MACHADO DE ASSIS - ANÁLISE DO CONTO: “CANTIGA DE ESPONSAIS"

PAULO HENRIQUE COELHO FONTENELLE DE ARAÚJO

n. USP: 3710046

Professor: José Miguel Wisnik

MACHADO DE ASSIS

Análise do conto: “Cantiga de Esponsais” em contraposição ao conto “O espelho”

Trabalho de Aproveitamento da Disciplina de Literatura Brasileira IV na graduação do Curso de Letras da F.F.L.C.H. da Universidade e São Paulo.

São Paulo

Janeiro de 2005

O primeiro conto apontado no título dessa análise narra a experiência de vida de um músico, frustrado por não lograr atingir a perfeição artística que imaginava trazer em sua alma. Mestre Romão, do conto “Cantiga de esponsais”, que regia missas alheias como se fossem suas, mortificava-se por não compor algo, qualquer obra, mesmo um canto esponsalício, iniciado havia muitos anos quando era recém-casado e antes da morte prematura da esposa. O seu impulso criativo objetivava deixar um pouco de alma na terra. Levou a frustração até a morte.

Há várias possibilidades de leitura desse texto que representa bem o universo machadiano, quando constituído por questões que envolvem nossa efetiva afirmação como seres humanos, ou seja, o que se trava no conto e que trava a nós leitores - na identificação instantânea com a tragédia pessoal do maestro - é a consciência ou intuição de que cada homem se constitui progressivamente no limite entre “ser” e “não ser”; na idéia de um “eu” dependente de uma auto- imagem externa; no desejo de efetivar essa imagem, ou alma externa tão oposta a uma outra alma, interna e fragmentada, que mal compreendemos, pois as referências estão perdidas dentro de nós, criaturas incompletas; restando-nos, na melhor das hipóteses, aceitar esse malogro existencial que, no conto, coincide com o momento da morte da personagem. É um desfecho irônico e trágico.

O conto “Cantiga de esponsais”, elabora então uma teoria da alma e nesse ponto assemelha-se a todos os textos machadianos em que os argumentos envolvem processos de afirmação do “eu”. Um deles é o conto “O espelho” onde o personagem Jacobina considerava, diante dos amigos, certo episódio de sua juventude, quando uma farda de alferes – ou a simbologia da mesma dentro do meio social em que vivia - posicionava-o como um indivíduo único, admirável em oposição a sua alma interior ainda mal formada.

O conto “O espelho” sinaliza para uma teoria da alma, mas termina sem esclarecer se o personagem Jacobina superou esta dialética rarefeita entre não ser e ser outro, o que provavelmente não ocorreu, pois o mesmo afirmou em determinado momento da conversa com os amigos, que ele mesmo havia trocado muitas vezes de alma exterior. Tudo, no entanto, nesse aspecto da obra machadiana, destaca uma idéia de processo que, se no conto “O espelho” não é conclusivo, em “Cantiga de esponsais” é levado a efeito até a aceitação do personagem com relação a sua própria incapacidade para composição musical.

“Cantiga de esponsais”, contudo, na comparação ao conto “O espelho” não apresenta uma farda reluzente de alferes como simbologia de uma alma externa a ser alcançada pelo personagem. Nem mesmo a fama que Mestre Romão trazia como regente (pois como o texto afirma, Mestre Romão era um nome familiar e dizer familiar e público era a mesma coisa) e que o destacava no meio social em que vivia, pode ser caracterizado como uma couraça impeditiva da sua vocação como compositor( as expectativas geradas pelo maestro em seu público o impediriam de criar). Não, a teoria da alma externa - alma que de fato existiu para no personagem - demonstra o colapso de uma experiência de fusão, que nos remete ao mito da unidade perdida do homem em relação a mulher ou mesmo a uma concepção de amor romântico não superado, condição essa que mais tarde foi observada pela psicanálise freudiana.

