A Carta de Despedida
Na silenciosa madrugada uma fresta de luz do poste da rua atravessa o canto da cortina na janela do hospital e ilumina o leito de Florisberto em meio aos aparelhos e medicamentos. No quarto estava seu neto Tadeu dormindo encostado numa cadeira próximo de seu avô. Seus pais estavam desgastados e cansados com a rotina hospitalar e Tadeu como era muito apegado ao patriarca de sua família se dispôs a acompanhar e aliviar o desconforto familiar pelo anúncio de uma doença terminal e um grave quadro clínico. Num súbito momento, Tadeu escuta seu avô sussurrar algo e com o coração acelerado se mobiliza e pega um copo d’água na cabeceira da cama para atendê-lo. Florisberto falava pausadamente com voz rouca: “Meu filho... pegue... na gaveta da cômoda... do meu quarto... um envelope azul... é pra você.” Tadeu com o rosto reclinado para escutar melhor insiste: “Mas vovô, porquê? O que tem de importante nesse envelope? Descansa e não ti preocupa à toa!” Florisberto balança a cabeça e franzi suas grossas sombrancelhas e dispara: “Não perca tempo... seja você mesmo... e não... me desrespeite. Busque!”
Carinhosamente o neto transmite consentimento ao pedido do avô e passa sua mão na cabeça entre seu cabelo grisalho e o beija na testa. Tadeu se acomoda na cadeira intrigado com a mensagem de Florisberto. Porque esse lapso no meio da madrugada para lembrar de um mísero envelope numa velha gaveta empoeirada? Adormeceu contemplando a serenidade estampada no rosto de Florisberto e na manhã seguinte quando sua tia chegou no hospital, ele pegou o rumo da casa dos seus avós. Sua avó Esterlina tinha falecido fazia uns dois anos e a família sentia muito sua ausência, ainda organizando a rotina doméstica e superando o período de luto. Chegando lá, Tadeu adentra o quarto e vai direto na cômoda rústica que Florisberto guardava seus documentos. Seria um testamento ou herança? Uma conta para pagar um recado para transmitir? Pegou o envelope azul e sentou-se na cadeira de balanço situada na sala de estar. Passou os olhos e viu que era uma carta com seu nome.
“Meu querido e amado Tadeu, deixo para você toda minha herança. Não acumulei riquezas e não tive quase nada em meu nome, para muitos fui um fracassado por não aderir a ânsia do consumo de bens materiais tive apenas o necessário para prover a minha família e me dediquei a saborear os detalhes da vida e o pulsar de cada instante. Minha vida humilde aprendi observando a natureza desde a minha tenra infância ajudando meus pais nas tarefas da roça; plantando, colhendo e cuidando dos animais. Fui para escola tarde, mas foi o suficiente para aprender a ler e escrever e fui o primeiro letrado da família. Isso possibilitou que na mocidade ingressasse como operário nas fábricas que se desenvolviam nas cidades grandes e da agricultura conheci o trabalho na metalurgia onde trabalhei por 35 anos. Como proletário me filiei aos sindicatos e lutei nas greves e piquetes por melhores condições de trabalho e por uma sociedade mais justa. Sempre fui um crítico ferrenho do sistema capitalista que brutaliza as pessoas e possibilita a exploração do homem pelo próprio homem em busca de metas gananciosas e individualistas onde a maior vítima é a natureza. Um sistema que reproduz desigualdades, discriminação e preconceitos de todos os tipos tem que ser combatido todos os dias. Aprendi a amar a humanidade e suas coisas, acreditando sempre na mudança e na revolução. A Mãe Natureza é a rainha do nosso existir e é uma obrigação largarmos a condição de parasitas para construirmos novas alternativas de viver e bem viver em comunhão. Sou esperançoso e utópico, por isso não parei de lutar pelos meus ideais. Sou feliz por ser útil para o mundo e para as pessoas. Nossas histórias estão entrelaçadas no espaço-tempo e a nossa cultura é a essência vital para todos os povos. Não esqueça, lute por melhores dias incansavelmente e acredite na luz que brilhará amanhã. Esse é o fardo que passo a você meu amor, seja você mesmo a fonte de sua própria luz e traga as boas novas em seus pensamentos, palavras e ações. Quando nos tornarmos poeira das estrelas uma ligação cósmica irá nos conectar. Lhe deixou minha herança, um exemplo, o tudo e o nada. O caminho você irá escolher! Com carinho e imenso amor, Vô Flor.”
Ao terminar de ler a carta de despedida, Tadeu corre para o hospital e na chegada em meio ao pranto desconsolado de sua família reconheceu com pesar que chegou atrasado para se despedir e agradecer ao seu avô por tudo que sempre teve. Sua mãe disse: “Filho, enxugue as lágrimas. Seu avô Flor dormiu e descansou sem dor alguma com um estranho sorriso no rosto ele deu seu último suspiro: “Tadeu eu confio em você!”
Publicado em Jornal A Folha/Torres e Jornal Litoral Norte RS.