Amigo Sonâmbulo
Cronista:- Na semana passada chegou a primavera, semana que vem são as eleições, e já houve até eliminatórias no futebol.
Personagem:- Então, o que esperas? Ergue-te cronista, e cumpre teu dever... Mas o cronista sonha, nem o poder do voto, as açucenas primaveris, ou o clamor do maracanã o despertam... Será Morfina? Será maconha? Será...
Cronista e Personagem:- Será amor?
Cronista:- Talvez um vago sonho de amor..
Personagem:- Ele sorri, alguém lhe falou da bem amada de um amigo, , a que se vestia de rendas negras, e peles caras... Era sexy! Ele sorri, como quem manda um recado...
Cronista e Personagem:- Sede felizes!
Personagem:- Mas a si mesmo, felicidade ele não pretende, nem pensa.
Cronista:- Será que todo escritor ama?
Personagem:- Animula, vagula, blandula, lemula essa quem ama, meu amigo sonâmbulo.
Cronista:- Sim, a perambular pela noite, e não ter idéia alguma, já teria sido mulher se quisesse.
Personagem:- Mas se fez tão longe, ficou tão longe que é uma sombra junto a mim, pairando.
Cronista:- Toda letra é amiga?
Personagem:- Amiga? Ele se humilha, a amiga é feito crase, no tempo em que todo cronista era bom, e ao invés de dizer: ema lema, eva, leve, leva, leme, dizia:
Cronista:- A crase não foi feita pra humilhar ninguém.
Personagem:- E tomado pela loucura de não ter idéias, ele ouvia o galo cantar, e sabia aonde, agora ninguém mais sabe. Talvez saibam, mas não digam!
Cronista:- Importa pouco, já estou louco, e deixei fugir destas humildes folhas um personagem, que comanda a vida, e dá palpites aos surdos. Tenha uma vida assim e não desejará sequer beijar o pé da amada, não se angustiará, não será mais... Esta é na verdade a grande consolação de um mundo feito de realidade e fantasia, mas entrementes, ainda estamos vivos.
Personagem:- Todos nós, menos ele, o sonâmbulo.
Cronista:- Eu sei que na vida há sol, vento, ondas a estourar na praia.
Personagem:- Mas isto não o desperta, está tão louco que se agita, e fala de mim, como se fosse algo além do possível. Está dopado de amor.
Cronista:- Como devolve-la ao papel, com dignidade? A ela que já teve gestos sem vida, e hoje só menospreza e julga.
Personagem:- Como lhe devolver a dignidade, a ele que já foi duro, viril. Amar não é viril.
Cronista:- Amar assim, não é viril, amor de menino burro, ou doente
Personagem:- Mas vejam que ele disfarça bem, perfeitamente é escritor... Ela viajou!
Cronista:- Ah viajou? Mas escute você já viu aquele filme, cheio de menininhas nuas... Ou falar nisso você viu aquela revista nova...
Personagem:- Enfim, qualquer frase serve de ordem pra esquecer o ausente.
Cronista:- Certo Manuel Bandeira fala de uma limpa solidão, ou alguém disse isso a ele, não creio, a solidão é cheia de detritos, ainda mais a minha cheia de criatividade e ideais, de quem já está louco e ninguém tem pena.
Personagem:- Mas por que lamentar o sonâmbulo? Ele sorri, neste momento está feliz, seus dedos movem-se como se acariciassem algo de extremo valor, ele murmura: vem... vem... entretanto fazer isso e vê-lo assim nos corta o coração.
Cronista:- Podiam me prender, me atacar para que reaja, dar gargalhadas para me acordar, um tapa na cara, morder pimenta, tomar dixemetrina de propansil nitroso, podiam tentar me deixar viver...
Personagem:- Mas na verdade, temos coisas mais importantes a fazer, e desistimos de recuperar o sonâmbulo, vamos disfarçando, disfarçando, até que um dia ele morra, e vamos dizer sem muita hipocrisia: coitado.