Ensaio sobre a liberdade

“O homem é livre; mas ele encontra a lei na sua própria liberdade”. Simone de Beauvoir

Se pudéssemos definir simploriamente “Liberdade”: significaria não depender de nada nem de ninguém. Seria a faculdade de seguir a própria vontade, desde que não prejudique outra pessoa, ou seja, o direito de agir segundo o seu livre arbítrio. Mas, seria muito mais do que isso. Liberdade é também um conjunto de ideias liberais e dos direitos de cada cidadão. Tudo seria perfeito se nós humanos fôssemos perfeitos. No entanto, é com um olhar utópico, com um olho na natureza e outro no livre arbítrio que ela se revela questionável.

Segundo Sartre, nós estamos condenados a ser livres. O homem é livre por si mesmo, independente dos fatores do mundo, das coisas que ocorrem, ele é livre para fazer o que tiver vontade, mas responsável pelo seu ato. Seria assim, se tudo fosse combinado, se todos fossem iguais perante a lei. Entretanto, não é o que ocorre. Quando colocamos a justiça ao lado da liberdade, tudo se contradiz e nada se completa. Qual a liberdade dos negros africanos ao serem capturados pelos portugueses? Eram livres por si só? Os negros eram responsáveis pela vida deles mas e dai? Os portugueses nem quiseram saber.

Segundo Kant, a liberdade pode ser racionalizada com autonomia, o indivíduo cria as suas próprias regras, que devem ser seguidas racionalmente. Essa liberdade só ocorreria realmente, através do conhecimento das leis morais e não apenas pela própria vontade da pessoa. Diz que o livre arbítrio é imanente e não deve ser relacionado com as leis. De qualquer modo, as leis na época da escravidão eram morais. Inclusive na própria bíblia, que se julga o cardápio da moral, a escravidão é defendida como prática normal e corriqueira, e nem mesmo o super-Jesus, nada falou ao contrário. Nem ele, nem Buda, nem Maomé, nem o Papa Pio XXII.

Karl Marx dizia que a liberdade está diretamente ligada aos bens materiais. Os indivíduos manifestam sua liberdade em classes sociais, e criam seu próprio mundo, com seus próprios interesses. De fato, a classe mais alta seria mais livre do que as classes mais baixa pelo seu poder de riqueza. Mas na prática sempre haveria o medo da classe baixa se rebelar, e esse medo inerente já seria motivo para contradizer essa liberdade. Assim, essa liberdade seria apenas em época de paz e controle, como se controla o gado, ela seria restrita, fechada, e momentânea. Todo poder que não emana do povo acaba na guilhotina.

Santo Agostinho - sempre ele - lançou a ideia do Livre Arbítrio para justificar a presença do mal e defender o ponto de vista de deus. Ora, se deus é bom por que inventou o mal? Para o homem escolher seu caminho – responderia. De volta à África, como dar o livre arbítrio para aquelas crianças esqueléticas, sem nada para comer, muitas delas aidéticas, quanto mal elas fizeram nas encarnações passadas? E se fizeram não se lembram de nada, qual o sentido? Se deus permite ao homem – um ser imperfeito - seguir seu caminho e não interfere, sendo onisciente, sabe que todos estarão condenados, a não ser, pela sua clemencia. Neste caso, por mais livre que um homem se torne, sempre será julgado por esse deus criador.

E os paralíticos e cegos de nascença? O que dizer dos que morreram em terremotos, tsunamis? Imagine um avião com duzentas pessoas caindo. Qual o livre arbítrio deles? Talvez Agostinho justificasse que a maldade é uma falta de caráter. O mesmo caráter que ele não teve na sua juventude. Mas se a maldade é inata segundo muitos pedagogos - seguidores de Platão - onde é afirmado que "pau que nasce torto morre torto", de que nos adianta o livre arbítrio? Deus mesmo não nos deu muitas escolhas, amá-lo ou acabar no fogo do inferno.

Para Freud a liberdade envolve responsabilidade, e muitos não querem carregar essa responsabilidade, é preciso estudar para ser salvo da ignorância, é necessário trabalhar para se livrar da vitimização da pobreza, é útil construir uma obra para não ser ocioso, é preciso construir uma família para se livrar do egoísmo, assim, tudo é fabricado e construído no intuito de nos livrarmos de um mal maior. Desse ponto de vista, temos uma escolha. Ou lutar por um ideal, ou se entregar ao destino. A liberdade seria um ideal de superação, de luta, e de conquista. Mas ela sempre seria um luta egosita.

A contracultura - pós guerra do Vietnam – seduziu muitos jovens americanos a abandonarem o conforto de suas casas para se aventurarem sem lenço e sem documento na busca pela liberdade cujo lema era “Paz e Amor”, no entanto - esses jovens também chamados de hippies - barbudos, cabeludos, trajando uma surrada calça jeans, sandália de couro, e uma camiseta do Guevara, perderam-se no ócio, no vício, na total falta de responsabilidade sexual, viviam em estado vegetativo, deixando um legado de frustração para os libertários. A liberdade não sobrevive aos prazeres carnais. Ela precisa um pouco de orgulho, mesmo sendo uma louca desvairada.

