Sobre A máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe: (política, narrativa e um pouco mais)

A obra, sob o ponto de vista político, gira em volta dos últimos acontecimentos do personagem-narrador, o Antônio Jorge Silva, e suas memórias acerca do sistema constituído pela ditadura salazarista, cuja base de sustentação estava fundada na religião, na família e no futebol. Em torno desses temas aparecem as reflexões sobre a história de Portugal, sua decadência em relação à Europa e à Espanha, e finalmente as dúvidas e esperanças de um recomeço com sua entrada na União Europeia. É a respeito dessa esperança que o Silva da Europa ressalta no capítulo um: “’e agora somos europeus. Qualquer iniqüidade do nosso peculiar espírito será corrigida pela Europa, para sempre.” (p. 12).

A amargura e a revolta do António Silva advêm do choque que sofre com a morte se sua esposa, seguido do fato de ser largado em um asilo. Como alguém que havia construído toda sua vida junto à família, se vê repentinamente abandonado por seus entes mais próximos. No capítulo dois ele revela: “estar ali metido, [...] e era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido. um método mais rápido que seria que uma maior honestidade, pensava eu.”.

Sobre o futebol, de modo muito claro, o autor recorre a este tema para relacionar a rivalidade entre o Porto e o Benfica, duas paixões nacionais, com os mecanismos de controle social utilizados pela ditadura salazarista. No capítulo cinco, introduz o Teófilo Cubillas, jogador de futebol peruano que atuou na equipe do Porto, e que, nos últimos dias da ditadura, conhecera a Dona Leopoldina, que aguarda as lembranças de uma única, casual e inesquecível noite de amor que viveram antes do jogador se tornar ídolo nacional. Dona Leopoldina, agora residindo no asilo, ainda ostenta na parede do seu o retrato do amante. “No lar da feliz idade toda a gente desconfiava saber por que razão a dona Leopoldina emoldurara aquele pôster e o tinha ali pendurado como relíquia de uma vida.” (p. 63).

Adiante, vemos como a educação e a religião se entrelaçavam: “ainda nos marcavam as heranças castradoras de uma educação com idas a missa, mas, sobretudo, uma dificuldade em cortar com o que os outros esperariam da nossa conduta [...]” (p. 81) e participavam do aparato de controle ideológico do sistema. O futebol, porém, continua a ser relacionado diretamente à ditadura: “ainda hoje ouço os velhos dizerem que o painho fez de tudo para que o benfica personificasse a glória da nação [...] era ver o entusiasmo do ditador com o futebol dos encarnados. um futebol do Eusébio [...] a correr para o mérito dos portugueses.” (loc. cit.); “eu, que sempre fui portista, gostava do Eusébio como era impossível não gostar [...] claro que pelo coração, do lado do painho e isso propunha atenuar consideravelmente as minhas desconfianças [...” (loc. cit.).

Mas, na opinião do narrador-personagem, ainda havia desculpas: “mas em mil novecentos e cinqüenta as coisas não estavam ainda tão definidas [...], o certo e o errado eram difíceis de discernir. pois o benfica ainda não se fizera glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente.” (p. 82). “havíamos passado ao lado da guerra e parecia que a vida se protegia no país das quintas.” (loc. cit.).

A vez a educação e a religião a serviço do regime: “quando as crianças [...] estudavam lá la lá lá ela ele eles elas alto altar lusitos lusitas viva salazar, toda gente achava que se estudava assim por bem, e rezava-se na escola para que deus e a nossa senhora e todo aquele séquito de santinhos e santinhas pairassem sobre a cabeça de uma cidadania temente e tão bem-comportada. assim se aguentava a pobreza com uma paciência endurecida.” (p.82.)

E o Silva e a Laura, casados, iludidos, seguem as regras: “eu e a laura assistíamos às missas de domingo, muito esperançados de que começar uma vida a dois seria melhor assim, com as bênçãos sagradas e aqueles crentes todos em nosso redor, com cara de quem nos ajudariam por ofício de fé, com ar de quem gostava de nós e se preocuparia com as nossas misérias, e nós gostávamos deles.” (p.83).

