ENSAIO SOBRE O MEDO
“A estupidez das pessoas não deriva da sua falta de inteligência, mas da sua falta de coragem.” (Michael Kerr)
Nascemos sedentos de medo. Do medo que arrepia. Do "deliriuns tremens" que transcende a lógica e a noção de existência. Quando o medo entra em cena as mãos suam, as pernas tremem, o coração acelera, o rosto cora, o peito sufoca, a boca seca. O medo é o principio de tudo, fez do mundo um lugar perigoso, que morde, fere, esquarteja, contamina, infecta, corta, sangra, engorda, definha, queima, arde, afoga, asfixia, envenena, excomunga, exclui, oprime, enjaula, acossa, que ama e odeia.
O medo faz a vida fazer mal à saúde. Ele catalisa todas as sensações numa osmose infinita de pensamentos, metamorfoses e sentimentos. Tudo transcendendo no tempo e no espaço, nas fronteiras da insignificância humana, no lado perdido do universo, que calado, finge que não nos vê. E o universo segue em frente, segue incólume, sem remorsos, com sua expansão, dizendo para si. “Sinto muito”. O medo é o medo! O medo é o cara!
É o medo que nos domina com seus livros apocalípticos, suas profecias escatológicas, e suas frases de efeito moral. Ele está vivo dentro de nós, está em toda parte, acompanha o alpinista nos Alpes, o marinheiro nos mares, o medo é a miragem dos beduínos no deserto, o medo aliena o faquir, é o medo que dizimou os índios nas florestas, que isolou o ermitão e o esquimó, que leva freis nos mosteiros ao silêncio profundo, que faz o budista meditar, com que o cristão se ajoelhe, o mulçumano exploda, medo que abole o risco de nossas vidas como um pecado, renunciando aos nossos parentes, ao mundo, e a vida.
O medo nasce do julgamento do mundo, da aceitação do destino e da rejeição da morte. Juntem o medo do insensato do Eclesiastes, com a do apostolo Paulo quando caiu do cavalo, com o medo de Isaque quando seu pai Abraão quis fazer dele um churrasco. Juntem o medo do goleiro de tomar um frango com o soldado na guerra. Ao medo de encontrar um tubarão, uma onça, uma cobra, mais o medo de voar num avião. Vão-se somando os medos dos raios e dos trovões com o da dor física, moral, psicológica; adicionem o medo com a preocupação, o estresse, e a ansiedade. Somem o medo de toda parte, no esporte, na arte, com medo do sequestrado no cativeiro, com o do presidiário na cadeia, mais o medo da classe media diante da classe pobre, e com o medo o governo de uma revolução, somem todos os medos...
Mas por que temos tanto medo de enfrentar os obstáculos, medo de tomar atitudes, medo de enfrentar a realidade, medo de decepcionar alguém, medo de fazer alguém sofrer, medo de pensarem mal de nós? Por quê? Medo! O medo é tudo, afinal, não sabemos de onde viemos, o que somos, e para onde vamos.
O reino do medo é deste mundo, onde reina à revelia da nossa vontade, com grades e muros, cadeados nas janelas, ofendículos, cercas elétricas, câmeras de vigilância, armas, lutas e defesa pessoal, e por medo temos que nos defender o tempo todo, do sol, da poluição, do verme da alface, do parasita da carne de porco, temos que nos defender dos comerciantes, dos advogados, das propagandas enganosas, dos alimentos nocivos, e tudo é defesa, existe um Ministério da Defesa, o pentágono, a ONU, temos que usar anti vírus em nossos computadores, e ainda nos defender dos chatos, da censura, dos padres pedófilos, dos pastores milionários, das cáries, do colesterol, da burca, dos policiais despreparados, dos patrões, dos piolhos, das pulgas, dos carrapatos, dos puxa sacos, dos que dão falsos testemunhos, dos vizinhos, temos que nos defender até mesmo dos amigos, pois quem sabe um dia viram inimigos, eles sabem tudo de nós. Defendamo-nos das vinganças, para que não postem vídeos na internet, dos ratos do poder, e dos mentirosos. A mentira é apenas um recurso que usamos para sustentar o medo em nós. Quanto mais mentimos, mais temos.
Nossos filhos são amamentados com leite e medo, crescem ingerindo o medo do boi no momento do abate, o medo do frango na hora da degola, o medo do peixe com a boca do anzol. Respiramos o medo da mão do cirurgião com o bisturi entre os dedos, vemos o medo do aluno no vestibular, que pode decidir seu futuro, medo de faltar um ponto, de errar a crase, o medo silencioso fazendo parte do nosso cardápio, isso é saudável, isso não é saudável. Medo de engordar. O medo segue por todos os lados. O medo dos camundongos diante dos testes de remédios, o medo às cobras nos canaviais. Medo de uma nova guerra, da bomba atômica, enfim, explodir.
