A Metáfora do Corpo I: A Civilização do Guerreiro
O homem, desde a mais tenra infância, está destinado a atuar diretamente sobre o mundo. Dos brinquedos à educação formal, ele aprende que mais importante que se adaptar ao mundo é agir sobre ele. Desde menino, ele é condicionado, assim, a ser o provedor de suas necessidades e de gerar sua independência física e mental, a fim de ser capaz de construir os caminhos em que andará pelo mundo.
Ao contrário da mulher, desde o início o homem aprende a dirigir sua energia para fora, para a manipulação dos elementos de seu ambiente. Ao longo de seu crescimento, ele aprende que para atuar de forma eficaz deve desenvolver o corpo, modelar os músculos, adquirir força e vigor, agilidade de movimentos. Tudo para conseguir um comportamento prático e preciso, dentro dos padrões masculinos.
Culturalmente, é o homem o mandante e o executante da vontade, o autor da obra e seu personagem principal, o que move a roda, opera as armas, o que lança a semente. É ele a personificação da imagem primordial do Guerreiro, cheio de ânimo e bravura.
Mitologicamente, o homem é a manifestação do brilho do sol na Terra (Rá), o deus da guerra (Ares/Marte), o dono da força e da coragem sem limites (Hércules, Sansão), que maneja com habilidade o martelo (Thor) e a lança, dirige o carro (Osíris) e a corporação (Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda).
Ele é o representante do poder divino, o que encarna o poder ativo do ritual. É o caçador das oferendas aos deuses, o realizador dos sacrifícios, o detentor dos segredos da terra e dos céus.
Traçando um paralelo entre a realidade atual e os mitos da antigüidade, podemos dizer que vivenciamos hoje, principalmente na civilização ocidental, as características mais marcantes do arquétipo do Guerreiro.
A sociedade capitalista do mercado aberto e da livre concorrência, com seus impérios e monopólios, ao exortar a independência do cidadão frente ao Estado e sua força, livre iniciativa e instinto de competição, está sem dúvida evocando a atitude do grande Guerreiro escondido no fundo de nossa memória coletiva.
A maior parte dos mecanismos de ação e representação presentes nas relações humanas, hoje (os papéis psicológicos, cargos de chefia, a política, etc.), pode ser considerada metáfora da estrutura da guerra.
Para sobreviver na selva de pedra, o cidadão é obrigado a lutar com as armas de que dispõe. Essas armas podem ser o dinheiro, o poder da persuasão, do intelecto ou a beleza física. E, para atingir objetivos, são usadas pelo cidadão-guerreiro para alcançar seu espaço e projetar sua identidade no meio social.
Toda a nossa apologia atual tem girado em torno do corpo, da máscara, da aparência e da forma. Tais questões têm deixado em segundo plano as idéias, o espírito, a alma e o conteúdo.
Muito mais glórias têm sido ofertadas à estética das aparências do que à da essência. E, por causa disto, entre escolher o caminho da razão e o caminho do espírito, geralmente preferimos o da razão, o da matéria - que diz muito mais do que temos do que o que somos.
Isto significa que, embora estejamos mergulhados nos aspectos marcantes do arquétipo clássico do Guerreiro, estamos apenas vivenciando seu lado mais básico, primitivo, superficial.
Não podemos esquecer que o arquétipo do Guerreiro compreende não só a questão da luta armada, física e concreta, mas também a a luta espiritual, psicológica e metafísica.
A missão do Guerreiro genuíno é lutar pela mudança dos conteúdos, ou seja, participar da verdadeira guerra: a guerra das idéias. Pois, enquanto o homem só se reocupar com a forma e as aparências, ele apenas poderá transformar o corpo e não o espírito. Apenas está contribuindo para a manutenção de padrões já estabelecidos, ao invés de lutar pelo novo e construir a ponte entre o passado e o futuro.
Quando o homem compreender as várias formas de guerra que existem, estará assimilando as outras faces do arquétipo do Guerreiro, re-integrando-as à sua natureza psíquica e espiritual. Desta forma, poderá finalmente sair desta sua grande neurose moderna, evidenciada pelo turbulência e competitividade selvagem das grandes metrópoles.
Esta é, sem dúvida, a grande escolha de Hércules, o herói grego: ou optamos pela força física do corpo material, ou optamos pela resolução intelectual e pela sensibilidade do espírito. Somente nosso livre-arbítrio pode nos garantir a salvação, conquistada através do equilíbrio.
[Ensaio, dividido em duas partes, originalmente publicado em out/1999 na revista eletrônica interNeWWWs - www.internewwws.atspace.com ]