Note-se que a parte que cabia ao maestro, sua alma interna era a sua sensibilidade como regente e também as suas muitas óperas e missas e harmonias novas e originais jamais compostas, porém, a sua alma externa cuja efetivação o maestro mostrou-se dependente, a ponto de impedir a sua própria vocação concentrava-se na figura da ex-esposa, na aceitação amorosa efetivada por tal mulher, logo diluída com a sua morte prematura.

A experiência amorosa do personagem nos remete a obra filosófica de Platão, denominada “O Banquete” que apresenta sob a forma de diálogos as idéias de Agatão, Aristófanes, Fedro, Erisímaco, Pausânias e Sócrates, sobre o amor, o bem, a beleza e a felicidade. Em um dos diálogos expõe-se a idéia de que os seres eram duplos e esféricos e os sexos eram três: um constituído por duas metades masculinas, outro por duas metades femininas e o terceiro um sexo andrógino, ao mesmo tempo homem e mulher e que Zeus, para enfraquece-los separou-os fisicamente. Separou o homem da mulher, sendo a vida do homem uma busca eterna por aquela sua metade perdida.

Machado de Assis parece nos reapresentar tal teoria e reafirma a força criadora da fusão amorosa em dois momentos do conto, momentos em que a representação da unidade homem e da mulher foram novamente refeitos: o primeiro, três dias depois do maestro estar casado quando iniciou o seu canto esponsalício terminado em uma nota “lá” e o momento seguinte, quando a mulher de um casal vizinho, embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, iniciada em uma certa nota “lá”.

A questão da nota “lá” e da frase musical ser cantada exatamente pela mulher do casal vizinho, pode não significar uma coincidência, mas a reafirmação da idéia do mito grego, ou melhor, o desfecho do conto explicaria porque o maestro durante o seu casamento só compôs aquele canto esponsalício incompleto: talvez o prosseguimento da citada peça musical, na efetivação da unidade amorosa (e, conseqüentemente. no prosseguimento da carreira de compositor do Maestro Romão) fosse incumbência da ex-mulher do maestro, fosse a parte que lhe cabia naquele todo; fosse a restauração da totalidade primitiva cortada por Zeus. Mas isso é uma hipótese despretensiosa.

O conto, em uma ótica menos mítica, tem o seu entendimento fechado também na figura da ex-esposa do maestro. Ambos eram jovens quando casaram e aquele adolescente - no caso o maestro - como a maioria dos adolescentes, não amava propriamente a esposa, mas o amor, o amor idealizado, romântico, perfeito, amor como metade ausente sem representação física, que o impediu de lançar-se nas contradições do exercício efetivo daquele relacionamento, por não se julgar a altura do sentimento e da mulher amada. Tal exigência de perfeição sobre aquilo que o maestro considerava o máximo, gerou a impossibilidade na sua vida sentimental comprometendo por ressonância toda a sua futura obra musical, irremediavelmente perdida com a morte da esposa.

Machado de Assis faz uma leitura psicanalítica da personalidade do maestro Romão e isso em 1883, antes de Freud e da psicanálise moderna.

Por fim, não deixa de ser significativo que Machado de Assis tenha vivenciado um amor que pode ser visto como a descoberta de sua metade espiritual perdida e, ao mesmo tempo, como um amor maduro, que preservou a sua condição de homem e de escritor. É sabido que o seu casamento de 35 anos com Carolina Xavier de Novaes teve importância decisiva para Machado, dando-lhe a serenidade necessária à criação de sua obra. E foi tanta a importância de tal amor que Machado de Assis levou vida retirada depois da morte da esposa, sobrevivendo a perda apenas mais quatro anos.

Machado de Assis foi um Mestre Romão que não perdeu a esposa por morte prematura, nem por julgá-la inatingível e graças à consumação daquele amor teve o seu gênio criador efetivado.

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 30/04/2016
Reeditado em 09/02/2018
Código do texto: T5621196
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