Ciência e lucro
O mundo contemporâneo tem seguido um rumo fortemente guiado pelo dinheiro. Já há algum tempo, as ações em geral tendem a ser justificadas, ou não, em virtude de sua lucratividade. Empreendimentos lucrativos têm sido enaltecidos, os restantes desprezados.
A ciência tem tido um papel paradoxal nesse mundo contemporâneo, importantíssimo e peculiar em um mundo no qual a palavra “ciência” tem sido repetida insistentemente, sob uma aura de respeitabilidade herdada de outros tempos, mas com uns sentidos, digamos, enviesados, conforme explicarei.
O paradoxo da ciência em nosso mundo consiste no seguinte: herdamos e enfatizamos a crença desenvolvida no século XIX de que a ciência é a forma máxima de conhecimento, seu ápice, o fiel da balança em qualquer decisão racional. A alegação anterior parece compartilhada por todos no mundo de hoje, creio que quase todos concordarão com ela. Outra questão consiste em saber o que é a ciência. Quanto a isso, impera a confusão. Vivemos assim em um estranho mundo no qual louvamos a ciência sobre todos os conhecimentos, tendo apenas uma ideia muito vaga do que ela seja.
Creio haver grande confusão entre “ciência” e “tecnologia”, são formas de conhecimento bem diferenciadas. Basicamente, a ciência corresponde ao conhecimento fundamental do mundo, enquanto a tecnologia consiste em aplicações desse conhecimento. Seria, por exemplo, a distinção entre física e engenharia. A física é uma ciência, a engenharia sua aplicação. Não existe uma “ciência da engenharia”, um conhecimento autônomo por trás dessa área: engenharia é física aplicada. O propósito da física é compreender o mundo, o da engenharia, controlá-lo.
Isso nos faz retornar ao paradoxo da ciência no mundo de hoje: esse ícone reverenciado por todos, esse grande sustentáculo de todas as crenças contemporâneas, não dá lucro! A ciência é uma atividade eminentemente europeia do século XIX, vem de outra era. Costumava ser uma atividade nobre, do tipo que se colocava acima das veleidades mundanas, à qual repelia qualquer insinuação de usura, qualquer preocupação com o lucro. Note que não existem grandes cientistas americanos, esses apologetas do lucro, todos os grandes nomes da ciência são europeus, enquanto os americanos têm grande proeminência na tecnologia. Penso que os 2 maiores cientistas americanos tenham sido Noam Chomsky e Hugh Everett, 2 nomes relativamente pouco citados. (Richard Feynman, tido por muitos como o maior cientista americano, comporia apenas o segundo time de sua área, a mecânica quântica).
Obcecados pelo lucro, os americanos operaram, durante o século passado, umas estranhas torções no conceito de “ciência” tendendo a confundi-lo com o de “tecnologia”, atividade eminentemente lucrativa. Creio ter sido essa a raiz da estagnação científica ocorrida no último século. Após a radiante aurora do séc. XX, quando Einstein apresentou a relatividade e a mecânica quântica, as duas grandes teorias contemporâneas, revolucionando profundamente toda a física de então, na maior revolução científica já vista, permanecemos mais de um século patinando no mesmo ponto; mais de um século remoendo e estendendo as mesmas ideias, sem permitir o surgimento de novas, impedindo, de um modo ou outro, a revolução do conhecimento. Note que essa imensa estagnação transcorreu enquanto o número de cientistas se multiplicava vastamente no mundo inteiro. Uma lástima o declínio da criatividade humana durante todo esse tempo. (Estranhamente, vende-se a ideia da ocorrência de um grande desenvolvimento científico nas últimas décadas. Temos permanecido remoendo as mesmas ideias, nada novo sob o sol, apesar da multidão de mentes empenhadas na tarefa).
Suspeito que o imenso conservadorismo científico contemporâneo se deva, em grande parte a questões financeiras: desenvolvimentos revolucionários, que ameaçassem a mecânica quântica, ameaçariam, ao mesmo tempo, a aquisição de verbas gigantescas destinadas a estudos baseados nos antigos princípios, o que justificaria o abafamento e eliminação de qualquer heresia do tipo. A mecânica quântica está blindada pelo lucro. (Países que dominam a tecnologia investem quantias descomunais para o desenvolvimento de novos processos tecnológicos).
Vende-se uma ideia de que a era das grandes descobertas científicas já passou, e de que o conhecimento fundamental já foi descoberto, restando agora, apenas, desenvolvimentos menores, uma balela digna de histórias da carochinha. Consideremos o seguinte:
Livros antigos costumam passar a ideia de que somos, os homens contemporâneos, o ápice da criação, que atingimos o topo, o auge da inteligência. Mas, notemos que a pontuação em testes de QI, em todos os cantos do mundo, vem crescendo, década após década, a uma taxa de 3% por década. Em consequência desse aumento constante, podemos esperar uma duplicação de nossa inteligência em uns 300 anos. Isso será quadruplicado em 600 anos, e decuplicado em um milênio, quando teremos a mesma compreensão que bebezinhos de 2 anos da época! Talvez isso nunca aconteça; o raciocínio revela, no entanto, o quanto é vã a pretensão de que tenhamos atingido o conhecimento derradeiro; somos umas criaturinhas pífias, mas extremamente pretensiosas.
