QUANDO O RITO VALE MAIS QUE A PAZ

Sou extremamente a favor de que cada pessoa expresse ao seu próprio modo sua forma de fé, crença e culto. A menos que nessa maneira de expressão religiosa tenha embutido o sofrimento físico ou psicológico dos próprios membros ou de pessoas não ligadas ao grupo, bem como morte e sofrimento de animais para agradar qualquer divindade, nesse ponto acho sim que pode e deve haver interferência externa de órgãos competentes. Fora isso cada um expresse do seu modo sua forma de crença.

Acontece que quanto mais sacralizamos objetos fúteis como se fossem representação dessa fé ou da própria divindade, criamos um sentimento de posse, como se fosse direitos autorais em favor dos deuses, e desprezamos as pessoas que estão próximas nós, como se essas não valessem em nada em relação aquele rito que fora acabado de ser inventado. Cada vez que aumentamos nosso território de representação do divino, podemos estar interferindo no de outrem. Nesse ponto somos capazes de matar ou morrer, para defender meros objetos que em pouco tempo serão consumidos pelo fogo, água ou próprio tempo, ou desprezados por nossa descendência e que sinceramente, se os deuses existirem ficarão desapontados com nossas ações e o modo como representamos nossa fé.

Um exemplo disso é a memória viva de pessoas que nasceu em cidades pequenas do interior e tinha o costume de sair ou conversar com seus avós, podem recordar com certeza, que esses tinha uma forma excessiva de reverencia quanto a símbolos sagrados. Se fossem andando no caminho e encontrassem algum pau ou graveto que ao cair no chão formasse um T em forma de cruz, os tais se ajoelhavam, se benziam, ou levava para casa aquele objeto sem desmontá-lo demonstrando um misto de medo e respeito por aquele objeto. Até um simples tendão de capim, que ao ser soprado pelo vento fizesse a forma de uma cruz, os mais antigos davam a volta por outro caminho para não desmontar aquele “sinal divino”. Quando esses iam se despir ou ter relações sexuais com seus conjugues, cobriam a imagem dos santos em suas cômodas ou os viravam para o lado opostos, para esses não verem seu símbolo de “pecado” e não os punirem por isso.

Quem não lembra de chegar em algumas casas e encontrar várias embalagens de supermercado pregadas na parede como se fossem quadros de arte sacra? O motivo? Por que tinham impresso nelas imagem de algum santo católico. Segundo a crença dessas pessoas, elas jamais deveriam ser destruídas, pois ali estava uma “Obra de Deus”. Deveriam se apagar com o tempo. Assim viviam nossos avós. Uma guerra se iniciava caso algum desses pertences fossem tirados do seu lugar ou destruídos. Até por descuido se o vento arrancasse um papel desses da parede, quem deixou a porta aberta seria punido com grandes ofensas verbais.

Fico pensando...depois de tanto tempo, parece que ainda moramos em cavernas. Parece até que é o nosso primeiro contato com o fogo, apesar de em vários locais do globo “Prometeu” já trouxera fogo aos homens. As pessoas temem e veneram mais objetos inanimados ou imaginários e vivem a negar auxilio a pessoas vivas, reais, existentes e necessitadas de sua ajuda e seu afeto. As pessoas entram nas mais diversas brigas verbais, saem no tapa ou vão para as guerras, simplesmente se algum dos símbolos que eles veneram forem violados, ainda que de modo não intencional. Dizem que seus deus jamais pode ser destruído, mas se ofende quando uma mera representação daquilo que pensar ser esse ser recebe apenas algumas gotas de água. Até parece deuses de açúcar.

Não seria a função da religião “religare”? Como poderemos ser religados se vivemos nos dividindo o tempo todo por banalidades? Será mesmo que alguma divindade bondosa, amorosa, piedosa e misericordiosa fica enfurecida conosco se por algum motivos esquecermos de cultuar algum símbolo sagrado criado por nós mesmos? Acredito que não. Será que não estamos cultuando o ego, o orgulho, a vaidade, a soberba e ganancia e usando como pano de fundo seres imaginários? Se a religião foi feita pra unir, por que nos separa tanto? E se deixássemos que os deuses tomassem para si as ofensas toda vez que eles tivessem incomodados com algo? Eles usariam infinita graça bondade e misericórdia pela nossa ingenuidade ou usariam de seu imenso poder para no destruir? Algo a se pensar. A menos que estejamos fazendo propaganda enganosa a nós mesmos, costumamos enchê-los de todas as qualidades boas e depois dizer que eles são furiosos e intolerantes. Quanta dualidade! Nesse caso não há Procon que possa resolver nossa causa, se fazemos uma auto propaganda enganosa.

No cristianismo católico por exemplo, há milhares de símbolos antigos e atuais que as pessoas veneram, que foram sacralizados, como sendo algo de imensa representatividade divina. Quadros de Leonardo Da Vinci, Michelangelo e outros renascentistas sobre aquilo que eles pensavam ser o Cristo (com formato europeu) talvez estejam no topo dessas venerações. Estátuas de Aleijadinho, objetos que papas e outros santos usaram, os locais onde eles viveram e até pessoas com que eles conviveram se tornam motivos de culto, reverencia e idolatria. Se alguém fizer qualquer comentário racional sobre essas coisas, estar ofendendo gravemente a fé daquele que retrata nessas obras a própria graça encarnada, esquecendo que a própria bíblia que eles chamam de santa condena esse tipo de atitude.