Descartes acreditava - de certa forma - encontrar na matemática todas as explicações. Ora, se pensamos, logo existimos, e somos livres para pensar. E de fato o pensamento é livre, gratuito, e infinito. Mas o pensamento verdadeiro pode ser equivocado, falsas premissas resultam e conclusões erradas, e já sabia disso Aristóteles, o homem mais sábio da face da Terra - em suas devidas proporções - tinha lá seus escravos e nada fez em prol deles, nem escreveu sobre o tema. Ele era rico e podia estudar tudo que lhe interessava, qual seria a liberdade de quem não tinha condições de estudar?

Deixando os filósofos de lado, qualquer ser humano mediano - pelo senso comum - sabe que sem dinheiro nada funciona. Tente ir à algum lugar sem dinheiro. Este ser mediano sabe, sem conhecer nenhuma filosofia que a necessidade faz o homem. Somos reféns da aposentadoria, do pecúlio, da previdência social, do seguro de vida, do seguro do carro, do plano médico. Temos que tomar estatinas, insulinas, antidepressivos, antivirais, vacinas, e pagar os impostos. E Darwin construiu sua teoria observando a natureza. O mais apto se adapta às circunstâncias. Temos que dançar conforme a música, remar a favor da correnteza. E tudo tem seu preço.

Então, a liberdade consistiria em estar no lugar certo, na hora certa, sem adversidades. Mas, de qual mundo estamos falando? Se neste insignificante planeta tudo se diz e contradiz. Basta olhar para este século – de tremendas inovações tecnológicas – vemos mulheres sendo apedrejadas, sem direto a voto; temos ainda homens praticando circuncisões, votos de silêncio, jejuns, ou com restrições alimentares e proibições de comportamento, deixando a barba e o cabelo crescer, reféns de regras infantis, guardando um dia da semana, se ajoelhando oito vezes ao dia. E odiando e praguejando todas as outras crenças estranhas a ele.

Ainda, seguindo o raciocínio do Meio, estaria a verdadeira liberdade na natureza? Olhem o pássaro condicionado à gaiola, deixemos a gaiola aberta e o pássaro nem sabe que pode fugir e se fugir não terá condições de viver natureza, será uma presa fácil. Um elefante de circo fica preso a uma vara de bambu e permanece ali, e não escapa. O lugar e a hora podem estar em sincronia, mas também o costume, a condição do Meio em que se submetido é que realmente faz a diferença. Voltaire já dizia que a liberdade consiste em andar desde que não se sofra de gota.

No Budismo - o desapego – uma das nobres verdades, revela que somente aquele que se livra de toda matéria é que encontra o caminho da iluminação, onde entrará em êxtase no Nirvana, e terá a liberdade de transcender ao carma. E escolhendo a renuncia, estará livre de todo sofrimento. Se tivéssemos uma prova do Nirvana, e outra, a que realmente incorporamos carmas de outras vidas, teríamos mais oportunidade de raciocínio. Embora reconheçamos a ideia de apego, quanto mais temos, mais estamos presos, pois “ter” acarreta em custo e responsabilidade, mas se nada temos, de tudo precisamos, nos tornamos vítimas das circunstâncias.

Reconhecemos que o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", criado em 1793 para expressar valores defendidos pela Revolução Francesa, foi uma avanço tremendo para a humanidade, que mesmo com a guilhotina acesa, e com a recaída ao se apostar logo após em Napoleão, inspirou muitos países a buscar sua liberdade, caso do Brasil e dos Estados Unidos. Entendemos que foi através de muito sangue e de muita injustiça que se conquistou a base de toda a civilização atual. Quantas batalhas, fome, pestes, doenças, pragas, quantas famílias desalojadas, abandonadas, expulsas... Quanta dor, ódio, atrás de um lema promissor!

Entretanto, todo esse avanço, apenas resolveu uma pequena parte do problema. Na África a escravidão tomou nova cara, algumas tribos continuam escravizando outras. No Afeganistão, Irã, e no mundo Árabe as mulheres ainda andam de burca, são impedidas de dirigir, e são obrigadas a aceitar a poligamia de seus maridos, na China, as crianças trabalham como escravas do sistema, sem nenhuma garantia trabalhista. Na Índia, a cultura do estupro se propaga dia a dia em céu aberto. Na Rússia, máfias recrutam pessoas como vodus. Em Cuba e na Venezuela não se pode reclamar de nada. Na Coreia do Norte, não se pode nem se coçar.

