalheirescos. Mas devemos ter em mente que as Old Charges são regras que dizem respeito unicamente á Maçonaria inglesa. Não valem para as antigas Lojas operativas do continente, que certamente deviam ter suas próprias ordenações. Destas pouco sabemos, mas é certo que mantinham a tradição iniciática e incorporavam motivos filosóficos e morais que visavam, ao mesmo tempo, realizar obra profana de interesse estético e obra espiritual de interesse ascético. Parece que foi nas lojas do continente que a filosofia gnóstica e a ciência dos Filhos de Hermes (os alquimistas) se fundiram com as tradições dos construtores de igrejas, criando uma nova escola de pensamento. Daí essa escola voltou para a Inglaterra, onde, cerca de um século mais tarde se adotaria a moral propagada pela corrente Iluminista, resultando no que hoje chamamos de Maçonaria Especulativa.
Da mesma forma, a interação entre a Maçonaria e as tradições cavalheirescas, oriundas dos cruzados, só começou a ser aventada a partir do século XVIII. Sabe-se, aliás, que foram exatamente os autores maçons que criaram a grande maioria das lendas e mistérios ligados aos Cavaleiros Templários. E que foram eles, também, que ligaram os Templários á Maçonaria, sugerindo ser a Confraria dos Obreiros da Arte Real uma espécie de herdeira das tradições daquela Ordem, dissolvida pelo Papa em 1312. Como os Templários, os Hospitalários e as demais Ordens de Cavalaria se interaram com os maçons especulativos é uma história que ainda não foi contada, mas é possível formular algumas hipóteses, o que faremos no decorrer deste nosso exercício semiótico. O que fica patente é que tal interação ocorreu, porque a influência da cultura cavalheiresca transparece claramente nos rituais maçônicos. Essa influência só é percebida a partir dos chamados graus superiores, particularmente os graus capitulares e filosóficos. Nas chamadas Lojas simbólicas ela só transparece, de forma bastante sutil, em alguns atos litúrgicos da iniciação, como o ato de tocar com a espada o iniciando para recebê-lo como aprendiz maçom ou elevá-lo de grau, por exemplo. Isso se explica pelo fato de que, provavelmente, a antiga Maçonaria só praticava os graus simbólicos, já que os graus superiores foram desenvolvidos somente a partir da secularização das tradições maçônicas, empreendida por Anderson e seu grupo.
A Maçonaria de que falamos é aquela praticada através do chamado Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA). Não temos conhecimento suficiente dos demais ritos para dizer de que influências foram compostos. O que sabemos, pela leitura dos rituais dos diversos graus, é que o Rito Escocês é uma composição litúrgica, filosófica e didática, que procura transmitir uma espécie de humanismo cristão, temperado por um forte apelo esotérico. Essa transmissão é feita através de alegorias, emprestadas á tradição hebraica veiculada pela Bíblia Sagrada, e interpretadas á maneira dos gnósticos antigos e modernos. Nessa composição entram motivos cavalheirescos, inspirados principalmente nos Cavaleiros Templários, Hospitalários e Teutônicos, juntamente com alusões á prática alquímica.
Mas foram a filosofia gnóstica e a grande tradição da Cabala que forneceram á Maçonaria a maioria dos temas que são desenvolvidos em seus rituais. Foi, aliás, através dos filósofos dessas duas tradições místicas que tomamos conhecimento dos grandes mitos da antiguidade, oriundos das culturas egípcia, persa, caldéia e grega principalmente, que a Maçonaria adotou em seus rituais. O conhecimento dos dramas de Isis e Osíris, os Mistérios de Elêusis e os Mistérios de Mitra, que forneceram a base na qual a Arte Real se fundamentou para desenvolver sua própria cadeia iniciática, são oriundos de ensinamentos gnósticos e cabalísticos.
O próprio Mito de Hiram, como veremos, foi desenvolvido por esses heréticos do cristianismo, que foram os gnósticos. Não é sem razão que as confissões religiosas oficiais olham com desconfiança para a Maçonaria. Afinal seu caráter é, sem dúvida bastante ambíguo. Não sendo seita religiosa nem escola de filosofia, ela ás vezes confunde seus próprios praticantes por hospedar características das duas instituições. Ao veicular uma idéia da divindade que se aproxima bastante das escolas gnósticas, ela se identifica com qualquer uma daquelas seitas religiosas. E ao propugnar que a sabedoria, e por conseqüência, a iluminação, só obtém pelo exercício da razão, ela se identifica como escola de pensamento. E da mesma forma que naqueles antigos núcleos do pensamento cristão alternativo, se torna difícil ao estudante da prática maçônica distinguir quando seu catecismo está tratando o tema da relação homem-divindade de uma forma religiosa ou simplesmente filosófica.
É bem verdade que a Maçonaria é fundamentalmente antidogmática. Somente essa proposição já seria suficiente para desclassificá-la do rol das religiões. A liberdade de pensamento seria um outro postulado que a afastaria dessa classificação. Todavia, algumas ambigüidades ainda persistem e nos colocam algumas questões que não foram resolvidas, pelo menos em nossa visão. Algumas delas foram postas pelo próprio Anderson ao chamar o homem sem religião de ateu estúpido, ou o livre pensador de libertino irreligioso. Pois se a liberdade de pensamento significa inclusive a liberdade de se não acreditar em Deus, ou a liberdade de pensá-lo da forma que a sensibilidade de cada um o figurar, então não há que se colocar limitações ao pensamento, sujeitando as pessoas á uma “religião sobre a qual todos os homens estão de acordo”, segundo ele diz, como se existisse uma religião assim no mundo.
