Sobre a felicidade
Costumamos pensar que a felicidade seja algo fortuito que se nos apresenta, ou não, como a chuva ou o sol; não é.
Devemos buscar e cultivar a felicidade ativamente, trata-se de uma obrigação tão importante quanto o banho ou outras boas maneiras.
É certo que contingências fortuitas interferem em nosso humor e em nossa felicidade, deve mesmo ser assim. Mas, embora não devamos ter todo o controle sobre nossa felicidade, devendo deixar certa margem às vicissitudes, devemos manter um amplo domínio sobre ela, exigindo de nós mesmos usufruir a felicidade sempre que não existam obstáculos que a impeçam, atentando também para a eliminação de tais obstáculos.
Tendo retirado os obstáculos à felicidade, cumpre tentar alcançá-la. Uma vez alcançada, a felicidade deve ser cultivada constantemente, mantida, alimentada.
Temos dado muito pouca atenção ao hábito, ao costume, embora essa disposição regule amplamente a nossa vida. Vemos o mundo sobre as lentes do costume, tudo o que vemos e sentimos é filtrado por esse preceito. Tudo o que vemos ao nosso redor teria sido considerado miraculoso se estivesse sendo visto pela primeira vez; todos os objetos que vemos são maravilhas estupefacientes, e cada parte de tudo o que há, por mais mínima que seja, se observada com atenção revela encantos extraordinários, dignos de enorme perplexidade.
O mero hábito, no entanto, atenua todo o colorido do mundo, tornando-o cinzento, morno e sem atrativos. Note serem os nossos olhos que, desse modo, transformam o mundo, destituindo-o de beleza e mistério, note que somos nós que fazemos isso, ainda que inconscientemente. O mundo é sempre prodigioso, e são os nossos olhos que os despojam de tal condição. E assim o fazemos, sempre, em decorrência do hábito.
Utilizado dessa forma, o hábito parece uma ferramenta torpe criada apenas com o propósito de roubar do mundo todo o seu encanto; ele pode ter tal consequência. Utilizado com sabedoria, no entanto, será o próprio hábito que nos permitirá cultivar a felicidade.
Tendemos fortemente a buscar repetições, assim funciona a nossa mente, nisso se baseiam quase todas as disposições que nos permitem discernir o mundo. Também buscamos e exercitamos as repetições no que concerne às afecções do espírito. Tendemos a repetir hoje as disposições da alma por que passamos ontem, de modo que o exercício prévio da felicidade nos predisporá à felicidade presente do mesmo modo que a infelicidade predispõe à sua própria perpetuação. A existência de oscilações em nossos humores permite que controlemos e regulemos tais condições. Assim, ao nos percebermos felizes devemos usufruir, compreender e cultivar esse momento e as causas que o propiciaram, do mesmo modo que os momentos infelizes devem no induzir à perspectiva contrária, de modo a que nossas ações desfavoreçam sua repetição futura. Assim, propiciando ativamente a repetição dos momentos felizes, e abafando e eliminando os infelizes vamos induzindo e cultivando o hábito da felicidade.
Existem também, é certo, condições mínimas para sermos felizes. A menos que sejamos sábios supremamente iluminados não conseguiremos ser felizes em meio à dor e a privações intensas. Nem conviria sermos felizes na pobreza extrema, em precariedade tão grande que nos privasse de comida ou bem de qualquer tipo que ameace nossa saúde. As condições materiais que nos permitem a felicidade, no entanto, são mínimas, bem menores que as que, muitos de nós, hoje, tenhamos já assegurado, embora mergulhados em uma tristeza pegajosa como um pântano de sargaços.
Também as drogas divulgadas como panaceias embora inventadas com o propósito do lucro tendem a nos dificultar o foco na felicidade, capturando-nos em uma arapuca que nos impede a felicidade ao mesmo tempo em que nos prende ao ciclo retroalimentado da necessidade da droga.
Penso, desse modo, que devemos considerar a felicidade como um hábito e cultivá-lo, atentando para os momentos em que a usufruímos e suas causas. Cultivando a felicidade, repetindo as circunstâncias que a propiciam, tenderemos sempre a retornar a ela, facilitando alcançá-la momento a momento.
Tanto a felicidade quanto a infelicidade tendem a se perpetuar se mantivermos nossa vida como está. Habituemo-nos a ser felizes.