Creio que se tivéssemos mantido o espírito científico dominante no século XIX, investigador e livre, teríamos descortinado uma vastidão espantosa de novos conhecimentos desbravados pelo imenso batalhão de “cientistas” profissionais em atividade desde o século XX.
Suspeito que o principal entrave às revoluções científicas tenha sido a especialização, esse flagelo que incentiva cientistas profissionais a permanecerem radicalmente ignorantes e inertes quanto a tudo o que não pertença a seu próprio campo. Nunca tínhamos sido tão ignorantes (creio que o século XXI trouxe alvíssaras, e que tais criaturas bisonhas, os especialistas, estejam em extinção).
Além disso, o mundo sofreu fortíssima homogeneização durante esse tempo, empobrecemos. Situamo-nos, hoje, em um espectro menor, em uma diversidade menos ampla de ideias e caminhos possíveis que um século atrás, uma lástima. Tal empobrecimento, contrastante com a abundância resultante da glutoneria por lucro, se espraia por todas as atividades humanas, sendo análogo ao que podemos perceber com nitidez na ecologia do planeta. A diversidade da vida perdida, que ressalta a nossos olhos, corresponde a perdas análogas devidas ao mesmo fenômeno de empobrecimento decorrente da homogeneização de todas as coisas, essa obsessão contemporânea.
Penso que o culto ao lucro estabelecido no séc. XX, simultaneamente ao domínio das massas pelo ilusionismo da propaganda tenha sido o principal responsável pela desaceleração científica transcorrida na época, e do deslocamento de foco para a tecnologia, mantendo a designação “ciência”, mas corroendo-lhe a essência revolucionária. (“Ciência revolucionária” é um pleonasmo, bem o sabia Karl Popper, enquanto a “ciência normal” de Thomas Khun corresponde a um conjunto de atividades adjacentes, como o desenvolvimento tecnológico, característico de seu tempo). Especialistas não têm para onde correr, veem o mundo sob um único ângulo, não revolucionam.
A mentira usual, conhecida por todos, de que temos patrocinado um grande desenvolvimento científico é só mais uma das ilusões criadas para gerar lucros. Ciência não gera patente, não gera lucro. Lucros advêm de desenvolvimentos tecnológicos.
Temos vivido uma grande ilusão que perpassa todas as nossas crenças. A ciência foi, por certo tempo, o grande criador de ideias, um imenso gerador de mundos. Nossas crenças contemporâneas eram impensáveis séculos atrás, supomos o nosso mundo de um modo inimaginável por nossos bisavós, fruto, em grande parte, da explosão científica da virada dos séculos XIX/XX. Desde então, temos sido iludidos pela propaganda; subornados por promessas vãs, tornamo-nos pops, abdicamos da razão e da ciência, obcecados pelo lucro. Ressignificamos a palavra “ciência” para canalizar o culto à razão à causa do lucro.
Não me referi ao poder central, esse leviatã cujos tentáculos imensos e inumeráveis se imiscuem em tudo o que há. Por certo tempo, a ciência e a razão, iluminando as trevas, pareceram acuar a imensa criatura sombria que contragolpeou violentamente apossando-se da ciência, espraiando seu domínio sobre a inimiga, escravizando-a para usá-la a seu favor. Incapaz de submeter a ciência ao culto ao lucro, o poder imobilizou-a, substituindo-a, simultaneamente, pela tecnologia, sua assecla reluzente. O poder é o filho do desejo: eu quero! É isso que o justifica. O poder se impõe, submete e arrasta tudo o que o contrapõe. Tudo menos a razão!
É essa a força da razão, único modo de se contrapor ao poder, à brutalidade, à força. Um murro na mesa poderá se impor, poderá obrigar antagonistas ou debatedores a engolir determinada imposição, mas não abalará, nem minimamente, a razão, essa sutil.
Razão e ciência têm perdido terreno; a irracionalidade da mecânica quântica tem sido louvada, agora mais que nunca, enquanto irracionalidades apresentadas sob o rótulo de “ciências humanas” têm sido propostas pelo poder como seus antagonistas favoritos; as sutilezas do poder são sempre nefastas. (Têm surgido louváveis tentativas de racionalização da mecânica quântica, de reconstruí-la tendo em consideração a racionalidade).
Novos tempos se anunciam, no entanto. A derrocada iminente do especialista exclusivo, essa criatura canhestra, permitirá o ressurgimento da ciência. Uma inundação radiante de conhecimentos interconectados e frutuosos se anuncia em meio a uma nova babel, quando louvaremos a diversidade.
Resta conter o lucro, excluí-lo explicitamente do terreno científico, enquanto a nova ciência retorna às origens e se afirma enfaticamente na esfera do domínio público e do compartilhamento.
O paradoxo da ciência é ser negada e louvada pelo poder, pelo mundo pop. Louvada falsamente, de maneira enviesada, em nome da tecnologia e de outras formas lucrativas cultuadas no mundo contemporâneo, ao mesmo tempo que negada em seu cerne, abafada imobilizada enquanto fonte de razão e de luz.
A razão é o único oponente do poder, a ciência, sua filha dileta. O lucro é o substituto da luz no mundo das trevas, do poder, o guia para os caminhos sombrios. Ciência e lucro são formas antagônicas.