O desencanto: nasce morto o filho do Silva e quase morre a Laura: “aprendi, no dia em que perdemos o nosso primeiro filho, que estávamos sozinhos no mundo” (p. 83). “fui pedir ao padre que nos fizesse chegar ao hospital, que fosse rápido [...} e o home disse umas quantas vezes que tudo estaria na vontade de deus [...] e depois foi lá ele com duas velhas e não pensou em nenhum carro. o nosso filho já estava no colo da laura e ela sem sentidos , afastada da dor de permanecer com os olhos abertos sobre o silêncio mortal do bebé.”

Tempos difíceis. A atração pela nacionalidade francesa: “durante muito tempo portugal foi um país cujas crianças nasceram em frança. tantas, caramba. e eu pensava [...] que em frança estaríamos a salvo...” (p.85). “a nossa elisa nasceu na felicidade e na frustração. podias ser francesa, elisa. podias ter sido francesa, [...].”

(Aqui podemos inferir uma menção à emigração de portugueses para França entre 1961 e 1974 é um dos episódios mais impressionantes da história contemporânea de Portugal, constituindo uma verdadeira debandada do país).

Com efeito, entre 1958 e 1974, cerca de um milhão de portugueses instalam-se em França [...]. As formas brutais da sua exploração começam em Portugal, com as redes que os transportam até à fronteira, e não raro os abandonam pelo caminho. Muitos portugueses morrem neste percurso. (http://imigrantes.no.sapo.pt/page6franca.html).

No capítulo sete Silva, já integrado ao ciclo de amigos do Lar, discute com estes questões como o amor, fé, religião igreja e deus. ”e o silva da europa dizia... [...] e o fascismo dos homens bons, o fascismo remanescente, ´que vem das saudades [...] quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades [...] é uma saudade de nós próprios, e não exatamente do regime e muito menos de salazar.e eu escutava o meu colega silva e não sabia o que pensar´.” (p. 116).

No capítulo doze, o Silva conta como ousou escondendo o rapaz que fugia da PIDE. “terça-feira, cinco de setembro de mil novecentos e sessenta e sete, uns minutos antes de fechar a barbearia [...] um homem assustado entrou por ali adentro e fitou-me. [...] não parecia saber o que fazer dizer. fitava-me ofegante, o olhar aterrado de quem fugia.[..] olhei para aquele homem que ali se pôs diante de mim, umedecido de medo, e indiquei-lhe o compartimento interior da barbearia, onde arrumava vassouras e panos velhos, baldes e outras tralhas.” (p.131). “talvez tenha salvo a vida daquele rapaz. vi-o depois, muitas vezes, a fazer-se doutor, mais prudente na resistência à polícia criminosa. vinha por ali cortar o cabelo e, quando podia, enchia-me a cabeça de propaganda antifascista. eu proibia-o de ali pôr os pés com algum panfleto [...] que o incriminasse ou incriminasse a mim. “era uma covardia típica da laura,” (p.135), “para pensar nos filhos e no futuro.” (p.136)... “ele metia-me propaganda diretamente nos ouvidos [..] e eu achava que gostava de saber que algumas pessoas tinham menos medo e menos compromissos do que eu e faziam algo para que as coisas mudassem.” e ele dizia-me, senhor silva, um dia ainda deixa de ser fascista. e eu mandava- calar-se, [...]. (p.136)... “foi a primeira vez que, num certo sentido, me chamaram de um bom fascista” (p. 136).

No capítulo catorze chega ao lar da feliz idade o senhor Enrique, um espanhol senil, que teima em ser português [para fugir do fantasma do Franco].

A menção aqui é ao “massacre de Badajoz” efetuado pelas tropas franquistas durante a guerra civil espanhola. Após a tomada da cidade foram perseguidos e mortos cerca de 10% da população da cidade, em represália à resistência oferecia. Algumas pessoas que conseguiam cruzar a fronteira eram devolvidas pela polícia de Salazar. < http://www.areamilitar.net/HISTbcr.aspx?N=74>

“a mulher dizia-lhe, vais ficar bem. e tu sabes que te amamos muito e que viremos sempre visitar-te. e ele ficava vermelho de raiva, como se tivesse vulcões ali por dentro e gritava, deixem-me em paz, sou português, quero liberdade no meu país.” (p.153). Parece que o autor aqui é extremamente irônico: somente a senilidade é capaz de fazer um espanhol desejar ser português.