O cristianismo evangélico, por ser filho direto do cristianismo católico, herdou essas tradições e acrescentou a elas outras milhares. Há líderes hoje nesses grupos por exemplo, que se você não os tratar pelos títulos de doutor, pastor, missionário, reverendo, bispo, ou apóstolo, de imediato eles te repreenderão em público naquele instante além disso vai te marcar como um dono marca um gado rebelde. Você será motivo de piadas, insultos e chacotas por um bom tempo nesses ambientes simplesmente pelo grave “pecado” de ter chamado a pessoa pelo próprio nome ao invés do seu honorável título (coisa que Jesus repudiava e dizia que a ninguém chameis mestre ou pai).

Outra forma de pecado grave nesses ambientes é não fazer um comentário positivo quando esses mesmos líderes lançam materiais de sua autoria como lançamentos de cds, livros, dvds, ou qualquer tipo de campanha sem sentido dizendo ser para arrecadar fundos ou para espantar algum tipo de mal. É obrigatório aderir sem questionar qualquer símbolo construído por estes como se fosse o próprio Deus encarnado que estivesse falando. Roupas, objetos pessoais e até toalhinhas cheia de suor e “catarro” do líder já são disputadas hoje em dia do mesmo modo como foram as calcinhas de grandes atrizes no passado por fãs abilolados. Coitado de quem discordar que qualquer um desses símbolos não sejam sagrados. É assinar sentença de morte na fogueira do joelho e da língua dos “ungidos”. Você será praguejado, sua família será monitorada e amaldiçoada, caso você venha a cometer o grave pecado de não aderir a essas campanhas “inteligentes”. Nesses ambientes, vassouras, chaves, canetas, restos de construção, agua, sal açúcar e qualquer outro objeto se torna sacro. Quanto mais se expande a sacralidade das coisas, mas se expande o “domínio dos deuses” e os seres humanos vão perdendo território. Como os conquistadores europeus faziam com os índios tomando posse de tudo em nome da coroa, esses “ungidos” saem tomando posse de tudo que pertence a membresia quando sacraliza o banal na relação com os deuses e banaliza as relações humanas. Tememos o imaginário e desprezamos o real.

Quanto mais objetos sagrados criam, mas afastam as pessoas de sua verdadeira essência, da unicidade, do criador. Quantos mais objetos sagrados criam, mais o misticismo toma conta, mais pessoas se ofendem toda vez que esses objetos forem desprezados, iniciando guerras ou sentimentos de desrespeito pessoal. Aquilo que era pra ser algo tão simples, torna-se tão complicado. Se os deuses pudessem falar conosco, nos chamariam de tolos, por trocar relações com pessoas reais, por relações com pedra, gesso, barro, figuras míticas e objetos benzidos. De nada adiante se ajoelhar mediante um símbolo sagrado e passar por cima de outros como se fosse um cão ao que precisa de nossa ajuda. Os deuses não precisam de nosso dinheiro pra continuar existindo, pagar emissoras de TVs, construir mega-templos ou bancar vida luxuosa de seus representantes, nem tão pouco de nossa adoração. Eles são completo em tudo segunda a própria imagem criada deles. Besteira brigarmos por eles. Besteira também invadir o espaço de culto do outro pra dizer isso.

Me pergunto: quem nos constitui como advogado dos deuses? Em qual livro de leis criadas por eles devemos nos basear para defende-los? Quem garante que eles estão satisfeitos com essa nossa defesa? E quem garante que precisamos defende-los, já que a grande maioria deles tudo sabem, tudo podem e tudo veem? Seria como um bebê que acabou de nascer, querer da lição de vida pra seu avô de 60 anos de idade. Nem respirar direito este ainda saberia. Assim somos nós. Criamos qualidade e títulos pra os deuses que esses não pediram, e depois lutamos para defender essa “moral” e essa “honra” em nome dessa nossa invenção. Em relação aos deuses (todos eles) mantemos um pensamento ambíguo, que se anula, que se destrói: primeiro dizemos que eles criaram tudo, podem tudo e fazem tudo. Depois concordamos que ele são tão frágeis que não são capazes nem sequer de se defenderem, ou de defenderem sua própria imagem daquilo que disseram ser ele. Ao mesmo tempo eles tem o poder de um super-man e ternura e fragilidade de um filhotinho gato que acabou de nascer e precisa de cuidados, alimentação e carinhos. Ora levamos os deuses em nossas costas, nas procissões anuais, e outras vezes eles nos levam em suas costas e suas asas cada vez que lemos o salmo 23 ou 91 (acho que os únicos conhecidos por 80% dos cristãos). Quão criativos somos nós. Me parece que essas pessoas são como criadores de quadrinhos: conforme nossas necessidades e carências formatamos os deuses e os chamamos a existência para depois entrarmos em guerra contra todos que não são capazes de entende-los. Há séculos matamos e morremos pelos desuses. Há milênios isso se repete e me parece estar piorando no ocidente com a ascensão do mundo gospel. Lutero sentiria vergonha em saber que as causas que ele lutou contra, hoje são veneradas pelos quais dizem ser seus seguidores.

Nascemos num ambiente em que as crenças já estavam. Poucas pessoas realmente tiveram a chance de escolher. Outras foram forçadas ou tiveram de se adaptar a elas. Repensar é preciso, viver também é preciso. Não é pecado ser lucido. Não é crime ser racional. Não é ofensa dizer não para certas tradições. É normal e até saudável as vezes ir na contramão da vida. O auto questionamento fará com que portas da percepção sejam liberadas e passemos a ver o mundo com outros olhos. Daí podemos perceber que mais vale manter a paz do que manter um rito.

Escrito em 07/11/2016

*Bacharel em teologia, estudante de religiões e filosofia.

Ferreira Bispo
Enviado por Ferreira Bispo em 07/11/2016
Código do texto: T5816454
Classificação de conteúdo: seguro