A liberdade de pensamento não pode ser direcionada apenas para nichos específicos da cultura humana, mas deve abarcar todos os domínios, inclusive religião. Até porque é este segmento da cultura humana que mais mata e divide os homens.
A conclusão a que chegamos neste trabalho é mais importante do que qualquer desvio de raciocínio ou falha de interpretação das mensagens trabalhadas. Essa conclusão não pode ser perdida de vista quando se estuda o desenvolvimento da Maçonaria como realidade histórica e cultural. Existem aqui três objetos a estudar : um, que é o ideal maçônico, imagem mental de um estado de ordem, harmonia e felicidade, desenvolvido pelo inconsciente humano desde os primórdios da civilização; outro, a prática maçônica, que consiste numa forma de viver e pensar, praticada por grupos iniciáticos desde épocas muito antigas, e por fim, um terceiro objeto, que é a Ma-çonaria enquanto instituição. Esta só nasceu em 1723, com a edição das Constituições de Anderson, produzida exatamente para dar uma identidade á uma idéia e á uma prática que já existiam na cultura humana desde tempos imemoriais.
A proposta deste trabalho é justamente perseguir, no tempo e na história do pensamento universal a idéia maçônica, para ver como ela se transmutou em prática, e por fim, como foi institucionalizada. Essa idéia gira em torno de uma crença vinculada ao próprio processo de socialização do homem. Essa crença é a de Deus criou um universo unificado em suas estruturas, de forma tal que matéria e espírito se completam e forma um todo inseparável. Essas estruturas se apresentam desmembradas aos nossos olhos e muitas vezes antagônicas, mas essa é somente uma ilusão dos nossos sentidos. Essa ilusão precisa ser desfeita através de uma prática que “ensine” nossos sentidos a “ver” a unidade do universo. E através dessa visão, que é a verdadeira sabedoria, a gnose divina, a iluminação, seremos capazes de participar, conscientes, do processo de construção do universo, na forma desejada pelo seu Grande Arquiteto.
Os homens sempre acreditaram na possibilidade de união do espírito com a matéria, operacionalizando uma verdadeira redenção da raça humana. As religiões e suas complicadas cerimônias litúrgicas tem essa finalidade. Seja através dos rituais, seja por meio de preces, jejuns e outras formas de superação das barreiras da matéria, o que se procura é sempre essa forma de libertar a alma (centelha de luz presa na matéria) para que ela se integre ao seu Criador. Através de práticas iniciáticas, ascéticas, espirituais ou mesmo exercícios de meditação, o que se busca é sempre essa Iluminação, que representa a comunhão do espírito humano com a divindade. Essa comunhão com o divino é a verdadeira Gnose: quer a chamemos de Verbo Divino, Nirvana, Iluminação, Pedra Filosofal, Nome Inefável, Palavra Sagrada, etc. ela sempre encerra a mesma esperança: a de obter a verdadeira sabedo-ria, ocorra ela como forma de produzir um estado de consciência superior, ou como desenvolvimento moral e espiritual do individuo, tornando-o melhor e mais feliz.
Como religião, filosofia, ou simplesmente como prática de bem viver, a idéia de que o homem precisa encontrar uma fórmula que o faça unir-se á divindade, que no fundo, nada mais é do que um encontro consigo mesmo, sempre foi perseguida como objetivo final da espiritualização progressiva da consciência humana. Como meta normal do individuo, e algumas vezes até de uma coletividade inteira, essa esperança tem animado os sonhos da espécie humana. Veremos como essa idéia se desenvolveu no Egito a partir do conceito altamente abstrato da Maat, e como foi praticada, ao longo do tempo e das culturas que se seguiram, pelos israelitas, com sua noção de povo eleito, pelos essênios com sua mística de homens puros, e pelos primeiros cristãos com suas crenças numa Nova Jerusalém, como símbolo do reino governado pelo Messias.
Na Idade Média foi essa mesma esperança que animou a saga de algumas Ordens de Cavalaria e diversas seitas heréticas, como os Cátaros, por exemplo, que se diziam herdeiros da verdadeira doutrina de Cristo. Também alguns grupos místicos, como os Rosa-Cruzes, comungaram da mesma esperança. Os próprios filósofos iluministas, como veremos, apesar do racionalismo e do positivismo científico que marcaram esse sistema de pensamento, não escaparam ao apelo emocional desse sonho. Essa idéia também animou os sonhos dos homens que produziram a tragédia do Nazismo.
Como tudo na Maçonaria, no entanto, este trabalho é puramente especulativo. As colocações que aqui fazemos, conquanto sejam fundamentadas em fontes que podem ser consultadas por qualquer leitor, são meramente hipotéticas. Fizemos este trabalho unicamente pelo prazer de organizar o nosso próprio pensamento a respeito do tema, e ao final oferecer aos interessados uma síntese que amiúde não se encontra no acervo da cultura maçônica. As notas de rodapé que acompanham os textos se justificam pelo fato de não termos encontrado uma forma melhor de estabelecer os vínculos entre as inúmeras influências de que a árvore maçônica se alimenta.