Vivemos cada vez mais no meio de muros, das cercas elétricas, dos arames farpados, dos ofendículos, vivemos contando vantagens, cada qual marcando seu boi, marcando terreno, escolhendo um bom bairro para se morar, encomendando um pedaço do céu. Fazendo carreira e pós graduação em somar e multiplicar seu quinhão. Reféns de aplicativos virtuais. Mas tudo isso faz parte. A verdade é que a liberdade não paga as contas no final do mês. Estamos alienados, histéricos, e nessa histeria coletiva, ainda acreditamos em lendas, e mitologias. Acreditamos que vamos “voltar” evoluídos. Livres de toda ostentação.

Na verdade, somos testemunhas das evidências do DNA - prova cabal que não viemos do barro - que nos aproxima em 98 por cento do macaco, nossos primos humildes, que pode se dizer que são mais livres que nós, desde que vivam no meio natural, e não confinados em zoológicos ou experimentos científicos. Hoje eu compreendo mais a ideia do filme “O Planeta dos Macacos.” Mudam-se os amos. E não importa a espécie, a origem, não é relevante a etnia, a raça, a cultura, muito menos a cor, a crença, e a inteligência nata. O que importa é a capacidade de distinguir o que é real e o que é fantasioso, o que tem lógica do achismo.

Somos cada vez mais dependentes das ciências, da eletricidade, da internet, dos confortos tecnológicos, hoje é impossível se viver sem geladeira, chuveiro elétrico, água encanada, gás de cozinha, veículos, tvs, computadores. Tudo isso já faz parte de nosso dia a dia, e nem imaginamos um mundo sem essas coisas. Conseguimos aumentar nossa expectativa de vida, chegamos a Marte, e vigiamos toda a galáxia. Mas todo esse conhecimento também gera uma dependência, dependemos da nossa origem, e toda dependência é inimiga da liberdade.

Destarte, é melhor sermos um escravo bem confortado, do que um pregador de liberdade vagando por ai. Ele teria que morar numa caverna distante, sem água encanada, sem eletricidade, sem nenhuma tecnologia, teria que se lavar no rio, caçar, pescar, e plantar sua própria comida. Mas será que a caça, a pesca e a colheita também não é uma dependência? Para tudo isso seria preciso um rio farto, um terra fértil, um ecossistema rico, e onde encontrar esse lugar? Provavelmente um grileiro já encontrou. E este nem sequer quer ouvir falar em liberdade. Estamos condenados a sermos escravos, e livres apenas para escolher a nossa prisão.

Quando entramos na faculdade, não escaparemos de um professor de esquerda, que tenderá a deixar a barba crescer e devanear sutilmente em nossas mentes com sua ideologia do caos e da injustiça, - como uma segunda chance de salvarmos o mundo, e lá vamos nós defender a liberdade de imprensa, de culto, de pensamento, liberdade por opção sexual - mas depois de um ano de diploma - todas essas teorias ficarão escondidas atrás desse diploma, o que valerá é o poder de barganha do seu trabalho. Um ou outro, no entanto, arrotará esses saudosismos em bares infestados de fumaça de cigarro e rescindindo à cachaça. Quem escutar se encantará com essas ideias na mesa de um bar, mas levará para o túmulo o sucesso da fórmula perfeita.

Eu poderia ingenuamente dizer que a minha liberdade consiste em caminhar enquanto eu queira realmente caminhar, se tiver que caminhar por uma obrigação vai-se água abaixo toda liberdade do ato. Para uma simples caminhada eu preciso de um calçado, provavelmente um tênis fabricado por uma criança escrava chinesa, preciso de roupas, preciso de certas mercadorias. E tudo hoje é mercadoria, tudo é feito para ela circular, estradas, portos, trilhos, aeroportos, galpões, atacadistas, Sedex 10. As vendas pela internet seduzem até o Papa. Somos todos gados sem fronteiras, escravos do “dinheiro de plástico” - e tudo profetizado por Marx.

Segundo Pablo Neruda: “Você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências”. Enquanto a mercadoria, o dinheiro, a exploração sexual, o apelo da religião estiverem em primeiro plano, não haverá liberdade de ação. Só nos resta escolher nosso amo. A liberdade não é uma dama puritana, é uma prostituta viciada no ódio. No ódio a tudo que que é responsável e poderoso. A liberdade não morre de velhice na cama. Morre prematura numa maca fria, ou no asfalto gelado, morre tacitamente por um tiro de fuzil, vítima de uma bala perdida, e já morreu muitas vezes numa forca e na cadeira elétrica. A liberdade morre todo dia e, no entanto, não se esgota de tanto morrer, morre em pecados, em crimes, morre para nos castigar, e no fundo no fundo não passa de uma grande quimera.

Wagner Ferreira

WAGNER FERREIRA
Enviado por WAGNER FERREIRA em 23/07/2016
Reeditado em 23/07/2017
Código do texto: T5706411
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