Existe também o medo se contorcendo na cadeira do dentista, na cadeira elétrica, na cadeira de rodas, e lá está ele na hora de atravessar a rua, de andar de avião, ao ser assaltado, estuprado, baleado por uma bala perdida. E o medo da traição, do desemprego, da rejeição, do preconceito das minorias? E ainda há pior, o medo do inferno. E por mais absurdo que possa parecer, o medo dos medos, o medo de deus! Assim, o medo coloca covardes e heróis no mesmo barco, fortes e fracos no mesmo umbral, ricos e pobres no mesmo cemitério. Maldito medo nazista, comunista, maldito medo capitalista, o medo liberal da inflação, com o dedo no gatilho, medo que coloca uma lombada no meio do caminho, maldito medo inerente que nasce na infância e fica para sempre.
O medo é aquele mocinho das series televisivas, ele corre todos os riscos, sai vitorioso, mas no fim, voltará a estaca zero, no princípio de tudo. O medo é o meio, o fim, porque o começo já faz parte da história, já é redundante. É o medo que nos faz fugir, desistir, se esconder, se defender, atacar, ofender, matar. É o medo que aperta as bordas das bocas impedindo a língua de soltar o grito de alforria. É o medo que faz uma pessoa mentir para si mesmo, ter uma dupla personalidade, ideal, a assistir filmes de heróis, a comer comidas naturais, que tamborila em dúvidas, insegurança, e timidez.
É o medo que soa pelos sinos das igrejas anunciando o dia e a hora da remissão dos pecados. Intimando de lá, do ponto mais alto da praça, no campanário de uma catedral centenária, a salvação. É o medo a brilhar bruxuleante e solitário numa vela na escuridão dos pensamentos: caso ou não caso, compro ou não compro, faço ou não faço? É o medo na fila de espera, estocado na prateleira do medo para escolher o hospedeiro perfeito como um parasita. É o medo na conta bancaria, no martelo do juiz, na placa de contramão, o medo que benze, que morde e assopra, como se nós fossemos bonecos vodus.
Às vezes a pessoa pode não estar consciente do medo, não percebe as inseguranças. Não existe nada mais nervoso do que o medo sem destino, um medo perdido na areia, sem encontrar sua cereja do bolo, ele sai atrás das mulheres, as presas mais fáceis, encontra a mulher do bandido, avista a mulher do policial e indeciso se divide e penetra nas duas, goza nas suas coxas, sobe pelos peitos e soca um beijo de língua, deixando as duas em delírio. Esse medo tarado é o mesmo que ataca o padre no meio da noite, se enfia entre a cruz e o pijama, deixando o padre pelado, calado, até que ele vence o silêncio, vence o padre, vence a cruz, sobe pelas paredes, e acaba nas nuvens. Servos do medo! Angustia infinita, ilusão derradeira. Essa é a sua cara, revelando suas raízes, suas patologias, suas fobias, suas síndromes de pânico, que gera o medo de viver, do irracional, e o mais perigoso: o medo ilusório, aquele que só existe em nossa cabeça.
O medo não é apenas uma emoção relacionada aos nossos instintos de sobrevivência, é o destino derradeiro, onde cada um com sua cota preenche o vazio da existência. Somos seres do medo. Vamos vivendo em falsas dicotomias: lute ou fuja, ou vai ou racha, tudo ou nada; uma amálgama de maniqueísmo, para os vencedores às batatas, ficarão registrado na História, esqueçam os perdedores, os medrosos, escrevam apenas a versão dos vencedores. Mas existe algum sentido no medo?
O sentido do medo sempre terá a morte por perto, do desconhecido, sempre será de perda, da falta de sorte, da solidão, da rejeição, do preconceito, das dores, das injustiças, da vida perdendo o controle e escapando de nossos dedos; com o ódio assoprando mansinho nos nossos ouvidos, com os olhos de soslaio na inveja, com a boca na luxuria, e respirando vaidade. O medo é um orgulho ás avessas, um ciúmes doentio em ser perfeito, incorruptível, imaculado, o medo é um vicio maldito.
O universo nos ignora, não somos a medida de todas as coisas. Viemos de um mecanismo de reprodução que usou o medo como sobrevivência, nos desenvolvemos em células complexas, adaptativas, células que envelhecem, com prazo de validade, até se transformarem em outra coisa, alimento dos vermes, adubos, combustíveis, poeira. Somos mais inteligentes e racionais que outros animais.
Mas, somos apenas células estúpidas e delirantes de medo que viajarão num ataúde para uma lápide, cujo refrão estampado com letras maiúsculas, num adagio de hipocrisia dirão uma mentira na última lembrança, se por acaso alguém pagar por isso. Se não, só nos resta a cova anônima e fria. O medo é a nossa casa e a nossa sombra, um fantasma com licença para matar. Gostaria muito de afirmar: não tenho medo de nada. Mas não posso, a vida é uma ilusão, mas estou vivo, então me alio a ele, e seja o que deus quiser.