Foi necessário não perder pistas. A cada idéia, a cada evocação a esta ou aquela influência, entendemos que a indicação da fonte, ou um comentário paralelo, seria fundamental para o entendimento do contexto no qual ela se colocava. É que o ensinamento maçônico, como convém a toda tradição iniciática, é desenvolvido através de símbolos e alegorias. Esse método, que Ouspensky chama muito apropriadamente de psicológico, exige que o leitor, muitas vezes, deixe de lado o seu natural espírito crítico e se abando-ne apenas á sua sensibilidade. Pode comparar, pode associar, pode especular; no fim, porém, resta apenas a opção de acreditar ou não.
Depois de tudo que lemos, que associamos, que especulamos e escrevemos, foi o que nos restou: uma crença. E esta crença é a de que não somos afinal como a-quele pobre Roquentin, personagem do romance de Sartre, que via a vida como fonte de inquietação e náusea, porque não conseguia acreditar que o universo tinha sido construído com alguma finalidade e que sua própria existência sobre a terra tinha, afinal, algum motivo. Deste estudo emergimos com a convicção de que a vida do homem sobre a terra é carregada de sentido, e que toda a evolução humana é um processo administrado por uma Von-tade que atua além das próprias leis da natureza. Essa Vontade se expressa em todas as realidades do mundo fenomênico através de leis que ela mesma criou e faz com que se cumpra infalivelmente. E cada um de nós, com nosso empenho particular e livre arbítrio, acaba por ser um agente de execução dessa Vontade, que se cumpre na busca de uma finalidade que podemos não compreender, mas que existe e segue um curso inexorável.
Aos que, como nós, estão procurando entender e aprender a Arte Real, para poder erguer templos á virtude e cavar masmorras ao vicio, como quer o Grande Arquiteto do Universo, dedicamos esta peça de arquitetura.
Naquele tempo, tudo estava em tudo, não havia distinções de espécie alguma, o que existia no céu era igual ao havia na terra, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo, o dentro e o fora eram indistinguíveis, o sagrado e o profano, o bem e o mal, a luz e as trevas, todos os contrários eram apenas verso e reverso de uma moeda única.
Num universo assim composto, a dialética universal aparecia apenas como uma forma pela qual a Energia dos Princípios podia agir para a construção do real existente, unificando pela ação dos contrários a força interativa que dá vida ao cosmo. A idéia inscrita no vocábulo universo queria dizer exatamente o que o termo indica, ou seja, o único, o indivisível, a versão singular e original do pensamento divino, manifestado como realidade em multifacetadas formas, infinitas identidades, mas todas ligadas, indistintamente, ao seu Principio Criador.
Os livros sagrados das diversas religiões e as tradições de todos os povos da terra evocam essa época mágica em que os deuses falavam com os homens face a face. Do Extremo Oriente nos vem a lenda dos Senhores de Dzyan, iniciadores da civilização humana, e dos gigantes de cabeça redonda, detentores de outro saber, que viveram na terra antes do dilúvio. Restos dessa civilização ainda podem ser encontrados nas crônicas bíblicas e nas lendas e tradições dos hindus, dos tibetanos, dos incas e dos astecas, e em muitas outras memórias, nas mais diferentes culturas que existem e já existiram sobre a face da terra.
A Bíblia também nos fala desse tempo em que os homens viviam centenas de anos, tinham estaturas imensas e suas filhas se juntavam aos anjos para gerar guerreiros audazes; evoca também a lembrança do paraíso terrestre, onde a criação celeste e humana convivia sob os olhares de deuses benignos e protetores. Do Egito á Mesopotâmia, da Índia á China, dos indígenas da Polinésia aos esquimós, todas as tradições recordam, de certa maneira, a memória de um mundo que vivia em paz, unificado por dentro e por fora, indistinto entre suas estruturas, perfeito em todos os sentidos, obedecendo apenas ás leis da constituição universal, posta na natureza por obra e graça do Grande Arquiteto do Universo.
A Atlântida e a Lemúria, a Tule sagrada das lendas, o Jardim das Hespérides, o Éden bíblico e o mítico país de Xangrilá, todos esses mitos grandiosos serão apenas desejos inconscientes, resultantes da ansiedade humana de encontrar, em algum lugar algures, ou até dentro de si mesmo, um refúgio onde se possa descansar da árdua tarefa de viver, ou terá mesmo existido em algum tempo, como realidade física, esse reino de tranquilidade e paz? Jamais o saberemos, mas, para que tal experiência tenha sido registrada na memória coletiva da humanidade, e de tempos em tempos reapareça como uma esperança utópica, é preciso que, de alguma forma, tal lugar tenha de fato existido.
Os homens, em todos os tempos, sempre sonharam com utopias. Do Egito dos faraós, governado pelo Principio da Maat, á República de Platão, governada pelos sábios, ao império de Açoca, com sua política orientada pelos Nove Desconhecidos, ás utopias de Thomas Mórus e Tommaso Campanella, governada pelos Notáveis, a mente humana sempre convergiu para a idéia de um estado perfeito de ordem, harmonia e felicidade, onde o divino não conflita com o humano e o sagrado e profano se harmonizam.
