Absurdizemos! Um manifesto pelo absurdo
Foi David Hume quem percebeu que nossas crenças são governadas pelo costume; que é o hábito que determina nossas convicções, nosso mundo, nossas vidas.
Imagine a ocorrência de um absurdo qualquer, mas um bem grande. Sendo o absurdo imaginado realmente grande, será difícil conceber sua ocorrência sem a geração de um assombro correspondente ao seu tamanho. E, de fato, caso um absurdo aconteça, induzirá assombro de igual monta; mas apenas em sua primeira ocorrência!
Isso pode parecer absurdo, mas, se algum acontecimento absurdo se repetir, o absurdo não se duplicará, nem triplicará, como talvez devesse, em decorrência de indignação gerada anteriormente. Mas se o absurdo se repetir, já será encarado com certa naturalidade, já estaremos um pouco habituados a ele.
Absurdo maior que todos, no entanto, é o fato de que, caso o absurdo se repita mais vezes, não terá seu absurdo multiplicado até extremos absurdos, mas acabará por se tornar familiar e habitual, um acontecimento natural e corriqueiro, como todos os outros! Repita um absurdo, repita-o até o absurdo, e acabará com toda a estupefação decorrente do fato, com toda a absurdidade do evento! O absurdo, essa criatura mágica, tanto se alimenta de si mesma, quanto se esconde a si, um portento!
Agora imaginemos que, em tempos muito remotos, algum absurdo imenso tenha sido perpetrado, assombrando todos os viventes de então! Absurdos acontecem, e tal caso, sem dúvida, ocorreu inúmeras vezes. Suponhamos, também, que um desses absurdos assombrosos tenha, em seguida ocorrido novamente, para assombro geral (hm… mas, atentemos, um assombro já atenuado, como vimos antes). Mas, se o absurdo se repetiu e repetiu, então de modo completamente absurdo, tornou-se absolutamente normal, corriqueiro, tendo sido, absurdamente, incorporado à normalidade!
Cabe imaginar que tal fato, não somente ocorreu, mas se repetiu, acrescentando, seguidamente, novos absurdos à nossa vida, incorporando a nosso dia a dia uma sucessão de absurdos aceitos com a naturalidade plena que o hábito confere a todas as coisas, por maior que seja o absurdo que, de fato, ela encerre.
E essa é, absurdamente, a história de nosso mundo: uma sucessão de absurdos repetidos cotidianamente, constituindo, absurdamente, o mais absurdo tecido imaginável, aquele a que chamamos “normalidade”. Somos seres absurdos por excelência.
Em vista disso, poderia parecer sensato buscar em nosso cotidiano, individual e coletivo, a lista dos absurdos que o compõe, com o intuito de extirpá-los, excluindo da nossa vida toda a insensatez, toda a loucura constituinte nos inúmeros absurdos que tecem nossa normalidade. Que outros defendam proposta tão absurda quanto inexequível!
Quanto a mim, defenderei o exato oposto: a absurdização deliberada! Proponho o absurdo pelo absurdo, absurdamente, sem nenhum propósito exceto louvar o absurdo! Propugno o absurdo como ponto de partida e chegada; seja o absurdo pressuposto e meta! Absurdizemos plena, deliberada, radical e conscientemente. Absurdizemos até o extremo, até o máximo que conseguirmos, até os pináculos do absurdo. Absurdizemos até conseguir contemplar o nosso mundo com a mesma exata e absurda naturalidade com que já nos habituamos a vê-lo.