CONDENSAÇÃO DO ENSAIO DE ALDOUS HUXLEY SOBRE A EXTENSÃO INEXPLORADA DA MENTE HUMANA
O mundo é a manifestação da experiência do Homem tal como é moldada por seu ego. É aquela vida pouco fértil, vivida de acordo com as experiências do eu individualista. É a natureza tornada cruel pela visão distorcida dos nossos desejos. É o tempo concebido como fatos desagradáveis que se sucedem. É um sistema de comunicação feito para substituir as insondáveis belezas e inexplicáveis circunstâncias que constituem a realidade.
Introspecção, reflexão e registros do comportamento humano deixam bastante claro que um anseio de autotranscendência é tão comum, e às vezes tão forte, quanto a necessidade de auto-afirmação. Os homens desejam intensificar a certeza de ser a pessoa que pensam que são, mas também desejam - e frequentemente – ser outra pessoa. Em suma, eles anseiam libertar-se de si mesmos, ultrapassar os limites desse pequeno universo isolado, dentro do qual todo indivíduo se encontra confinado. Esse desejo de autotranscendência não é semelhante ao desejo de escapar à dor física ou mental. Se fosse assim, as pessoas saudáveis e bem sucedidas, ou, na linguagem profissional da psiquiatria, “excelentemente adaptadas à vida”, jamais sentiriam o anseio de transpor seus próprios limites. Mas, na realidade, elas o sentem. Qualquer homem ou mulher, o mais feliz (pelos padrões da sociedade) não menos que o mais desgraçado, pode chegar, de repente ou gradualmente ao que se denomina “a percepção e o conhecimento puro do teu ser”. Essa compreensão intuitiva da individualidade gera um angustiante desejo de transcender o eu isolado.
Ser seu próprio carrasco é a danação parcial da vida cotidiana; é nossa consciência, geralmente embotada mas algumas vezes penetrante, de nos comportarmos como a média dos seres humanos lascivos que somos. Observa um pensador: ”todos os homens têm motivos para sofrer, mas principalmente aquele que conhece a si mesmo. Todos os outros sofrimentos, em comparação a este, são como brincadeira e aquele que nunca sentiu essa dor, deixe-o afligir-se, pois na verdade, nunca sentiu a dor absoluta. Essa dor, quando presente, purifica a alma não só do pecado, mas também da pena que por ele merecera; e também torna a alma apta para receber a felicidade”.
Se experimentamos uma necessidade de autotranscendência, é porque de algum modo obscuro, e apesar de nossa ignorância consciente, sabemos quem realmente somos. Sabemos que o princípio inteligente que vive em nós não é finito e limitado, mas parte individual da essência eterna do universo psíquico. Sabemos de tudo isso, mesmo desconhecendo as doutrinas nas quais a Verdade Fundamental tem sido revelada.
Estabelecido o desejo profundo que têm os seres humanos de se autotranscenderem, a relutância natural que experimentam em trilhar o caminho duro e difícil da ascensão espiritual, tem levado, com freqüência, à procura de uma falsa libertação, abaixo ou só para os lados de sua personalidade.
Assim é que há no mundo milhões de alcoólatras inveterados, além de um número bem maior de beberrões contumazes. Durante a Idade Média o consumo de álcool era ainda maior do que é hoje. Enquanto tomamos chá, café ou soda, nossos ancestrais se refrescavam com vinho e cerveja. Beber água regularmente era uma penitência imposta aos malfeitores ou considerada uma mortificação muito severa, a ponto de despertar comentários e apelidos depreciativos. Daí sobrenomes como o italiano Bevilacqua, o francês Boilaeau e o inglês Drinkwater.
O álcool é apenas uma das muitas drogas utilizadas pelos seres humanos como meio de libertação para seu eu insulado. E atravessam esses limites mesmo quando a autotranscendência acarreta mal estar no momento e vício no futuro, assim como degeneração e morte prematura. Nada disso importa. Só o que interessa é a consciência, ainda que fugaz, de ser alguém ou outra coisa que não o ser insulado. Em todos os casos porém, o que simula libertação é de fato escravidão e a autotranscendência é invariavelmente descendente, no sentido subumano da degradação pessoal.
Do mesmo modo que o uso do álcool e dos demais tóxicos, a sexualidade primária, praticada por puro prazer e afastada do amor, tem o poder de levar o indivíduo para além dos limites do seu eu insulado. Existe uma sexualidade primária que é inocente (a sexualidade do Éden, segundo D. H. Lawrence) e outra que é moral e esteticamente sórdida (a sexualidade do esgoto, segundo Jean Genet). A segunda (como tristemente se deduz) leva aqueles que com ela pactuam ao mais baixo nível de subumanidade e total alienação. Eis aí, para todos aqueles que sentem necessidade de escapar de sua identidade aprisionada, a constante atração da libertinagem e de equivalentes exóticos da libertinagem.