As utopias sempre frequentaram os sonhos da humanidade como esperança de implantação, na terra mesmo, daquele paraíso que as religiões prometem para o outro mundo. Para realizá-las os homens geralmente se reúnem em grupos, cujos elementos são cooptados pela convergência de interesses comuns ou de atributos pessoais. Dessas uniões acabam por surgir castas, guildas, associações, clubes, confrarias, partidos.
No antigo Egito, os principais santuários abrigavam diferentes castas de sacerdotes, reconhecíveis por seus graus de iniciação nos mistérios da religião. Eram esses Mestres que detinham, praticamente, o poder, pois no estado egípcio não havia uma separação entre o político e o religioso. Da mesma forma, vamos encontrar esse tipo de organização no estado que Moisés organizou para os israelitas. Entre aquele povo havia os Levitas, classe sacerdotal que detinha o monopólio do exercício litúrgico, e, em razão disso, acabava também por exercer o poder político, pois este, como no Egito, se confundia com a religião. Na Índia conta-se a história do Imperador Açoca, monarca que no século III a. C., reinou num vasto território que ia desde as atuais cidades de Calcutá a Madrasta. Esse rei, após ter sido convertido ao Budismo, desejou fazer de seu reino um lugar onde todas as pessoas pudessem desfrutar de segurança, paz, liberdade e felicidade. Para isso imaginou um meio de fazer com que os homens fossem impedidos de usar suas inteligências para o mal. As ciências e todo conhecimento técnico existente na época eram controlados pelo Estado, através de uma sociedade secreta conhecida como os Nove Desconhecidos. Essa sociedade ainda hoje orientaria a pesquisa e a utilização do saber naquele país, com ramificações em todo o mundo. Liberando uns e ocultando outros, agindo sempre de forma a impedir que determinadas descobertas, prejudiciais á humanidade, sejam divulgadas, essa Comunidade de Sábios exerceria uma espécie de controle sobre o saber humano, evitando que o equilíbrio mundial se rompa pela sua má utilização.
Na Grécia clássica os filósofos sempre arrogaram para si o monopólio da sabedoria, e nessa condição se tornavam preceptores de príncipes, reis e outros potentados. Com isso se colocavam sempre próximos ao poder político, e mesmo não o exercendo diretamente, acabavam por fazê-los nos bastidores. Com raras exceções, todos esses sábios eram iniciados nos Mistérios de Elêusis, da mesma forma que no Egito a elite se formava nas disciplinas dos Mistérios de Ìsis e Osíris.
No inicio do cristianismo se desenvolveram as seitas gnósticas. Ora formando seitas religiosas, ora desenvolvendo grupos de pensamento semelhantes ás antigas escolas gregas, esses filósofos heréticos legaram á história do pensamento universal algumas das concepções mais originais acerca da tradição iniciática que sempre acompanha a idéia da utopia. Desses cultores do cristianismo esotérico, certas Ordens de Cavalaria, especialmente os Templários, os Hospitálários e os Cavaleiros Teutônicos herdaram a aura de misticismo e mistério que sempre acompanhou as sagas desses “Cavaleiros de Cristo”. Se pesquisarmos a história oculta dessas instituições, encontraremos sempre uma idéia, conectada de um lado á uma tentativa de realização política, e de outro á uma esperança de ascensão espiritual; e que uma e outra podiam ser alcançadas através da segregação do saber em pequenos grupos e da prática iniciática para a sua divulgação.
O reino ideal do espírito nunca pode ser separado da ordem social perfeita, e a idéia da utopia integra essas duas estruturas organizacionais, sendo impossível a realização de uma sem que a outra também seja buscada. Na Renascença, filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus e Tommaso Campanella, entre outros, compartilharam dos mesmos sonhos que alimentaram o espírito do Imperador Açoca, dos sacerdotes egípcios e dos filósofos gregos. O primeiro criou um grupo de pensadores dedicado ao estudo das ciências ocultas, chamado os Novos Atlantes, que segundo ele, deveria manter, desenvolver e transmitir, de uma forma segura, a verdadeira sabedoria; o segundo imaginou uma sociedade ideal, confinada numa ilha imaginária, livre de dogmas religiosos e preconceitos de classe, onde os cidadãos viveriam virtuosamente, cultivando a justiça, a moderação, a sabedoria e a tolerância. Campanella imaginou a Cidade Mágica do Sol, onde ele seria sumo sacerdote e profeta, e o governo exercido por uma plêiade de sacerdotes detentores da totalidade do conhecimento universal. Campanella chegou mesmo a lutar por seu sonho, organizando uma revolução na Calábria, em 1598, com a intenção de implantar ali a sua utopia.
Em 1622, uma Paris comovida tomou conhecimento da existência de uma fraternidade de magos, cujos membros se diziam detentores dos grandes segredos do universo. Essa fraternidade se intitulava Os Irmãos da Rosa-Cruz. Diziam ser membros de uma sociedade internacional e secreta, que reunia os homens de saber em todo o mundo, cooptados para trabalhar pela “libertação do homem de seus erros e vícios mortais”. Depois se descobriu que tudo não passara de uma farsa genial, perpetrada por um grupo de alquimistas alemães, talvez para atrair a atenção para seus trabalhos, ou para ocultar, sob uma capa de mistério, uma prática condenada e reprimida pelo pensamento religioso oficial. De qualquer modo, farsa ou não, a pretensa sociedade dos Irmãos da Rosa-Cruz inseriu-se na história do pensamento ocidental e nele exerceu enorme influência, dando origem á uma extensa atividade cultural com esse nome e servindo, inclusive, como núcleo arquetípico para o desenvolvimento de outra sociedade que marcou e ainda marca profundamente a História dos povos do mundo, que é a Maçonaria.