No Capítulo quinze Silva revela não ter tido amigos e reafirma que a família sempre fora sua razão de viver: “não creio que algum dia tenha sido suficientemente amigo de alguém. fui sempre um homem de família, para a família, e o meu raio de ação esgotava-se essencialmente na minha mulher, nos meus filhos , e nos meus pais, enquanto foram vivos” (p.171). E acrescenta: “os que não tinham o meu sangue estariam sempre desclassificados no concurso tão rigoroso dos meus sentimentos.” (loc. cit.). “eu e a laura fizemos a vida através de um padrão discreto de rebeldia nenhuma, mas antes uma mágoa que não nos fazia agir contra nada nem ninguém, e só nos amargava as ideias para os intentos dos outros. Isso passava sobretudo pelo regime, claro, ao qual não desobedecíamos mas do qual não gostávamos particularmente.” (p.171). “se aquele moço no chão da minha dispensa fosse o meu ricardo [...] teria amaldiçoado o regime por fazer do meu rapaz um perseguido, [..] mas não me era nada, o moço, [...] (p. 172). E revela ter colaborado com o regime, pela família: “no dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e setenta e um [...] os pides entraram na minha barbearia e levaram o rapaz que, nove anos antes, eu ajudara a escapar, [...] achei que fazia o que tinha de fazer. [...] e a vida continuava como se nada fosse porque ao fim de cada dia encontrava a minha laura à espera de aquecer a sopa conversando sobre os filhos crescendo e sobre como era bom sermos prudentes e legais.” ((p. 175).

Angústia e culpa: “salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. [...] nós éramos gente exclusivamente por generosidade do ditador. portei-me como tal. um mendigo de reconhecimento e paz. fui, como tantos, um porco”. (p.175).

No capítulo dezasseis o Silva assume que o que foi feito, foi feito: “com o vinte e cinco de abril, logo em mil novecentos e setenta e quatro, apenas três anos depois, seria de o rapaz me aparecer a contar-me o que houvesse. [..] mas se não aconteceu assim, eu sei, foi porque o mataram.” (p.184).

Caminhos salgados: “fomos sempre um povo de caminhos salgados”. (Cap. 16, p.205). Esta frase expressa todo o sentimento da obra, toda a história de um povo, uma metáfora que se desdobra no tempo. Em uma de suas crônicas Fernão Lopes já afirmava “São tempos difíceis estes os que vivemos nesta era de 1456. Nas taracenas da Ribeira das Naus, carpinteiros, calafates, petintais e remolares aparelham navios. Navios que tantas vezes servem de esquife aos que se aventuram oceano adentro.” http://www.vidaslusofonas.pt/fernao_lopes.htm,

Ou em Camões: ´Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha/ Só para refrigério, e doce amparo/ Desta cansada já velhice minha,/ Que em choro acabará, penoso e amaro,/ Por que me deixas, mísera e mesquinha?/ Por que de mim te vás, ó filho caro,/ A fazer o funéreo enterramento,/ Onde sejas de peixes mantimento!” ...`(Os Lusíadas, Canto IV:90).

"Ou Fernando Pessoa, em Mensagem: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ Quantos filhos em vão rezaram![...].”

São fala de sal, de mar, de lágrimas, tristezas, saudades... e dúvidas.

No capítulo vinte e um o senhor Silva, ao reencontrar a vida, reconhece que “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia. este resto de vida [...] que eu julguei ser excesso, uma aberração, deu-me estes amigos.” (p. 237).

Finalmente, no Capítulo vinte e dois, o Antônio Jerge Silva confessa que agora tem uma nova família ”e nós, eu e o silva da europa, e o senhor pereira e mais o anísio dos olhos de luz, fôssemos uma família pela qual eu não poderia ter esperado”. Mas ainda que com essa última e inesperada alegria, o Silva sente angústia pelas incertezas que perpassam o texto. Após perder tantos filhos no mar, há dúvidas sobre quantos outros perderão agora, nesta nova viagem, a da integração, a que se dá em outro rumo, oposto, mas também por “mares nunca dantes navegados”, os da Europa.

13/10/2011

Celso Felizola
Enviado por Celso Felizola em 24/10/2016
Código do texto: T5801220
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