No que se refere à autotranscendência horizontal, torna-se difícil abrange-la em análise, tamanha a freqüência com que ocorre: para escapar dos horrores do eu insulado, a maior parte dos homens e mulheres escolhem, na maioria das vezes, não subir nem descer, mas escapar para os lados. Eles se identificam com uma causa maior que seus interesses imediatos, mas que não os faz cair na degradação. Essa autotranscendência horizontal pode estar em qualquer coisa trivial como um hobby, gerir um negócio, até fazer pesquisa sobre física nuclear; desde colecionar selos até fazer campanhas políticas. Esta autotranscendência horizontal é de grande importância, posto que sem ela não haveria arte, ciência, lei, filosofia nem civilização. Mas também não haveria guerra, o ódio teológico e ideológico, nem intolerância, nem perseguições. Como poderemos ter o bem sem o mal numa civilização avançada? A resposta é que não podemos possuir isso enquanto nossa autotranscendência permanecer horizontal. “O patriotismo” como um grande patriota francês concluiu no dia de sua execução pelos inimigos do seu país, “não é suficiente”. Nem o socialismo, o comunismo ou o capitalismo; nem a arte, a ciência, a ordem pública, nenhuma religião ou igreja. Tudo isso é indispensável, mas nada é bastante. A civilização exige do indivíduo uma auto-identificação voltada às mais elevadas causas da humanidade. Mas se essa auto-identificação com o que é humano não for acompanhada por um esforço consciente visando atingir a autotranscendência ascendente na direção da vida universal do espírito, os bens alcançados serão sempre misturados a males que os acompanham. Pascal escreveu que “fazemos da verdade um ídolo, porque a verdade sem caridade não é Deus, mas sua imagem”. E a adoração da verdade separada do amor cristão - a auto identificação com a ciência não acompanhada da prática da caridade - resulta no tipo de situação que, presentemente nos defrontamos, de absoluta falta de fé. Não da fé no sentido de acreditar numa série de asserções teológicas e históricas, mas da fé como confiança na ordem das coisas; como uma hpótese atuante capaz de contribuir resolutamente para a esperança.
O conhecimento da verdade acompanhada do amor cristão constitue-se na verdadeira revelação. Isso é libertação, é iluminação, é a visão beatífica daquilo que se denomina a Verdade Fundamental. Assim, a percepção da Verdade Fundamental se acompanha da revelação que podemos definir como a união da alma com Deus. Nascemos com o “Pecado Original”; mas também nascemos com a “Virtude Original” - com a aptidão para a Graça, na linguagem teológica; um fragmento de consciência não decaída, que subsiste no estado de inocência primal e é conhecido tecnicamente somo synteresis. Freud deu muito mais realce ao Pecado Original que à Virtude Original. Ele estudou atentamente os ratos e os besouros negros, mas relutou em ver a luz interior. E, no entanto, existem inúmeras provas da existência da Virtude Original. O conhecimento de que existe um compartimento central da alma iluminado pela luz do amor e pela sabedoria divina tem se revelado no curso da história para multidões de seres humanos. J. P. F. Deleuze observa que possuímos ao mesmo tempo a tocha que nos fornece luz e a bússola que nos indica o caminho. “Essa tocha e essa bússola”, conclue, “estão sempre conosco, mas as preocupações do mundo, as paixões e, acima de tudo, o orgulho e o apego aos bens materiais nos impedem de perceber a tocha e de consultar a bússola”. A Verdade Fundamental pode ser formulada, de forma mais ou menos adequada, no vocabulário de todas as religiões. Na linguagem mais utilizada pela teologia cristã, podemos definir o progresso espiritual (ou a autotranscendência para cima) como resultante da união da alma com o Filho (quando nossa obra refletir um modelo de amor desinteressado) e com o Espírito Santo (quando, como conseqüência de atingirmos um alto grau de altruísmo, o incognoscível faz-se conhecer, através da intuição, de maneira óbvia). Portanto, a união com o Filho através de obras e a união com o Espírito Santo através de benéficas inspirações, torna possível uma consciente e gloriosa união com o Pai.
Contudo, a autotranscendência libertadora é mais fácil de explicar do que de atingir. Na verdade, na maioria das vezes se faz a autotranscendência no sentido descendente, para um estágio inferior da personalidade, ou mesmo horizontalmente, para algo mais amplo que o ego, e no entanto não mais elevado. É desnecessário dizer que essas fugas para substitutos da Graça são, na melhor das hipóteses, insatisfatórias, e na pior, desastrosas.