A formação seletiva de grupos para a realização de um ideal comum é uma prática que vem desde os primórdios da civilização. Esses grupos se formam por cooptação, escolhendo seus membros no seio da sociedade, justamente pela convergência que encontram entre seus interesses, sejam eles profissionais, religiosos, filosóficos ou mesmo econômicos ou políticos. A partir dessa reunião, formam-se sociedades que podem manter em segredo suas atividades ou não. É dessa forma que nascem partidos políticos, sociedades literárias, clubes de serviço, seitas religiosas, e também confrarias do tipo Maçonaria, que não se identifica com nenhuma delas, embora delas todas empreste características.
Como instituição, a Maçonaria só passou a existir no inicio do século XVIII, a partir da constituição que lhe foi dada pelos maçons ingleses, liderados pelo pastor anglicano James Anderson. Mas antes disso, os maçons já se reuniam em Lojas para praticar alguma coisa parecida com a ideia que anima todas as tradições de utopia. O que era essa Maçonaria anterior ás Constituições de Anderson? Como eram os maçons operativos que construíram as grandes catedrais medievais, e depois, os especulativos que os sucederam? As Constituições de Anderson apareceram em 1723 como exteriorização da Ordem maçônica, dando ao mundo a idéia de que a Confraria dos Obreiros da Arte Real era uma instituição universal, unificada em suas práticas, em sua filosofia e em seus objetivos. E como bem dizia Langlóis, essa visão da Maçonaria correspondia exatamente á estrutura política da Inglaterra dos inícios do século XVIII, onde a liberdade não era um mero anseio e o liberalismo econômico rompia as barreiras sociais, linguísticas e religiosas, alargando os horizontes geográficos e intelectuais. A Inglaterra do início do século XVIII era a pátria de todos os espíritos que sonhavam com a liberdade e com o fim das mazelas sociais. Por isso não é estranho que a secularização da prática maçônica tenha surgido exatamente entre os maçons ingleses, como forma de realização de um sonho que antes medrava apenas em alguns espíritos, como esperança de realização ascética do individuo, mas não como projeto de uma humanidade mesmo. O que terá acontecido para fazer com que filósofos racionalistas, como Voltaire e Montesquieu, por exemplo, ou religiosos ortodoxos, como os pastores Anderson e Désaguliers, se associassem com o jacobita André Michel de Ransay, amigo do Bispo Fénelon e da família de Godofredo de Boillon, o místico comandante da primeira cruzada, para disseminar pela Europa toda uma prática, considerada como herética pelas religiões oficiais?
A Maçonaria anterior ás Constituições de Anderson era uma prática para-religiosa que se confinava a alguns grupos de pessoas sensíveis ao apelo do esotérico, contido na mensagem da arquitetura, e da filosofia que ela inspirava. Com efeito, para os maçons que antecederam a fusão das Lojas londrinas, a arquitetura era uma mensagem dos deuses, inteligível apenas aos espíritos sensíveis que acreditavam na unidade do universo e se viam como “construtores do espírito”, repetindo na atividade especulativa aquilo que seus antecessores medievais haviam feito operativamente. Os maçons operativos, pensavam estes novos “pedreiros morais”, haviam deixado a mensagem divina na linguagem das pedras e nas formas estruturais da catedral gótica e dos grandes edifícios públicos. A sabedoria arcana (a sabedoria secreta) fora inscrita em símbolos, representados por ogivas, arcobotantes, estranhas figuras de anjos, gárgulas e vampiros, colunas, pináculos e abóbodas, tudo constituindo uma verdadeira enciclopédia do saber universal só inteligível aos iniciados.
Fulcanelli diz que a arte gótica (art goth) é uma deformação ortográfica do vocábulo argot, que significa “linguagem particular”, ou língua falada através de alegorias. Seria, outrossim, uma espécie de Cabala falada, derivada da tradição dos argonautas, os míticos caçadores do famoso Tosão de Ouro da lenda grega. Essa mensagem argótica continha uma sabedoria mil vezes milenária, que dizia, em seus meandros, que o espírito e a matéria constituem uma realidade só, que a luz se oculta nas trevas, que o universo é um edifício único que se constrói da mesma forma que o espírito humano é construído, e ambos se edificam pelo mesmo processo que as construções humanas são erguidas. Os maçons de antanho eram, portanto, os filósofos da construção universal, cuja mensagem era transmitida através da prática operativa, e quem conhecesse a língua argótica poderia aprendê-la estudando as estruturas dos edifícios sacros e profanos construídos pelos maçons medievais. Por isso, diz Fulcanelli, “ ainda hoje se diz de um homem inteligente e muito astuto: ele sabe tudo, entende o argot. Todos os iniciados se exprimiam em argot, tanto os vagabundos da Corte dos Milagres ─ com o poeta Villon á cabeça ─ quanto os freemasons ou franco-maçons da Idade Média, “hospedeiros do Bom Deus”, que edificaram as obras-primas argóticas que hoje admiramos”.
A Maçonaria que emergiu da Reforma religiosa é muito diferente da que era praticada nas antigas corporações de obreiros medievais. Ela é filha da necessidade política e do desespero filosófico de uma sociedade que procurava desesperadamente uma saída espiritual para o impasse que a religião, com o cisma da Reforma, a lançara. Com efeito, há muito que arte gótica e as grandes construções medievais, sacras e profanas, já haviam deixado de hospedar em suas curvas, nichos, abóbodas, ogivas, vitrais , figuras e capitéis, a antiga ciência dos freemasons. E há muito, também, que a mística tradição de buscar a ascese espiritual através da prática do oficio de construtor havia desaparecido. Os novos construtores, embalados no ideal da Renascença, haviam perdido o elo com o espírito, para se concentrar na beleza idealizada na razão, bela sim, harmoniosa sim, perfeita nas formas e nas estruturas, mas tão pouco espiritualizada em sua mensagem, pois ali não mais se percebia a mística dos antigos irmãos “hospedeiros do Bom Deus”.
Podemos dizer que a Maçonaria, a partir do momento em que ela foi secularizada (hospedando uma instituição civil com personalidade jurídica de âmbito mundial ), transformou-se numa idéia utópica tanto quanto o eram as criações de Platão, Campannela, Giordano Bruno, Thomas Mórus e outros. Conquanto suas ações tenham repercutido na história recente da humanidade, influindo sobremaneira na formação dos estados modernos e orientando o viver de muitas sociedades, a esperança que a anima, como a daqueles antigos filósofos, é a mesma: construir a sociedade perfeita, harmônica, justa, fundada nos ideais estéticos da antiga sabedoria grega e egípcia, temperada pelas virtudes do cristianismo e embalada na moral iluminista. Nesse sentido, as Lojas maçônicas deveriam funcionar como cadinhos de alquimista, onde a “matéria prima” dessa nova pedra filosofal seria artisticamente trabalhada para se obter “pedras de sustentação” angular, como aquelas que sustentavam os edifícios de antigamente. Não se contesta, neste trabalho, o fato de que a Maçonaria, dita especulativa, tenha nascido dentro das Lojas de maçons operativos. A respeito disso vamos colocar a nossa hipótese. Mas acreditamos que essa filiação não aconteceu de forma direta, como conseqüência da transformação das corporações obreiras medievais (as guildas dos pedreiros livres) em sociedades de pensamento.
Para nós, a Maçonaria especulativa não é mera adaptação da Maçonaria operativa, isto é, os “pedreiros morais”, como gostamos de chamar os maçons especulativos, não provém de uma herança direta dos pedreiros profissionais da Idade Média, mas sim de uma organização paralela que nasceu dentro das corporações obreiras dos profissionais de construção, porém com objetivos diferentes. A tese de que houve uma passagem pura e simples do plano operativo para o especulativo é uma simplificação que nunca nos satisfez. Acreditamos que vários grupos de pensadores esotéricos coexistiram concomitantemente com as Lojas dos maçons especulativos, e em dado momento se fundiram. Essa fusão deve ter acontecido ali pelos meados do século XVII, como resultado de uma aproximação de objetivos e uma similitude de pensamento, que á medida que a repressão religiosa ia aumentando, os ia forçando a se associarem para garantir suas sobrevivências.
As antigas tradições, presentes nas “Velhas Regras” (as Old Charges) não tratam de temas gnósticos e alquímicos, nem integram motivos cavalheirescos. Mas devemos ter em mente que as Old Charges são regras que dizem respeito unicamente á Maçonaria inglesa. Não valem para as antigas Lojas operativas do continente, que certamente deviam ter suas próprias ordenações. Destas pouco sabemos, mas é certo que mantinham a tradição iniciática e incorporavam motivos filosóficos e morais que visavam, ao mesmo tempo, realizar obra profana de interesse estético e obra espiritual de interesse ascético. Parece que foi nas lojas do continente que a filosofia gnóstica e a ciência dos Filhos de Hermes (os alquimistas) se fundiram com as tradições dos construtores de igrejas, criando uma nova escola de pensamento. Daí essa escola voltou para a Inglaterra, onde, cerca de um século mais tarde se adotaria a moral propagada pela corrente Iluminista, resultando no que hoje chamamos de Maçonaria Especulativa.
Da mesma forma, a interação entre a Maçonaria e as tradições cavalheirescas, oriundas dos cruzados, só começou a ser aventada a partir do século XVIII. Sabe-se, aliás, que foram exatamente os autores maçons que criaram a grande maioria das lendas e mistérios ligados aos Cavaleiros Templários. E que foram eles, também, que ligaram os Templários á Maçonaria, sugerindo ser a Confraria dos Obreiros da Arte Real uma espécie de herdeira das tradições daquela Ordem, dissolvida pelo Papa em 1312. Como os Templários, os Hospitalários e as demais Ordens de Cavalaria se interaram com os maçons especulativos é uma história que ainda não foi contada, mas é possível formular algumas hipóteses, o que faremos no decorrer deste nosso exercício semiótico. O que fica patente é que tal interação ocorreu, porque a influência da cultura cavalheiresca transparece claramente nos rituais maçônicos. Essa influência só é percebida a partir dos chamados graus superiores, particularmente os graus capitulares e filosóficos. Nas chamadas Lojas simbólicas ela só transparece, de forma bastante sutil, em alguns atos litúrgicos da iniciação, como o ato de tocar com a espada o iniciando para recebê-lo como aprendiz maçom ou elevá-lo de grau, por exemplo. Isso se explica pelo fato de que, provavelmente, a antiga Maçonaria só praticava os graus simbólicos, já que os graus superiores foram desenvolvidos somente a partir da secularização das tradições maçônicas, empreendida por Anderson e seu grupo.
A Maçonaria de que falamos é aquela praticada através do chamado Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA). Não temos conhecimento suficiente dos demais ritos para dizer de que influências foram compostos. O que sabemos, pela leitura dos rituais dos diversos graus, é que o Rito Escocês é uma composição litúrgica, filosófica e didática, que procura transmitir uma espécie de humanismo cristão, temperado por um forte apelo esotérico. Essa transmissão é feita através de alegorias, emprestadas á tradição hebraica veiculada pela Bíblia Sagrada, e interpretadas á maneira dos gnósticos antigos e modernos. Nessa composição entram motivos cavalheirescos, inspirados principalmente nos Cavaleiros Templários, Hospitalários e Teutônicos, juntamente com alusões á prática alquímica.
Mas foram a filosofia gnóstica e a grande tradição da Cabala que forneceram á Maçonaria a maioria dos temas que são desenvolvidos em seus rituais. Foi, aliás, através dos filósofos dessas duas tradições místicas que tomamos conhecimento dos grandes mitos da antiguidade, oriundos das culturas egípcia, persa, caldéia e grega principalmente, que a Maçonaria adotou em seus rituais. O conhecimento dos dramas de Isis e Osíris, os Mistérios de Elêusis e os Mistérios de Mitra, que forneceram a base na qual a Arte Real se fundamentou para desenvolver sua própria cadeia iniciática, são oriundos de ensinamentos gnósticos e cabalísticos.
O próprio Mito de Hiram, como veremos, foi desenvolvido por esses heréticos do cristianismo, que foram os gnósticos. Não é sem razão que as confissões religiosas oficiais olham com desconfiança para a Maçonaria. Afinal seu caráter é, sem dúvida bastante ambíguo. Não sendo seita religiosa nem escola de filosofia, ela ás vezes confunde seus próprios praticantes por hospedar características das duas instituições. Ao veicular uma idéia da divindade que se aproxima bastante das escolas gnósticas, ela se identifica com qualquer uma daquelas seitas religiosas. E ao propugnar que a sabedoria, e por conseqüência, a iluminação, só obtém pelo exercício da razão, ela se identifica como escola de pensamento. E da mesma forma que naqueles antigos núcleos do pensamento cristão alternativo, se torna difícil ao estudante da prática maçônica distinguir quando seu catecismo está tratando o tema da relação homem-divindade de uma forma religiosa ou simplesmente filosófica.
É bem verdade que a Maçonaria é fundamentalmente antidogmática. Somente essa proposição já seria suficiente para desclassificá-la do rol das religiões. A liberdade de pensamento seria um outro postulado que a afastaria dessa classificação. Todavia, algumas ambigüidades ainda persistem e nos colocam algumas questões que não foram resolvidas, pelo menos em nossa visão. Algumas delas foram postas pelo próprio Anderson ao chamar o homem sem religião de ateu estúpido, ou o livre pensador de libertino irreligioso. Pois se a liberdade de pensamento significa inclusive a liberdade de se não acreditar em Deus, ou a liberdade de pensá-lo da forma que a sensibilidade de cada um o figurar, então não há que se colocar limitações ao pensamento, sujeitando as pessoas á uma “religião sobre a qual todos os homens estão de acordo”, segundo ele diz, como se existisse uma religião assim no mundo.
A liberdade de pensamento não pode ser direcionada apenas para nichos específicos da cultura humana, mas deve abarcar todos os domínios, inclusive religião. Até porque é este segmento da cultura humana que mais mata e divide os homens.
A conclusão a que chegamos neste trabalho é mais importante do que qualquer desvio de raciocínio ou falha de interpretação das mensagens trabalhadas. Essa conclusão não pode ser perdida de vista quando se estuda o desenvolvimento da Maçonaria como realidade histórica e cultural. Existem aqui três objetos a estudar : um, que é o ideal maçônico, imagem mental de um estado de ordem, harmonia e felicidade, desenvolvido pelo inconsciente humano desde os primórdios da civilização; outro, a prática maçônica, que consiste numa forma de viver e pensar, praticada por grupos iniciáticos desde épocas muito antigas, e por fim, um terceiro objeto, que é a Ma-çonaria enquanto instituição. Esta só nasceu em 1723, com a edição das Constituições de Anderson, produzida exatamente para dar uma identidade á uma idéia e á uma prática que já existiam na cultura humana desde tempos imemoriais.
A proposta deste trabalho é justamente perseguir, no tempo e na história do pensamento universal a idéia maçônica, para ver como ela se transmutou em prática, e por fim, como foi institucionalizada. Essa idéia gira em torno de uma crença vinculada ao próprio processo de socialização do homem. Essa crença é a de Deus criou um universo unificado em suas estruturas, de forma tal que matéria e espírito se completam e forma um todo inseparável. Essas estruturas se apresentam desmembradas aos nossos olhos e muitas vezes antagônicas, mas essa é somente uma ilusão dos nossos sentidos. Essa ilusão precisa ser desfeita através de uma prática que “ensine” nossos sentidos a “ver” a unidade do universo. E através dessa visão, que é a verdadeira sabedoria, a gnose divina, a iluminação, seremos capazes de participar, conscientes, do processo de construção do universo, na forma desejada pelo seu Grande Arquiteto.
Os homens sempre acreditaram na possibilidade de união do espírito com a matéria, operacionalizando uma verdadeira redenção da raça humana. As religiões e suas complicadas cerimônias litúrgicas tem essa finalidade. Seja através dos rituais, seja por meio de preces, jejuns e outras formas de superação das barreiras da matéria, o que se procura é sempre essa forma de libertar a alma (centelha de luz presa na matéria) para que ela se integre ao seu Criador. Através de práticas iniciáticas, ascéticas, espirituais ou mesmo exercícios de meditação, o que se busca é sempre essa Iluminação, que representa a comunhão do espírito humano com a divindade. Essa comunhão com o divino é a verdadeira Gnose: quer a chamemos de Verbo Divino, Nirvana, Iluminação, Pedra Filosofal, Nome Inefável, Palavra Sagrada, etc. ela sempre encerra a mesma esperança: a de obter a verdadeira sabedo-ria, ocorra ela como forma de produzir um estado de consciência superior, ou como desenvolvimento moral e espiritual do individuo, tornando-o melhor e mais feliz.
Como religião, filosofia, ou simplesmente como prática de bem viver, a idéia de que o homem precisa encontrar uma fórmula que o faça unir-se á divindade, que no fundo, nada mais é do que um encontro consigo mesmo, sempre foi perseguida como objetivo final da espiritualização progressiva da consciência humana. Como meta normal do individuo, e algumas vezes até de uma coletividade inteira, essa esperança tem animado os sonhos da espécie humana. Veremos como essa idéia se desenvolveu no Egito a partir do conceito altamente abstrato da Maat, e como foi praticada, ao longo do tempo e das culturas que se seguiram, pelos israelitas, com sua noção de povo eleito, pelos essênios com sua mística de homens puros, e pelos primeiros cristãos com suas crenças numa Nova Jerusalém, como símbolo do reino governado pelo Messias.
Na Idade Média foi essa mesma esperança que animou a saga de algumas Ordens de Cavalaria e diversas seitas heréticas, como os Cátaros, por exemplo, que se diziam herdeiros da verdadeira doutrina de Cristo. Também alguns grupos místicos, como os Rosa-Cruzes, comungaram da mesma esperança. Os próprios filósofos iluministas, como veremos, apesar do racionalismo e do positivismo científico que marcaram esse sistema de pensamento, não escaparam ao apelo emocional desse sonho. Essa idéia também animou os sonhos dos homens que produziram a tragédia do Nazismo.
Como tudo na Maçonaria, no entanto, este trabalho é puramente especulativo. As colocações que aqui fazemos, conquanto sejam fundamentadas em fontes que podem ser consultadas por qualquer leitor, são meramente hipotéticas. Fizemos este trabalho unicamente pelo prazer de organizar o nosso próprio pensamento a respeito do tema, e ao final oferecer aos interessados uma síntese que amiúde não se encontra no acervo da cultura maçônica. As notas de rodapé que acompanham os textos se justificam pelo fato de não termos encontrado uma forma melhor de estabelecer os vínculos entre as inúmeras influências de que a árvore maçônica se alimenta.
Foi necessário não perder pistas. A cada idéia, a cada evocação a esta ou aquela influência, entendemos que a indicação da fonte, ou um comentário paralelo, seria fundamental para o entendimento do contexto no qual ela se colocava. É que o ensinamento maçônico, como convém a toda tradição iniciática, é desenvolvido através de símbolos e alegorias. Esse método, que Ouspensky chama muito apropriadamente de psicológico, exige que o leitor, muitas vezes, deixe de lado o seu natural espírito crítico e se abando-ne apenas á sua sensibilidade. Pode comparar, pode associar, pode especular; no fim, porém, resta apenas a opção de acreditar ou não.
Depois de tudo que lemos, que associamos, que especulamos e escrevemos, foi o que nos restou: uma crença. E esta crença é a de que não somos afinal como a-quele pobre Roquentin, personagem do romance de Sartre, que via a vida como fonte de inquietação e náusea, porque não conseguia acreditar que o universo tinha sido construído com alguma finalidade e que sua própria existência sobre a terra tinha, afinal, algum motivo. Deste estudo emergimos com a convicção de que a vida do homem sobre a terra é carregada de sentido, e que toda a evolução humana é um processo administrado por uma Von-tade que atua além das próprias leis da natureza. Essa Vontade se expressa em todas as realidades do mundo fenomênico através de leis que ela mesma criou e faz com que se cumpra infalivelmente. E cada um de nós, com nosso empenho particular e livre arbítrio, acaba por ser um agente de execução dessa Vontade, que se cumpre na busca de uma finalidade que podemos não compreender, mas que existe e segue um curso inexorável.
Aos que, como nós, estão procurando entender e aprender a Arte Real, para poder erguer templos á virtude e cavar masmorras ao vicio, como quer o Grande Arquiteto do Universo, dedicamos esta peça de arquitetura.
Do livro "Conhecendo a Arte Real"- 2º Edição, revista e ampliada, no prelo.